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A mesma idade

Que a idade do céu

O autor fala para que se deixe a alma ter a idade do céu, englobando, com isso, finito e infinito, visível e invisível, eterno e mortal. Todas elas são dimensões do arquétipo que tem inserido em si todas as contradições e polaridades existentes. Em, “somos um grão de sal no mar do céu” é explicitada a dimensão entre a alma individual e a coletiva, ou anima mundi. Há também a sutileza de diversidades e pluralidade qualitativa nas diversas metáforas apresentadas. Vejo nesse exemplo o aspecto da experiência acumulada na existência total que dá a estrutura, ou a “idade”, da alma, da psique. “A idéia do infinito não pode ser expressa por palavras ou mesmo descrita, mas pode ser apreendida através da arte, que torna o infinito tangível. Só se pode alcançar o absoluto através da fé e do ato criador”.64 Nos dizeres de

Jung, o “símbolo real [...] [é] expressão de algo desconhecido”.65 Um símbolo sugere uma

possibilidade de sentido que nos transcende num dado momento.

Para Platão, a mímesis produz uma imagem ao trabalhar com a similaridade ou imitação do real, a qual é impossível de ser igualada a ele. A arte seria, para Platão, a “sombra de um reflexo”, ou algo pertencente ao “mundo das Idéias”.66 Refletindo um pouco sobre a visão de

Platão e o que venho discorrendo, vejo que nessa mímesis apareceria sempre algo do não- revelado. Esse mundo das ideias, ao qual Platão se refere, pode ser entendido como o mundo psíquico. Sendo a arte a “sombra de um reflexo”, ela acaba por desvelar, mesmo que por acidente, aquilo que nem sempre é visível ou consciente na imagem real.

Segundo Jung a psique se expressa através de imagens que a representem. Dessa forma, as imagens simbólicas emanadas pela psique procurariam representar a sua própria realidade estrutural de forma dinâmica e dialética. Essa realidade paradoxal arquetípica da psique busca sempre a sua totalidade e, para tal, necessita do encontro entre suas partes e da transformação. Segundo Bosi, (1989, p. 58) ao se falar de energia psíquica ou matriz espiritual, supõe-se uma rede intrincada de vivências, sendo que estas seriam eventos internos

64 Tarkovski – Op. cit. (1990, p. 42).

65 Jung, C.G. – Obras completas. Vol. XV (1991, par. 148) 66 Apud Bosi, A. – Op. cit. (1989, p. 29).

transformados que precisam da flexibilidade de linguagem do processo expressivo. Ele se refere às potencialidades das imagens e suas dialéticas:

As potencialidades da imagem e da palavra gozam de um dom talvez inexaurível: o de formar novas arborescências que dialetizam a expressão da seiva original. As mutações da forma devem ser objeto prioritário do estudioso de arte que persegue a dialética de força interior e expressão.67

Para dar continuidade ao tema proposto, devo considerar a reflexão de Jung sobre a “função transcendente”, que torna possível todo o processo de reconhecimento e de unificação de opostos na psique através do criativo. A função transcendente é a própria função de transformação, que só é possível ocorrer via imagem simbólica, e é o objetivo do processo. Cabe à função transcendente através do criativo, certa consciência, na qual coexistem uma afirmação e sua contradição. “A transformação corresponde ao processo psíquico da assimilação e da integração, isto é, à função transcendente. Esta função reúne pares de opostos que, como mostra a alquimia, são ordenados em um quatérnio quando se referem a um todo”.68

Ao falar dos opostos devo mencionar que a função transcendente só se realiza com um processo dialético e criativo. Barcellos traz um pouco mais dessas polaridades de um olhar sobre tal processo:

O jogo de opostos também está presente ao considerarmos que, em seu trabalho, o artista tenta dar ordem e forma (ego e consciência) ao caos e ao sem-forma (conteúdos inconscientes). Dessa maneira, ele é propriamente um criador e lida ao mesmo tempo com o velho e o novo, com tempo e eternidade.69

Na visão de Barcellos a criação que acontece na arte unindo os opostos, da mesma forma acontece na análise clínica, na qual tal processo criativo de assimilação dos opostos também se dá. Ele diz, ainda, que uma obra de arte é um complexio oppositorum com polaridades que coexistem em si mesmas e, ao mesmo tempo, as transcende. Assim, a obra de arte seria a tentativa de integrar esses aspectos paradoxais à personalidade. Reproduzirei agora a fala de Chico Buarque que exemplifica esses aspectos integrativos da arte na experiência de um autor:

[...] a partir do momento que você está escrevendo, já não é você quem está escrevendo. Na verdade, eu não acredito que o autor ou pintor saiba exatamente o que ele vai pintar ou criar. Nunca vi ou ouvi uma explicação convincente nesse sentido. Há um momento em que você começa a fazer, você pegou o caminho e

67 Bosi, A. – Op. cit. (1989, p. 65).

68 Jung, C. G. Obras completas Vol. XIV/1. (1985, par. 255). 69 Barcellos, G. – Op. cit. (2004, p. 33).

depois você escreve um pouco como quem lê. Na verdade, muitas coisas que eu não sei, eu começo a entender depois de escrever um texto, escrever uma canção. Eu não sabia aquilo e quando eu leio, eu digo –‘Ah, é!’. Eu aprendo. Às vezes são coisas que você não entende ou que você não quer encarar, não quer lidar com aquilo e você põe no papel. Você escreve e tal, e depois você entende melhor. Existe muito isso. Acho que qualquer artista trabalha assim. Ele aprende criando.70

Barcellos traz a ideia de que a criatividade vem da anima, da alma, independente do sexo da personalidade, pois ele tem como norte a teoria de James Hillman. Este junguiano concebe que considerando que todas as personalidades possuem anima e animus indiscriminadamente e, no entanto, diferente da visão de Jung, que considera presente a contraparte sexual da personalidade (anima no homem e animus na mulher).

[...] um modo específico e autêntico da realização do criativo, que só é vivido quando estamos na alma.

O criativo percebido através do arquétipo da anima traz naturalmente consigo a possibilidade inversa: percebermos a alma através da noção de criatividade – o que constela a alma enquanto musa. Como uma forma particular de enxergarmos e nos relacionarmos com a alma, a musa personifica na imaginação do artista as qualidades de um autêntico envolvimento com a anima: Preocupação estética, preocupação com tradição e com história e preocupação com a natureza. ...essa abordagem possivelmente sugere que ‘estar na alma’ significa estar na poesia, uma condição sui generis da alma.71

Acho bela a ideia proposta por Barcellos, de uma anima/musa, o que ressalta o lugar da alma como guia e portadora de luz, aquela que leva o espírito a seu fim maior e transcendente, a totalidade. No entanto, esse fim só é possível com a união de ambos, a grande coniunctio da alma e do espírito.

“The power of creativity cannot be named” Paul Klee

Retomo aqui as reflexões de Bosi a respeito da raiz da palavra “arte”: “[...] palavra latina ars – português arte – está na raiz do verbo articular, que denota a ação de fazer junturas entre as partes de um todo”.72 Com essa vertente não só reforço o que vem sendo

dito, como introduzo outro conceito de Jung para aprofundar o entendimento do processo criativo. O conceito que se faz premente é o de “função Eros” no processo de individuação, aquela que possibilita os encontros, as mediações, as assimilações. Jung vê Eros como um

70 Holanda, C. B. de – DVD- “Chico Buarque À Flor da Pele” (2005). 71 Barcellos, G. – Op. cit. (2004, p. 33-34).

princípio necessário à transformação, por ser ele o mediador existente nas inter-relações. Eros é o nosso elo sentimental com outras pessoas, com a natureza e com nós mesmos, o impulso que possibilita a projeção de certos conteúdos do inconsciente no outro, no externo, os quais podem, então, ser integrados à personalidade consciente. São considerados conteúdos do inconsciente os aspectos pertencentes ao indivíduo e não reconhecidos pelo mesmo. Por minha própria prática clínica percebo então que, quanto maior for a projeção, mais difícil será integrá-la à consciência. Melhor dizendo, quanto mais idealizado ou distante do humano for uma imagem, maior será a dificuldade em assimilá-la. Ressaltando a inventividade de Eros e suas características amorosas, Jung usa uma descrição encontrada no “Museu Hermético Alquímico” como uma metáfora que o descreve:

Ele é elogiado como o ‘mille rerum artifex’ (artífice de mil coisas), como o coração de todas as coisas, como aquele que fornece a inteligência (intellectus) a todos os seres vivos, como o gerador de todas as flores nas ervas e nas árvores, e finalmente como o ‘omnium colorum pictor’. Esta descrição, sem mais nada, poderia servir para Eros também.73

Faz-se presente nessa descrição o caráter inteligente do coração, que, como parte central do humano, reúne inteligência e afeto de modo indissociável. Devo lembrar que para Jung, Eros tem características de agente motivador e impulsionador da ação em direção ao objeto. Ao projetar características suas, no objeto, o indivíduo distorce as características reais do mesmo, podendo aumentá-las ou diminuí-las conforme a sua projeção. Quanto mais inconsciente for o conteúdo projetado, maior será a atuação de Eros. Ele é de natureza subjetiva, pois através do sentimento se dá valor ao objeto, bom ou mau. Essa natureza leva a um caráter paradoxal. Acrescentando as palavras de Jung sobre esse daimon:

[...] descrevendo a essência de ‘Amor’. Esse autor se reporta aos versos do cômico Alexis, citado por Athenaeus: ‘Parece-me que os pintores [...] não conhecem Eros, todos aqueles que fazem figuras desse daimon. Pois ele não é nem masculino nem racional, mas é de certo modo formado de tudo; ele traz em si numa imagem primitiva muitas formações singulares; tem ele a ousadia do homem e a covardia da mulher, tem a incompreensão própria da loucura e a inteligência do sábio, tem a paixão impetuosa de um animal, a resistência indomável do diamante e o orgulho de daimon’...74

Percebe-se novamente o caráter paradoxal e contrastante de Eros para Jung. Ele o vê também como o sal, que tem a propriedade de amargor e sabedoria, e que em tudo penetra,

73 Jung, C.G. – Op. cit, Vol. XIV/1 (1985, par. 136). 74 Jung, - Op. cit, C.G. Vol. XIV/1 (1985, par. 93)

assim como a alma. Eros, como o princípio feminino, faz todas as coisas se relacionarem entre si de modo quase perfeito. Jung caracteriza a consciência masculina através do conceito de Logos, sendo este o distinguir, o julgar, o reconhecer; enquanto a consciência feminina é caracterizada através do conceito de Eros, o colocar-se em relação e ambos coexistem no indivíduo. A integração dos conteúdos inconscientes, a união dos opostos, a coniunctio, se dá com a participação de ambos os aspectos da psique (Logos e Eros). O Eu só será inteiro na medida em que houver um Você. Encontra-se aí um paradoxo: o processo de individuação exige o outro e esse outro é sempre uma imagem de nós mesmos. Retomo aqui a ideia de que este outro possa vir na criação dos cenários no sandplay. Ammann discorre um pouco sobre esse processo na areia, que é holístico:

Dora Kalff [...] recognized that a series of sand pictures created by either children or adults actually represents an ongoing practical confrontation with the unconscious and is comparable to a series of dreams occurring during the analytical process. Working at the sand tray initiates a psychic process which is holistic and can lead to healing and the development of the personality.75

O processo holístico descrito traz à tona a constatação desses dois mundos, o mundo interno e o externo que demarcam uma divisão essencial nos seres humanos. Ela aparece como a fonte do empreendimento criativo. Antony Storr (1983) encara as obras de arte como uma síntese que possui qualidades desses dois mundos sem pertencer a nenhum deles. A criatividade provém da operação simultânea de opostos, e a obra funciona como uma reconciliadora desses opostos. Barcellos acrescenta que, “o trabalho final tem a função de um verdadeiro reconciliador exatamente da mesma forma que o ‘lapis philosophorum’, a ‘pedra’ do alquimista, é um verdadeiro símbolo de reconciliação e marca o final da operação”.76

Pretendo dar sequência a este trabalho com uma ampliação do tema do coração e, para tal, gostaria de encerrar com uma última visão de Eros, assim como da participação do amor no processo criativo, usando as palavras de Carotenuto e Tarkovski:

Abandonar-se ao poder de Eros rompe e muitas vezes varre todos os anteriores pontos de referência. O amor nos deixa sozinhos, pois passa a não haver sintonia com os outros seres humanos, a comunicabilidade da própria experiência. A única linguagem possível continua sendo a da arte, da poesia, que com seus misteriosos

75 Ammann, R. –Op. cit. (1996, p. xv). “Dora Kalff [...] reconhecia que a série de imagens na areia, criadas

tanto por crianças como por adultos, na verdade representa uma confrontação prática contínua e, é comparável à série de sonhos que ocorrem durante o processo analítico. Trabalhar com a bandeja de areia, inicia um processo psíquico que é holístico e pode levar à cura e ao desenvolvimento da personalidade” (Tradução minha).

poderes alquimistas consegue expressar o que de outra forma permaneceria para sempre lacrado.77

Carotenuto fala que a única possibilidade de expressão do amor é a arte, e na sequência, Tarkovski fala da mensagem, que deve ser passada em seus filmes, sobre a necessidade de amar:

Creio que tenho o dever de estimular a reflexão sobre o que é fundamentalmente humano e eterno em cada alma individual, e que, no mais das vezes, é ignorado pelas pessoas, embora elas tenham o destino em suas mãos. Elas estão sempre muito ocupadas, correndo atrás de fantasmas e reverenciando seus ídolos. No final das contas, tudo pode ser reduzido a um único e simples elemento, que é tudo com que alguém pode contar durante a sua existência: a capacidade de amar. Esse elemento pode germinar e crescer no interior da alma, até tornar-se o fator supremo que determina o significado da vida de uma pessoa. Minha função é fazer com que todos os que vêem meus filmes tenham consciência da sua necessidade de amar e de obedecer a seu amor, e que tenham consciência de que a beleza os está convocando. 78

O amor parece ser impreterivelmente a grande fonte da criação e, portanto, da transformação e transcendência que ela desencadeia.

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