• Nenhum resultado encontrado

Foi assim que fez em nós Esse amor iluminado

REFLEXÃO SOBRE A SÉRIE DE IMAGENS DE SANDPLAY SELECIONADAS

“Ver um Mundo num Grão de Areia

E um Céu na Flor Silvestre, Conter o Infinito na palma da mão E a Eternidade numa hora.” Auguries of Innocence Willian Blake

Trouxe, até o momento, formas de embasamento teórico e imagens analógicas para dar forma à minha ideia central de que todo e qualquer processo criativo é semelhante em si e só acontece numa perspectiva de relação amorosa dialética regida pela função Eros. Trago agora uma afirmativa criativa dessa mesma ideia, produzida por imagens simbólicas dentro de um processo de desenvolvimento psíquico. A sabedoria psíquica sempre se faz representar e se revelar na intenção de um casamento amoroso das polaridades em direção à totalidade.

Para dar início a essas imagens, trago parte de um sonho que mostra essa aproximação simbólica do coração de forma inadvertida e elaborada como símbolo. Muito do que vou apresentar aqui é fruto do mergulho processual, teórico e simbólico pós-criação.

Sonho 16 – 31/08/05

Um amigo chega e toca um lindo alaúde, com detalhes de madrepérola e fios de ouro, estilo indiano. A música é maravilhosa, envolvente e divina. Há um silêncio profundo causado pela beleza do som do alaúde e da melodia que ele toca.116

Segundo Cirlot (1971), o alaúde ou a cítara representariam Sarasvati, shakti de Brahma, sua consorte, deusa hindu protetora da arte, da música e da literatura, personificação da palavra, do som criador e também dos pássaros. O alaúde teria também relação com a harmonia do império, reflexo da harmonia cósmica. Já na Roda da Vida Tibetana, esse instrumento traz a ideia de acordar os deuses de suas ilusões ao som do dharma. Cirlot refere ainda, ao alaúde, a simbologia semelhante a do coração o instrumento é o coração as cordas são os sentimentos: o tocador a inteligência e o arco a lembrança de Deus.

Coloco essas informações para ressaltar a necessidade de conteúdo se revelar cada vez mais e de forma mais diversa, na busca da ampliação da consciência. A criatividade é parte fundamental e propulsora do caminho em questão, faz-se essencial e transforma os conteúdos psíquicos simbólica e criativamente com o aprofundamento do processo. Assim,

116 Parte de um sonho meu.

o coração não só se revelou, explicitamente ou não, no sandplay, mas em todas as possibilidades criativas da vida objetiva ou subjetiva, percebidas ou não pela consciência.

Por sua natureza o amor pertence à esfera do indizível; como tudo o que se relaciona com a alma, com a dimensão mais profunda e secreta do ser, ele está próximo do mistério, é acompanhado do silêncio. Superar a barreira do inexprimível, dar forma e corpo ao indizível é um empreendimento louco, ‘cheio de medo’, em que somente os artistas e os poetas desde sempre se aventuraram.117

Jung dizia que o processo de individuação era muito penoso, dolorido e, portanto, amedrontador. Essa urgência de dar passagem àquilo que quer se manifestar traz consigo muitos sofrimentos e sacrifícios. Assim, o símbolo muitas vezes se aproxima de forma a abrir caminho para a transformação, sem se deixar reconhecer em princípio. Bonaventure (1991) fala da ferida e da busca de se reconhecer e se aceitar:

Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o homem descobriu novos caminhos que o levam para a sua interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se um lugar novo de experiência. Os viajantes desses caminhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar a alma, mas também o amor precisa da alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicações psicopatológicas às nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é. Deste modo é que podemos reconhecer que estas feridas e estes sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a realização de nossa totalidade. Assim, a nossa própria vida carregará em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira.

Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro, mas o psíquico, e depois o espiritual. É a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido, o que significa que a psicologia pode de novo estender a mão à teologia.118

O primeiro cenário de coração explícito e extremamente mobilizador que fiz foi, também, meu primeiro sandplay com areia molhada. Fiz esse cenário sozinha, fora do meu horário de análise pessoal119, e demorei três horas e meia para terminá-lo, junto a muita energia, emoção, tristeza e dor. A lembrança emocional de tal vivência se atualiza e toma vida todas as vezes em que entro em contato com a imagem desse cenário, seja por meio de foto ou da memória.

117 Carotenuto, A. – Op. cit. (1991, p. 27).

118 Carotenuto, A. – (1991, p. 5). Leon Bonaventure

119 Lembremos que, apesar de meu trabalho clínico como psicóloga, os cenários aqui considerados são frutos

Fig.8 – Ano 2000

Essa imagem é constituída de um grande coração central partido ao meio, e na carne da rachadura central há teias pretas que amarram a ferida aberta, prendendo-a em três pontos da lateral direita e outros três da esquerda. Há também várias outras teias pretas que se entrelaçam sobre o coração, prendendo-o, assim à base da caixa. Várias pedras vermelhas (pequenas, médias e grandes) representam o sangue, e algumas outras pedras marrons simbolizam uma secreção infecciosa.

Se esse fosse o primeiro cenário que se apresentasse a mim, num processo simbólico em minha clínica, primeiramente trabalharia com minhas impressões e, na sequência, buscaria entender a dualidade de tal imagem, assim como sua prospecção, diagnóstica e prognóstica. Vejo uma expressão de morte e vida, pela quantidade de sangue derramado no cenário, assim como dor e amor, pela representação simbólica da imagem do coração partido. Em termos mais coletivos, considero-a como a dor do humano, citada acima, na busca de sua totalidade e autoconhecimento, uma ferida aberta causada por falta de amor, sentimento existencial da dualidade psíquica. No processo de individuação é paradoxalmente fundamental o outro. Logo, um e dois vivem, convivem e alternam-se na dinâmica psíquica em direção à totalidade. Vejo ainda nessa imagem que há duas partes de um coração quebrado, descrevendo assim o paradoxo mencionado. O um e o dois representam o todo e a parte, sendo a parte isolada de um todo: e, o todo, a união das partes, integração universal com o divino, só possível pela diferenciação das partes e pelo retorno ao todo.

Antes de dar sequência ao próximo cenário gostaria de pontuar um pouco a representação da cor vermelha exposta por Jung em seu seminário sobre o Kundalini Yoga (1996):

There is also the color symbolism, of course. You know that red means blood, the power deep down in the earth. And white means higher intuition. […] Within the erotic life a power of insight is working. The erotic seems a way to insight into the nature of things, and that grows into spiritual aspect above […] In anãhata […] Red represents the musical tone there. Anãhata, symbolizes the creative life […] The musical undertone of region is alive somehow - life has a different reality; a blood reality comes from outside and tries to work its way in harmonize the two.120

Vejo nessa descrição novamente fatores comuns ao processo aqui apresentado, assim como ao processo deste trabalho - vale dizer, a música, a dualidade e a harmonia musical em direção à síntese.

“Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros: começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim”. Demian – Hermann Hesse

A próxima imagem que escolhi não traz o coração de forma explícita, mas indireta. Esta imagem apresenta o coração em forma de sentimento, dor, expansão e contração. É mais um exemplo do diálogo entre indivíduo e coletivo, humano e universal.

120 Jung, C. G. – Op. cit. (1996, p. 102). “Há também o simbolismo da cor. Você sabe que vermelho significa

sangue, o poder profundo da terra. E o branco significa a intuição elevada. [...] dentro de uma vida erótica o poder do insight está trabalhando. O erótico aparenta ser um caminho para o insight da natureza das coisas, e este cresce no aspecto espiritual acima. [...]. Em anãhata [...] o vermelho representa o tom musical. Anãhata, simboliza a vida criativa. A baixa tonalidade musical da região está de alguma forma viva – vida tem uma realidade diferente; a sangrenta realidade vem de fora e tenta trabalhar para harmonizar o dois” (Tradução minha).

Fig.9

Esse cenário, também com areia molhada, apresenta uma galáxia estrelar. A espiral direciona-se para o centro e para o fundo, para baixo. Há diversas estrelas que compõem essa espiral, dando um sentimento de novas possibilidades, novas luzes e potenciais criativos (cada estrela representaria uma centelha, uma alma luminosa em potencial). Há no canto superior esquerdo uma estrela dourada que remete ao calor e ao sol, símbolos também pertencentes ao coração. Aparentemente, o aspecto lunar da imagem busca uma síntese simbólica na estrela solar, tentando diminuir a separação das polaridades numa coniunctio. No canto superior esquerdo há uma deidade hindu com quatro braços (lembrando Shiva, deus da transformação), tocando um alaúde, símbolo discutido acima. Novamente vejo uma tentativa de harmonizar as diversidades através da música do coração, que, como mencionado, reúne discernimento e afeto amorosamente. No canto inferior esquerdo há um moinho de vento prateado que contrapõe a estrela dourada na diagonal oposta. O moinho, símbolo de transformação, colocado no canto do devir, parece prenunciar transformações ainda maiores, já consteladas simbolicamente, mas não necessariamente na dimensão concreta. Finalmente, no centro há uma figura feminina sensual e uma cruz de pedra, ao seu lado esquerdo - uma representação de sensualidade viva e de morte por trás da cruz. Não nos esqueçamos de que a cruz é um símbolo da coniunctio, síntese dos opostos em seu ponto central. O centro está coberto com um emaranhado preto de teia outro ponto de ligação com

o cenário anterior. Aparentemente, o conflito e o tema continuam os mesmos, mas, pelo diálogo com as imagens e o envolvimento com o processo, parecem abrir margens para o poder amoroso criativo apresentar possíveis soluções de síntese e transcendência. Há nessa imagem, também, o um e o dois presentes em sua harmonia, o um representado pelo indivíduo central e pela finitude da morte, já o dois é representado pela multiplicidade estelar, o dentro e o fora, o universal.

“A morte é a solidão das pessoas amadas, esta névoa em torno delas que nenhuma palavra terna pode

atravessar. A morte é a dor e o desespero nas mesmas palavras que foram a embriaguez da felicidade. A morte são os prantos que brotam escutando uma palavra que queira dizer amor.” Joë Bousquet

Farei, a seguir, a apresentação de outro cenário da série selecionada. Ele foi feito durante a apresentação do trabalho de conclusão da disciplina oferecida pela Profa. Laís Wollner, no mestrado. O processo que antecedeu a criação da caixa está expresso na letra da canção.

Luca