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Sandplay uma expressão artistica da alma : um processo de transformação simbólica através das dores e amores do coração

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE ARTES

LILIANA VALERIA CRISCI ABEID

SANDPLAY UMA EXPRESSÃO ARTÍSTICA DA ALMA: UM PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO SIMBÓLICA ATRAVÉS DAS DORES E AMORES DO

CORAÇÃO

SANDPLAY, AN ARTISTIC EXPRESSION OF THE SOUL: A SYMBOLIC TRANSFORMATION PROCESS THROUGH THE PAIN AND THE LOVES OF THE

HEART

CAMPINAS 2006

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SANDPLAY, UMA EXPRESSÃO ARTÍSTICA DA ALMA: UM PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO SIMBÓLICA ATRAVÉS DAS DORES E AMORES DO

CORAÇÃO

SANDPLAY, AN ARTISTIC EXPRESSION OF THE SOUL: A SYMBOLIC TRANSFORMATION PROCESS THROUGH THE PAIN AND THE LOVES OF THE

HEART

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como versão final para a obtenção do título de Mestra em Artes.

Dissertation presented to the Institute of the University of Campinas as definitive version to obtain the degree of Master of Arts.

ORIENTADOR: ELISABETH BAUCH ZIMMERMANN COORIENTADOR: ERNESTO GIOVANNI BOCCARA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINALDA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA LILIANA VALÉRIA CRISCI ABEID, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. ELISABETH BAUCH ZIMMERMANN.

CAMPINAS 2006

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LILIANA VALERIA CRISCI ABEID

ORIENTADORA: PROFA DRA ELISABETH BAUCH ZIMMERMANN

MEMBROS:

1 - PROFA DRA ELISABETH BAUCH ZIMMERMANN

2 - PROF DR FERNANDO PASSOS

3 - PROF DR ADILSON NASCIMENTO DE JESUS

Programa de Pós-Graduação em Artes na área de concentração Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

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Dedico este trabalho à Elisabeth B. Zimmermann por ter acreditado em mim mesmo com minhas falhas e sobressaltos que lhe causei, por me acompanhar por tantos momentos de dores e amores nessa jornada. Acolhimento fundamental para conclusão desse trabalho. Ao Nelson Bolognini Júnior, por confiar e acreditar em mim desde o primeiro olhar, me dar uma chance e estrutura para continuar caminhando, minha estrela polar que distante me orienta de forma amorosa.

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À Elisabeth Bauch Zimmermann pela caminhada e participação dedicada a todos os momentos. Vaso continente e constante nessa Via Láctea.

Ao Timo de Andrade por trazer uma proximidade musical e uma maior soltura no diálogo intimidado com o meu violão. Também pela filmagem, dedicação e carinho na execução deste trabalho.

Ao Nelson por todos esses anos de apoio, estrutura e direcionamento. Grande figura paterna amorosa e artisticamente sensível, por sua afinação e criação interpretativa musical, revelador de estrelas.

À Sonia de Carvalho por sua solidez profunda e ética, Paulo Baeta grande observador, artista e poeta incentivo silencioso no olhar, Joel Giglio pela proximidade e oportunidades lúdicas, junto com tantos outros grandes mestres de teoria, vida e amor.

Ao Waldyr Brandão pela força, pela grande parceria musical, por todas as noites de música e amanheceres, pelo fogo olímpico aceso diariamente para a conquista desse trabalho, presença sem distância e finalmente pelo convívio com sua linda família de grande amor. À Andréa pelas opiniões, companheirismo, presença e ajuda nos piores momentos. Por me aturar nas crises e choros e por acolher todos os meus sentimentos.

Ao Marcos Cardoso grande propulsor amoroso de momentos eternos. Presença silenciosa e harmônica, sofrimento e amor de um coração total. Portador da música que toca meu coração e afina minha alma. Tocador das cordas amorosas da minha vida.

Ao meu filho Gabriel Abeid Frateschi, grande criação amorosa de minha vida, mas não sem dores. Pelo amor incondicional e convivência com minhas falhas humanas.

Aos meus grandes amigos e companheiros queridos: Betinha, ajuda infalível; Ivan, meu anjo da guarda; Talita, delicadeza e apoio; Sandra, confiança; Fabio, atitude de retidão e precisão confiantes; Cíntia, grande incentivadora e farol amoroso; Carolzinha, pelo ouvido carinhoso e ajuda prática; Roger, grande musico que é no coração, pelo som e vibração de carinho e iluminação; Regina, luz sensível e inabalável confiança no meu trabalho; e tantos outros que sempre acreditaram em mim, mesmo quando eu não acreditava.

À Ana Silvia pela honra de sua revisão de texto, pelo carinho e incentivo constantes, dançarina de palavras irradiadas de amor e crescimento espiritual.

Aos músicos maravilhosos e queridíssimos: Ligia Thomé voz de anjo, voz de minha alma guia de luz, amorosa e dedicada em todo momento. Marcelo pela disponibilidade e sensibilidade de alma, pianista amoroso, sempre pronto para doar generosamente seus belos acordes harmônicos musicais. Waldyr, parceiro presente nos acordes e no tempo, mesmo que em outro espaço.

Ao Amor por toda transformação, todos os encontros e todas as criações. Sentido da vida e condição essencial para a existência desse trabalho e de toda a vida. Possibilidade da música da vida.

A todas as pessoas que participaram, contribuindo para a realização deste trabalho, direta ou indiretamente, meus agradecimentos. A todas as pessoas que cabem no meu coração, mas não nessa página.

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“São muitos os caminhos pelos quais Deus pode nos conduzir à solidão e levar-nos a nós mesmos”

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A ideia central deste trabalho foi o de traçar um paralelo entre o processo criativo no sandplay e o processo criativo na arte. Selecionou-se uma metáfora desse processo de expressão da alma e relacionou-o ao processo expressivo artístico. Considerando-se que a necessidade interna representa uma necessidade psíquica da manifestação da alma e, portanto, do sagrado, do transcendente. Mostrou-se que a arte vem e leva o indivíduo e o coletivo a algo maior. Considerei que mesmo sendo o sandplay uma técnica terapêutica - e, portanto, com tal intenção -, a criação do cenário não consegue ser dominada totalmente pelo ego e contém sempre a necessidade criativa de expressão num caminho de transformação simbólico. Observou-se também, que o processo dialético de transformação do símbolo só é possível na presença da função Eros.

Este trabalho teve o caráter e a intenção de introduzir o sandplay no campo do criativo e do artístico, tendo como base estrutural e fundamental a necessidade de Eros como agente de contato e facilitador no processo de transformação simbólica em direção à transcendência.

Na tentativa de maior ilustração do processo criativo no sandplay, trouxe parte de uma série de cenários na areia com o tema do coração e, para tal entendimento levantou-se um pouco a simbologia do coração e alguns símbolos afins.

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The central idea of this paper was to draw a line between the sandplay creative process and the art´s one. It was selected a metaphor of this soul expression process and to relate it to the artistic expressive process. It was considered the inner necessity to be a psychic need of soul manifestation, as well as, a sacred and a transcendent one. It was shown that the art comes and takes the person and the collective to something bigger. It was discussed about the images creation on the sand tray not being controlled by the ego, and needing the creative expression on a transforming symbolic way. It was considered that the dialectic process of the symbol transformation is only possible through the Eros function. The character and the intention of this paper is to introduce the sandplay on the creative and artistic field, having as a structural and fundamental base the need of Eros as the contact agent and the facilitator on the symbolic transformation process towards transcendence.

In the effort to a larger illustration of the creative process in sandplay, it was brought about a part of a series of sandplay images, which has the heart as central theme. To a better understanding of that, it was investigated some of the heart symbology and some close symbols.

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Apresentação ... 12

Introdução ... 21

Recortes de pensamentos sobre arte ... 34

Sandplay / Caixa de areia ... 41

Transformação simbólica, função transcendente e função Eros ... 49

Visão de criatividade e arte pra Jung ... 59

Ampliação do tema do coração ... 64

Reflexão sobre a série de imagens de sandplay selecionadas ... 71

Conclusão ... 93 Referências ... 97 Anexo I ... 100 Anexo II ... 102 Anexo III ... 103 Anexo IV ... 105

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APRESENTAÇÃO

“The utterances of the heart _ unlike those of the intellect _ always relate to the whole. The heart-strings

sing like an Aeolian harp only to the gentle breath of a premonitory mood, which does not drown the song but listens. What the heart hears are the great things that span our whole lives, the experiences which we do nothing to arrange but which we ourselves suffer.”1

C. G. Jung Refletir sobre este trabalho e sobre meu próprio percurso é revelado a mim numa imagem caleidoscópica de arranjos e rearranjos interligados entre si e, ao mesmo tempo, únicos em cada pequena particularidade. A multiplicidade apresentada aqui nada mais é do que a multiplicidade em mim expressa no fio condutor de minha vida que viaja seguindo o sentido a ela apresentado. Sem esquecer que a multiplicidade nada mais é que uma expressão do humano e, portanto, pertinente a este trabalho. Entrelaço neste momento a música, o desenho, a psicologia, a escultura, a caixa de areia, o movimento, o coração, Eros, o espiritual, o sagrado e cada encontro vivido ou ainda por vir. Cada letra, vírgula, cor, sequência, citação, música, poema ou imagem, que aqui se expressam buscam me revelar de uma forma ou de outra, na tentativa de um casamento amoroso e harmonioso da alma criativa e do Logos acadêmico. Sempre falamos de quem somos e, como dizia Jung, a psique se expressa constantemente em tudo, sendo ela a única realidade objetiva que podemos presenciar. Para usar uma lírica melódica, o que tanto me apraz, citarei a letra da música de Zélia Duncan, “Me Revelar”.

Me Revelar

Zélia Duncan

Tudo aqui quer me revelar

Minha letra, minha roupa, meu paladar.

O que eu não digo, o que eu afirmo.

Onde eu gosto de ficar

1 “As expressões do coração – diferente das do intelecto – sempre se referem à totalidade. As cordas do coração

tocam como o Aeolian Harp * apenas com o sopro gentil do humor premonitório, que não afoga a música, mas a ouve. O que o coração ouve são as grandes coisas que rodeiam a nossa vida toda, as experiências que não buscamos, mas somos acometidos a elas”. (Tradução minha) * O Aeolian Harp é um instrumento de Aeolus, deus grego do vento. É feito de uma caixa acústica com cordas esticadas sobre essa caixa. O instrumento não é tocado pelas mãos humanas, mas sim pelo vento. Era colocado perto da janela ou do lado de fora da casa, para que possa ser tocado pela brisa.

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Quando amanheço, quando me esqueço.

Quando morro de medo do mar

Tudo aqui

Quer me revelar

Unhas roídas

Ausências, visitas.

Cores na sala de estar

O que eu procuro

O que eu rejeito

O que eu nunca vou recusar

Tudo em mim quer me revelar

Tudo em mim quer me revelar

Meu grito, meu beijo.

Meu jeito de desejar.

O que me preocupa, o que me ajuda.

O que eu escolho pra amar.

Quando amanheço, quando me esqueço.

Quando morro de medo do mar.

Tendo essa revelação em mente, tento fazer uma viagem pelos símbolos e memórias que se mostram pertinentes para uma criação imagética de mim mesma e do “coração” deste trabalho, que deve envolver amorosamente a alma que dança essa melodia teórica sem perder o foco da série de cenários escolhidos que representa o cerne criativo deste trabalho, bem como a totalidade criativa de uma alma.

Minha memória mais remota é dos meus quatro ou cinco anos, quando eu sentava embaixo do piano enquanto minha mãe dava aulas ou tocava piano ou acordeom. Ouvia a música, sentindo a vibração na madeira e fazendo desenhos ou vendo formas das imagens ali geradas. Nessa época eu também dizia que seria uma psicóloga quando crescesse logicamente, não

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sabia o que isso representava, mas sempre foi a minha retórica. No entanto, minha formação profissional não se iniciou em Psicologia e sim em Artes. Em 1982, entrei no curso de extensão de Belas Artes na Unicamp, coordenado pelo professor Álvaro de Bautista, um curso acadêmico de desenho, escultura e pintura. Esse foi meu primeiro encontro formal com as artes plásticas e muito me surpreendi em ser selecionada para tal, mesmo sem qualquer conhecimento ou prática anterior. Apenas em 1987 fiz meu primeiro ano em Psicologia, interrompendo-o por cinco anos, quando vivi em Los Angeles (EUA), retomando-o em 1993. Hoje sou psicóloga e atuo na área clinica usando a abordagem junguiana.

Acredito que esses vários aspectos meus, além de muitos outros também representados na série de cenários do sandplay2, entrelaçam-se constantemente num fluxo criativo que dá corpo à trama de uma vida, que, junto a outras vidas, dá forma a algo ainda maior: a própria existência do manto cósmico de vidas estrelares. Assim, tanto as imagens de coração, como de galáxias e corpos estrelares, me parecem ser nada mais do que a expressão imagética e plástica de minha alma humana. Ao refletir sobre o tema da série de caixas que selecionei para este trabalho, e que eu acreditava me acompanhar desde 2000 (data da minha primeira caixa com areia molhada e da primeira imagem explícita do coração partido), percebo que esse tema do coração se fez presente em minha caminhada desde sempre. No entanto, revelou-se simbolicamente numa experiência intensa e numinosa no sandplay, o que deu início à busca da consciência desse aspecto até então indiferenciado. Acredito que tal manifestação imagética se dá como possibilidade de um encontro simbólico transformador que se constela num Temenos3 amoroso dialético.

Meu projeto inicial de Mestrado buscava falar sobre um desenvolvimento estético e de linguagem artística que percebo claramente com algumas pessoas no consultório e no meu próprio processo no sandplay. Acredito, intuitivamente, que o trabalho com as imagens emergidas da areia, mas não apenas nela, começam a criar um campo harmônico e melódico condizente com a transformação dialética psíquica de cada indivíduo. Percebo um

2 Sandplay foi desenvolvido como método terapêutico por Dora M. Kalf com base teórica na psicologia analítica

de C. G. Jung. Sandplay é um método de psicoterapia baseado no trabalho prático e criativo na caixa de areia. Nesse processo os elementos psíquicos e materiais se encontram e influenciam-se, permeando e unindo um ao outro de forma criativa. Os profissionais brasileiros usam diferentes termos para falar do sandplay, tal como, jogo de areia, método ou técnica da caixa de areia, etc. Optei pelo termo em inglês por ter um maior significado e abrangência simbólica para mim.

3 Segundo Jung temenos é o recinto de um templo ou de algum lugar sagrado e isolado, no qual o habitante era

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aperfeiçoamento, ou um maior domínio da técnica expressiva, seja ela qual for, junto ao aprofundamento e à transformação simbólica. No entanto durante as aulas do Mestrado, fui compreendendo o quão difícil seria falar de uma estética sem uma compreensão muito profunda da filosofia e da própria arte. Foi nas aulas do professor Paulo Kühl que mudei o direcionamento de minha pesquisa. Ele me orientou no sentido de diferenciar e ressaltar a especificidade do sandplay, de falar daquilo que eu mais soubesse falar, e para isso, eu deveria falar do meu próprio processo ou de algum paciente. Considerando as pertinentes observações do professor e as questões éticas envolvidas na apresentação e publicação de material clínico, resolvi selecionar uma série de cenários meus que envolvem de alguma forma o tema do coração. É claro que essa decisão acentuou ainda mais o dialogo simbólico do tema, assim como uma aproximação maior do processo criativo que está envolvido na produção dessas imagens. Houve uma intensificação na produção de cenários, desenhos, imagens corporais ou visuais, assim como de sonhos. Vale dizer que esse processo criativo, bem como o tema do coração, não são aspectos isolados, nem da minha totalidade psíquica, nem da minha vida, da mesma forma que não são uma representação exclusiva dessa individualidade, mas também uma representação arquetípica do humano. Considero integrante a esse caminho simbólico meu trabalho clínico como psicoterapeuta, minha paixão pela música, meu amor pelas pessoas, pela psicologia analítica, pelo trabalho e muito mais.

O Mundo É Grande

Carlos Drummond de Andrade

O mundo é grande e cabe

nesta janela sobre o mar.

O mar é grande e cabe

na cama e no colchão de amar.

O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar.

Na retrospectiva e observação da trama do tecido dessa alma minha, gostaria de falar sobre um cenário que fiz, no qual música, morte, cosmos, transformação, solidão, dificuldade, o

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casal, o coração e o amor também estavam presentes. Essa caixa foi feita em abril de 2001 (Fig.1, pág.20).

Antes de comentar esse cenário, queria colocar um pouco do que é a minha experiência com o sandplay e como o sinto. A princípio tive um sentimento de estranheza, incapacidade e desajeitamento. Conforme minha análise pessoal foi caminhando e o fazer dos cenários se tornava parte de tal processo, percebi uma qualidade expressiva dessa experiência, diferente da qualidade que se manifestava nos sonhos, nas esculturas, ou nos desenhos. São extremamente diferentes para mim, em termos de sentimento e vivência, essas qualidades de expressão. Sinto emergir de lugares diferentes do meu corpo, tais imagens e tais meios expressivos, havendo por vezes a necessidade de usar essas várias maneiras de criação de imagens para conseguir dar minimamente forma a algo que por muitas vezes transcende à possibilidade de se expressar satisfatoriamente de uma única maneira. Aparentemente o contato com a areia remete a uma antiguidade contida no material, há uma abrangência ancestral ao interagir com tal material. Hoje sinto um certo conforto e muita urgência em fazer cenários que dão continência e lugar a algo que necessita de um espaço de expressão, mas não de qualquer espaço, e sim desse espaço específico e por vezes acompanhado de outros que se fazem necessários, como a música, o desenho, a escrita ou a escultura.

Vejo outros meios expressivos aqui presentes no cenário que se segue, assim como a síntese imagética desses meios simbólicos.

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Fig.1

Nesse cenário fica evidente o papel curador, amoroso e criativo da música, por ser este o tema central e de destaque da imagem. Foi-me dito, em análise, que meu caminho de cura era a própria música, que para mim é a alma amorosa criativa, o encontro harmônico das multiplicidades em ressonância melódica. Acredito que somente pelo encontro amoroso, em seu sentido mais amplo, é possível um processo criativo autêntico, e a música é para mim a representação maior do sentimento, do coração, do centro humano e da totalidade.

~ Da Música ~

Khalil Gibran

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Meus amigos: a Música é a linguagem dos espíritos. Sua melodia é como uma brisa saltitante que

faz nossas cordas estremecerem de amor. Quando os dedos suaves da música tocam à porta de nossos

sentimentos, acordam lembranças que há muito jaziam escondidas nas profundezas do Passado. Os

acordes tristes da Música trazem-nos dolorosas recordações; e seus acordes suaves nos trazem alegres

lembranças. A sonoridade de suas cordas faz-nos chorar à partida de um ente querido ou nos faz

sorrir diante da paz que Deus nos concedeu.

A alma da Música nasce do espírito e sua mensagem brota do Coração.

Quando Deus criou o Homem, deu-lhe a Música como uma linguagem diferente de todas as

outras. Mesmo em seu primarismo, o homem primitivo curvou-se à glória da música; ela envolveu os

corações dos reis e os elevou além de seus tronos.

Nossas almas são como flores tenras à mercê dos ventos do Destino. Elas tremulam à brisa da

manhã e curvam as cabeças sob o orvalho cadente do céu.

A canção dos pássaros desperta o Homem de sua insensibilidade, e o convida a participar dos salmos

de glória à Sabedoria Eterna, que criou a melodia de suas notas...

Mas o coração do homem pode pressentir e entender o significado dessas melodias que tocam seus

sentidos. A Sabedoria Eterna sempre lhe fala numa linguagem misteriosa; a Alma e a Natureza

conversam entre si, enquanto o Homem permanece mudo e confuso.

Mas o Homem já não chorou com esses sons? E suas lágrimas não são, porventura, uma eloqüente

demonstração?

Divina Música!

Filha da Alma e do Amor.

Cálice da amargura

E do Amor.

Sonho do coração humano,

Fruto da tristeza.

Flor da alegria, fragrância

E desabrochar dos sentimentos.

Linguagem dos amantes,

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Confidenciadora de segredos.

Mãe das lágrimas do amor oculto.

Inspiradora de poetas, de compositores

E dos grandes realizadores.

Unidade de pensamento dentro dos fragmentos

Das palavras.

Criadora do amor que se origina da beleza.

Vinho do coração

Que exulta num mundo de sonhos.

Encorajadora dos guerreiros,

Fortalecedora das almas.

Oceano de perdão e mar de ternura.

Ó música.

Em tuas profundezas

Depositamos nossos corações e almas.

Tu nos ensinaste a ver com os ouvidos

E a ouvir com os corações.

Trouxe aqui, para encerrar esta apresentação, as palavras de Khalil Gibran como exemplo de uma expressão artística que reúne os mesmos temas sobre os quais tenho falado e que dá cor à minha imagem da música, do coração, da arte, da alma, do espírito e do amor. Acredito que não há expressão artística sem que haja um temenos, sem o envolvimento do amor que possibilita o diálogo criativo e sem uma contextualização do sagrado. Esses aspectos e muitos outros ficam muito bem dimensionados pelo autor acima mencionado. Sinto a música e o coração de forma muito semelhante ao que foi expresso por ele. Para mim, no coração habita a alma harmonizada melodicamente pelo espírito criativo de Eros, do Amor, e por ele é transformada.

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INTRODUÇÃO

“Todos os procedimentos são sagrados quando interiormente necessários”.

Wassily Kandinsky Iniciarei com um sonho que tive no auge de minha angústia sobre o caminho que este trabalho deveria tomar.

Um amigo carrega sua pasta de caixa de areia e me diz que agora ele estava fazendo diferente não guardava mais as fotos, e sim uma maquete. Começo a folhear a pasta e é linda. É uma obra de arte. Em cada folha há uma placa esculpida (de areia). São imagens lindas, muito reais e bem-feitas. Fico impressionada principalmente com a última imagem, que é de um casal. Um príncipe e uma princesa, lado a lado. Digo a ele que havia gostado muito daquela imagem. Ele me diz que a imagem estava errada, que deveria ser um rei e uma princesa. Não entendo o que ele quer dizer psíquica e teoricamente. Pergunto para a Bety sobre essa diferença de casais (príncipe e princesa, rei e princesa). A Bety vem falar comigo. As pessoas, na mesa, querem ouvir sua explicação, pois estão curiosas. A Bety olha a pasta, que era novidade também para ela.4

Parece-me que esse sonho fala de diferenças de expressões e de olhares, o que novamente reforça a multiplicidade imagética que reflete, por sua vez, a multiplicidade arquetípica humana. O rei e a rainha, o príncipe e a princesa presentes aqui são figuras bastante comuns na alquimia. O que se mostra diferente, no entanto, é o desequilíbrio proposto de ser um casal de um rei e uma princesa. Parece ter havido uma renovação desse feminino, colocando-se a princesa como representante do novo, mas o rei continua representando o velho, o antigo. Talvez esse masculino deva se atualizar, renascer, deixando o casal em equilíbrio. Relaciono esse sonho à angústia que então sentia, e me pergunto se tal necessidade de renovação do rei não seria a necessidade de uma atualização na maneira de conduzir este meu trabalho, trazendo para a academia algo mais criativo e amoroso. Isso estaria ressaltado, também, pela apresentação inovadora e diferente das caixas em forma de placas esculpidas de areia, como um livro ou um portfólio. Todas essas imagens metaforizam o núcleo da discussão aqui presente.

A ideia central deste trabalho é traçar um paralelo entre o processo criativo no sandplay e o processo criativo na arte. Pode-se selecionar uma metáfora desse processo de expressão da alma e relacioná-lo ao processo expressivo artístico, que também fala da alma; reafirmo aqui

4 Sonho 21, dia 10/06/04. Liliana.

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as palavras de Kandinsky sobre tais procedimentos serem sagrados, por terem uma necessidade interna. A necessidade interna está ligada necessariamente ao sagrado e ao transcendente. Acredito que a necessidade interna represente uma necessidade psíquica da manifestação da alma e, portanto, do sagrado, não sendo possível falar do sagrado sem que se toque no transcendente, uma vez que este último está ligado a algo superior, maior que o indivíduo. O cineasta russo Andrei Tarkovski fala que esse caráter superior pode servir como ampliação do que está sendo dito

Na criação artística [...] a personalidade não impõe seus valores, pois está a serviço de uma outra idéia geral e de caráter superior. O artista é sempre um servidor, e está eternamente tentando pagar pelo dom que, como que por milagre, lhe foi concedido.5

Jung corrobora a ideia de o indivíduo estar a serviço da arte, como um instrumento para tal manifestação, e meu trabalho clínico tem como base essa mesma visão da manifestação criativa. Tarkovski, por sua vez, não só fala do superior, mas também do que percebo ser o sacrifício de se estar a serviço de tal criação e da responsabilidade que tal serviço traz àquele que possui o dom da criação. A arte vem e leva o indivíduo e o coletivo a algo maior. “O objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem”.6 Assim, para Tarkovski, a arte conduz o homem para o bem, prepara-o para a morte, que eu considero ser a abrangência do espiritual e do transcendente, e que percebo estar presente muitas vezes no sandplay. Considero que mesmo sendo esta uma técnica terapêutica - e, portanto, com tal intenção -, a criação do cenário não consegue ser dominada totalmente pelo ego a ponto de ele direcionar seu resultado de forma intencional, nem mesmo para sua própria cura. Vemos, ainda em Tarkovski, seus questionamentos finais, que direcionam o pensamento à transcendência

Gostaria de pedir ao leitor – confiando nele inteiramente – para acreditar que a única coisa que a humanidade criar com o espírito desinteressado é a imagem artística. Não é possível que o significado de toda a atividade humana esteja na consciência artística, no ato criativo inútil e desinteressado? Não poderíamos também dizer que nossa capacidade de criar é uma prova de que fomos criados à imagem e semelhança de Deus?7

5 Tarkovski, A. – Esculpir o tempo. (1990, p. 40, 41). 6 Tarkovski, A. – Op. cit. (1990, p.49).

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As expressões das emoções e dos processos internos e externos sempre fizeram parte da vida humana. A arte, por sua vez, é parte inerente a esse expressar, seja ela ativa ou passiva. A arte expressa o cerne do indivíduo e ao mesmo tempo diz muito a outros que nela se espelham. Além da busca de expressão, há também uma busca de conhecimento e discernimento do que se expressa. A arte, no entanto, age também como facilitadora do processo que possibilita a compreensão de conteúdos inconscientes e do mundo. Ela é agente de um encontro dialético via Eros que propicia a transformação e a visualização de quem se é. Nos dizeres de Vincent van Gogh podemos perceber essa busca “‘I’m an artist’…means ‘I am seeking’”.8 Vejo que o meu fazer de imagens na areia parece ser uma eterna busca que

nunca se esvai por completo claro que não só no sandplay, mas também no desenho ou na escultura o mesmo se passa. Parece que esse é um sentimento comum no campo do criativo. Esse sentimento me remete também aos dizeres de Camille Claudel “Há sempre algo ausente que me atormenta”.9 A busca pela totalidade gera uma constante ânsia e também esse

tormento do qual Camille fala.

Tenho como premissa que as qualidades das linguagens estéticas possam ser representadas não somente em forma de arte, mas também no material usado para tal arte ou expressão. Vejo isso na escolha da criação de um poema ou de uma coreografia, uma composição para harpa ou piano, uma tela ou um trabalho em argila. Contribui com essa ideia os dizeres de Tarkovski:

Procurar a própria verdade (e não pode existir nenhuma outra verdade ‘comum’) é procurar a linguagem específica de cada um, o sistema de expressão destinado a dar forma às idéias pessoais de cada um.10

A escolha da areia me traz um sentimento de continência, algo que contém o que meu corpo não consegue conter. Sinto um alívio total, e não apenas emocional, como se dá no desenho. Muitas vezes necessito muito mais do que um único meio de expressão e ampliação simbólica. Rose menciona essa diferença de técnicas e materiais usados na arte “In painting, for example, the look of acrylic is not the same as that of oil, and what you can do with the materials differs”.11 A arte que se cria expressa em si um simbolismo único gerado por sua

8 Auden (1961, p.90). “’Eu sou um artista’ … significa ‘Eu estou buscando’”. (Tradução minha). 9 Claudel, C. – citação exibida no DVD Chico Buarque “À Flor da Pele”.

10 Tarkovski, A. – Op. cit. (1990. p.99-100). Grifos do original.

11 Rose, G. – The power of form. (1980, p. 4) G. “Na pintura, por exemplo, a aparência do acrílico não é a

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qualidade e técnica. A cada textura emocional ou psíquica há uma qualidade expressiva semelhante e satisfatória ao criador. Sinto o sandplay, como uma dessas formas de criação, tendo material e simbolismo bastante específicos, e também porque encontro no sandplay mais uma diferente manifestação simbólica do ser. Vejo mais uma vez em Rose a referência à interligação entre forma e material

In its abstract sense, form refers to the shape, structure, particular arrangement, or coordination of something, qualities which are distinguished from and yet dependent on the material itself connects to form.12

Devo mencionar aqui o que entendo por uma forma em potencial, que é, para mim, a representação de todo um manancial de possibilidades, portanto, potenciais, que somente ao se encontrar com o conteúdo, passa a ser criação, existência. Os potenciais de forma e conteúdo casam-se gerando uma expressão que só existe com a participação da consciência, e, para tanto, necessita deixar de ser potencial para ser manifesto, criação. Reafirmo assim o que foi dito acima a respeito do sandplay e seu potencial criativo específico.

Em minha prática clínica, assim como em minha experiência pessoal, percebi que com a elaboração dos conteúdos internos através do sandplay uma coerência e uma linguagem estética são incorporadas aos cenários, havendo uma linguagem artística própria neles expressa. Percebo que com a maior assimilação dos conteúdos expressos simbolicamente nos cenários houve em meu processo uma maior satisfação e possibilidade de representação estética dos conteúdos que se faziam prementes a serem expressos. Claro que essa linguagem estética pode ou não se estabelecer, mas, assim como Bosi fala do artista, podemos falar do indivíduo que se expressa no sandplay:

Estamos diante de uma tela móvel de operações que a intencionalidade do artista vai plasmando, graças ao domínio das técnicas aprendidas, o seu próprio modo de formar que, a certa altura, pode alcançar o nível de estilo pessoal.13

Não há no sandplay um ensinamento técnico do fazer, mas sempre há saídas criativas de caminhos para a realização de imagens que se fazem necessárias, e percebo que essas “saídas” se tornam mais e mais elaboradas com o desenvolver do processo e o encontro dialético nele envolvido. Gostaria de trazer agora dois exemplos comparativos dentro do meu

12 Rose, G. – Op. cit. 1980. “No seu sentido abstrato, a forma se refere ao formato, à estrutura, aos arranjos

particulares, ou à coordenação de alguma coisa, qualidades que são distintas e ainda dependentes do material em si conectado à forma”. P.3. (Tradução minha).

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próprio processo, e de semelhante tema ou estrutura. Segue o primeiro cenário feito em 1995 e, em seguida, outro cenário quatro anos depois, em 1999. Ambos têm no centro superior a forma arredondada e divindades. No entanto, a segunda imagem elabora melhor o uso do material e sua disposição. A muralha de pedras em forma circular apresenta a necessidade de uma qualidade de relevo ainda mais acentuado que na primeira. A segunda imagem passa uma clareza maior em termos de definições espaciais e uso do material.

Primeiro cenário – 28/06/95. Fig. 2

Cenário (4 anos depois) – 11/05/99. Fig. 3

Na sequência seguinte, temos o segundo cenário, feito também em 1995, e um outro, feito cinco anos depois, em 2000. Aqui percebo a presença do par, do casal, assim como um relevo um pouco mais acentuado, como na imagem anterior. Sendo que, na primeira imagem, esse relevo fica diluído e impreciso entre as peças. Já na segunda imagem, o relevo é claramente

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diferenciado e marcado, usando-se os devidos artifícios. As pedras coloridas tomam forma e lugar específicos, sem ter a aparência acidental da primeira imagem desse par. O casal toma um lugar de destaque na segunda imagem e toma a forma humana, que muda a qualidade da imagem, aproximando-a da consciência e, portanto, da elaboração processual desses dois personagens. Falarei sobre o “um” e o “dois” em capitulo futuro, pois ambos seguem o fio dessa trama imagética e consequentemente, devem ser abordados.

Segundo cenário – 30/08/95. Fig. 4

Cenário (5 anos depois) -15/06/00. Fig. 5

Voltando a falar de estética, e assim ampliando as imagens necessárias para a trama tecida da ideia aqui proposta, Bosi diz ainda que:

A escolha de uma palavra, e não de outra, de um traço, e não de outro, responde ora a determinações do estilo da época (a face cultural do gosto), da ideologia e da moda, ora a necessidades profundas de raiz afetiva ou a uma percepção original da realidade... a práxis estética é mais rica do que a habilidade retórica: ela aciona

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potências lúdicas, críticas e, em última instância, existenciais, que informam o seu modo peculiar de ser.14

Acredito que a escolha, mesmo que determinada pela cultura ou pelo estilo da época, é sempre uma manifestação e revelação do indivíduo, de maneira mais ou menos profunda. A psique se revela em tudo o que cria, logo, mesmo sendo influenciada por algo aparentemente externo, representa a ressonância interna de dada situação.

Podemos dizer que a práxis estética gera um espaço livre e extenso ao artista para manifestar sua obra da maneira mais profunda que puder, da mesma forma que se dá no sandplay. Para Worringer, o estilo é definido como um “conjunto de elementos da obra de arte que derivam psiquicamente da procura de abstração”.15 Isso fica sempre muito claro no meu processo

pessoal e no meu trabalho clínico, pois a todo instante desvelamos e revelamos o que está sendo dito de nós mesmos, não importando a procedência do material que se apresenta em sessão, uma vez que este revela constantemente a psique, de forma mais ou menos clara, mais ou menos simbólica. Sem dúvida, o processo de dar forma a um ou mais conteúdos no sandplay, deriva psiquicamente da procura de uma abstração, que só é manifesta através do filtro psíquico do indivíduo que se expressa de forma única e característica.

Tomemos o que Bosi fala sobre o que se entende por arte:

Constatar [...] o uso social da pintura e da música, ou a sua função de mercadoria, não deve impedir-nos de ver antropologicamente a questão maior da natureza e das funções da arte. É preciso refletir sobre este dado incontornável: a arte tem representado, desde a Pré-História, uma atividade fundamental do ser humano. Atividade que, ao produzir objetos e suscitar certos estados psíquicos no receptor, não esgota absolutamente o seu sentido nessas operações. Estas decorrem de um processo totalizante, que as condiciona: o que nos leva a sondar o ser da arte enquanto modo específico de os homens entrarem em relação com o universo e consigo mesmo.16

Esse processo totalizante que Bosi descreve pode ser comparado ao de individuação17 que se faz presente na fundamentação teórica do sandplay, por ser esta parte fundamental da

14 Bosi, A. – Op. cit. (1989, p 25). Grifos do original. 15 Apud Bosi, A. – Op. cit. (1989, p 32). Grifos do original. 16 Bosi, A. – Op. cit. (1989, p. 7-8).

17 A individuação é um conceito central da Psicologia (Analítica) Junguiana. É o processo pelo qual o indivíduo

se torna ele mesmo, ou seja, um processo pelo qual o indivíduo realiza muitos dos potenciais existentes em sua personalidade. A individuação une a pessoa com sua própria profundidade e a leva a se conectar com fatores sociais e culturais. O processo de individuação leva o indivíduo a uma maior consciência de si mesmo, assim como do mundo como um todo, dando a ele a consciência da reciprocidade inerente entre indivíduo e mundo. Esse processo busca, portanto, a totalidade da psique.

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teoria de C. G. Jung. Devo dizer que o fio condutor das imagens criadas na areia dá visibilidade ao processo de individuação, esse impulso da psique de se tornar una. Quando há um aprofundamento no processo do sandplay, há também a conexão do individual com o universal, da mesma forma que Bosi descreve ocorrer na arte. Vale dizer que, assim como no sandplay, a arte pode levar o homem a uma relação dialética consigo mesmo e com o universo. Resulta desse diálogo o que Jung diz ser a função adaptativa da arte, entendendo este conceito como função integrativa.

Um diferencial importante da arte é a integração de forma e conteúdo. Vejo nas palavras de Rose a este respeito o encontro, ou o casamento realizado entre esses dois aspectos: “Of all features that distinguish art from ordinary communication, the first is surely the peculiar way in which form and content are bonded together.”18 Acredito que uma das grandes

qualidades do trabalho analítico com sandplay seja exatamente essa riqueza da imbricação de forma e conteúdo característica que dá maior possibilidade de expressão psíquica. Rose fala, ainda, da necessidade da forma tanto no desenvolvimento do sentido do si mesmo como na imaginação - elementos importantes a qualquer processo criativo. A imaginação é um aspecto fundamental na significação simbólica e, para tal, necessita dar forma a seu conteúdo, seja ela a que for necessária para que se configure tal imaginação:

Imagination […] involves the ability to create images, to elaborate memories and combine them playfully with new perceptions, to construct a different form. It aims at transcending the limitations of personal space and time. Creative imagination does yet more. It enlarges the dimensions of reality, but at the same time reunifies it with universal significance.19

Vejo a imaginação como um veículo no qual a imagem arquetípica é simbolizada através da forma que a ela se dá. Assim, pode haver uma ampliação de consciência e uma reintegração dessa forma, então consciente, à totalidade. Visualizo aqui o mesmo caminho encontrado no processo do sandplay: ao se usar a imaginação ou o sonho, dá-se forma a conteúdos internos que são vislumbrados no cenário. A forma e o conteúdo podem ser vistos como a voz que é dada ao sentido da imagem simbólica para que se faça ouvido pela consciência. Nesse

18 Rose, G. – Op. cit. (1980, p. xiv). “De todas as características que distinguem a arte da comunicação ordinária,

na primeira está certamente a maneira peculiar pela qual forma e conteúdo são ligados”. (Tradução minha)

19 Rose, G. – Op.cit. (1980, p. 1). “A imaginação [...] envolve a habilidade de criar imagens para elaborar

memórias e combiná-las de forma lúdica com novas percepções, para construir uma forma diferente. Tem como objetivo transcender as limitações de tempo e espaço pessoal. A imaginação criativa faz ainda mais. Ela amplia as dimensões de realidade, mas ao mesmo tempo a integra à significância universal” (Tradução minha).

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diálogo, amplia-se a consciência e, consequentemente, há um processo adaptativo à realidade.

Conforme o indivíduo dá início a essa dialética entre consciente e inconsciente, ele adquire uma ampliação da consciência e vai tornando-se quem ele é ou, de fato, deveria ser. Rose fala desse transformar-se ao ver-se na própria criação:

We are what we do, and we become what we are. With luck, we may learn something new along the way. It was Garbor Peterdi who told me that you paint to see what you cannot see unless you paint it yourself. Or, write it. 20

Quando damos forma a um cenário na areia, somos nele refletidos e, ao olhar nosso próprio reflexo, temos a chance de nos tornar quem somos na nossa totalidade. Assim se dá em todas as áreas de nossa individualidade: nos espelhamos e nos reconhecemos transformados. Ampliando um pouco mais o aspecto da relação do individual com o coletivo, gostaria de ressaltar a comparação feita por Barcellos entre a obra de arte e o trabalho analítico:

Uma obra de arte que ofereça uma leitura simbólica parece servir ao mesmo propósito – para a coletividade e para uma época – a que serve o trabalho individual de um paciente com os símbolos em análise.21

Desse paralelo infiro a dimensão transpessoal simbólica em ambos, na obra e no trabalho analítico, e a transformação simbólica em seus diversos aspectos e amplitudes. Considerando a base arquetípica dos símbolos, podemos compreender a funcionalidade da expressão de tais conteúdos para o indivíduo, para a coletividade e para uma época.

Acredito que devo aprofundar, ainda, o referencial teórico da psicologia analítica de C. G. Jung - o que será feito em um capítulo à parte -, por ser o referencial deste trabalho. Referi-me anteriorReferi-mente ao processo de individuação, mas devo Referi-mencionar breveReferi-mente outros aspectos, que serão abordados mais extensamente em futuros capítulos, por fazerem parte da compreensão do processo no sandplay. Um desses aspectos é o conceito de “função transcendente”, fundamental para a compreensão da transformação simbólica que ocorre nesse processo e em muitos outros.

Segundo Jung, o inconsciente é a matriz da consciência; é nele que estão os germes de novas possibilidades. O símbolo tem um significado polivalente, que exprime um fato psíquico da melhor forma possível. O poder de transmutação da libido através do símbolo é, às vezes, chamado de função de transcendência, ou seja, a

20 Rose, G. – Op. cit. (1980, p. ix). “Nós somos o que fazemos, e nos tornamos o que somos. Com sorte nós

podemos aprender alguma coisa nova pelo caminho. Foi Garbor Peterdi quem me disse que, você pinta para ver o que você não pode ver a menos que você mesmo o pinte, ou o escreva” (Tradução minha).

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função psíquica que é capaz de realizar uma síntese, a nível mais elevado, entre duas tendências contrárias.22

Novamente nos defrontamos com a dialética que ocorre no processo de transformação da energia psíquica através da forma simbólica. Aparentemente, os efeitos da forma estética passam por tais transmutações e sínteses de aspectos diversos. Rose fala desse trabalho harmonizador da arte, o qual aumenta a autoestima e é claramente percebido nos processos psíquicos:

Moreover, aesthetic form effects a far more harmonious reconciliation of the dual nature of time and space, as well as our own thoughts and feelings, than our own mental operations are capable of doing in their moment-by-moment, workaday activity. Thus, the art object not only stands for the working of the mind, but the mind idealized; so, a partial fusion with the art object is fusion with an idealized object standing for the self. The recurrent merging and reseparating from an art object (standing for the harmonized workings of the mind) enhances self-esteem.23

Na tentativa de uma maior compreensão dessa transformação simbólica e da emergência desse símbolo ou motivo simbólico na expressão artística, assim como no sandplay, é preciso ter uma breve visão da dinâmica psíquica. Vejo comumente na arte que o artista pauta seu trabalho em algum tema, que pode ser mais ou menos intenso, com maior ou menor duração. Segundo Jung, o psiquismo se formou com o desenvolvimento da humanidade, e, dessa forma, tudo o que já foi vivido pelo humano é parte inerente desse psiquismo. Logo, em ocasiões nas quais o indivíduo vive conflitos ou dados aspectos de sua humanidade, a dimensão inconsciente revela seus aspectos coletivos, fazendo surgir imagens típicas de natureza simbólica. Vale lembrar que essas imagens não só aparecem na expressão artística como, também, em sonhos, imaginações, lembranças, etc. Dessa forma a psique usa de todo o arcabouço do conhecimento humano, que se encontra no inconsciente coletivo, para que tal experiência seja transformada, elaborada e integrada à consciência. A psique, a princípio, disponibiliza uma imagem simbólica que emerge como objeto, que poderá dar início a um diálogo com a consciência. A partir desse processo dialético ocorre a

22 Zimmermann, E. – A integração de processos interiores no desenvolvimento da personalidade. (1992, p. 18). 23 Rose, G. – Op.cit. (1980, p. 13). “Além disso, a forma estética afeta uma reconciliação ainda maior da

natureza dual de tempo e espaço, assim como nossos próprios pensamentos e sentimentos, do que nossas próprias operações mentais são capazes de fazer momento a momento, nas atividades cotidianas. Então o objeto de arte não serve apenas para o trabalho da mente como o da mente idealizada; logo, uma fusão parcial com o objeto de arte é uma fusão com um objeto idealizado representando o si mesmo. A integração recorrente e a re-separação de um objeto de arte (servindo para o trabalho harmonizado da mente) aumenta a autoestima” (Tradução minha).

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transformação simbólica da imagem, que mantém um eixo temático e perdura o tempo necessário. Observamos vários exemplos desse eixo ou fio temático na arte - como é o caso de Monet e sua pesquisa com a incidência de luz e cores, ou Toulouse Lautrec com suas mulheres de cabaré, etc. Zimmermann discorre sobre esse diálogo entre a consciência e o ímpeto criador:

O inconsciente jamais está em repouso, inativo: está sempre agrupando e reagrupando seus conteúdos. Essa atividade normalmente é coordenada com a consciência, numa relação de compensação ou de complementação. Quando um mitologema é elaborado para assumir a forma literária de um mito, é a consciência que o modela, mas o ímpeto criador e as sensações que expressa e evoca provêm do Inconsciente Coletivo.24

Devo mencionar aqui que foi dentro dessa linha temática que a série de cenários, que serão apresentados neste trabalho, foi escolhida. O tema da série é o coração – portanto, um símbolo que pode ser ampliado para sua dimensão coletiva. Dentro dessa visão será feita uma ampliação temática do coração em várias dimensões, para que se tenha um maior embasamento para a análise da série e de sua transformação simbólica. Lembremos, porém, que essa análise se refere à criação e não ao criador.

O coração, por vezes, também aparece ligado à criação, à anima, à visão, etc. Lily, esposa do pintor Paul Klee, fez a seguinte inscrição no túmulo do pintor cuja causa mortis foi paralisia ou enrijecimento do coração:

Here Rests the Painter PAUL KLEE. Born on December 18, 1879. Died on June 29, 1940. I cannot be grasped in here and now. For I live just as well with the dead as with the unborn. Somewhat closer to the heart of creation than usual. But far from close enough.25

Assim, o tema do coração será incorporado ao tema proposto deste trabalho, que abrange a criatividade, seu processo e tudo aquilo que o cerca. Jung, em seu seminário sobre a psicologia da Kundalini Yoga26, fala da importância desse centro simbólico e corporal - o coração - que alojaria não só as emoções, mas também o pensamento. Poderia dizer que há

24 Zimmermann, E. – Dança meditativa e caixa de areia associadas à análise verbal como técnica facilitadora

de integração de processos simbólicos. (1996, p. 9).

25 Godwin, G. – Heart (2001, p. 299). “Repousa aqui o pintor Paul Klee. Nascido em 18 de dezembro de 1879.

Morto em 29 de junho de 1940. Eu não posso ficar preso no aqui e agora. Porque eu vivo tão bem com os mortos quanto com os não nascidos. De algum modo mais perto do coração da criação do que o usual, mas longe de estar perto o suficiente” (Tradução minha).

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em tal símbolo uma síntese desses dois aspectos opostos, mas necessários para que haja a transcendência.

Para concluir, espero que, após toda a ampliação teórica e simbólica, haja uma unificação e significação do conteúdo total deste trabalho, tendo como centro a série temática do coração. O coração deverá ser o centro motor e criativo de todo o processo e do caminho que se inaugura.

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RECORTES DE PENSAMENTOS SOBRE ARTE “Sim, eu quero saber. Saber para melhor sentir, sentir para melhor saber”.

Cézanne

Gostaria, neste capítulo, de organizar algumas ideias sobre o pensamento da arte e sua estética no intuito de aprofundar a investigação do processo criativo e das imagens criativas. Antes, no entanto, quero comentar a citação acima junto à minha impressão sobre a arte e ao que tenho explicitado até o momento. Acredito que o saber mencionado por Cézanne é o da busca da totalidade, ou seja, o saber almejado no processo de individuação. O olhar e o fazer artístico apenas acontecem quando há um encontro, e todo encontro implica uma transformação e uma experiência de saber, que se aprofundam com a intensidade de cada encontro direcionado à totalidade.

Inicialmente, veremos os significados das palavras “criar”, “criador” e “criatividade”. Gostaria de pontuar que as três se aplicam ao sandplay e de que aqui é feita uma ampliação desses aspectos.

Criar V.t.d. 1. Dar existência a; tirar do nada. 2. Dar origem a; gerar, formar. 3.

Dar princípio a; produzir, inventar, imaginar.

Criador Adj. Inventivo, fecundo. Criatividade S.f. Qualidade de criador.27

Podemos dizer que os sentidos dessas palavras irmanam o fazer criativo do sandplay com o fazer da arte em todo seu âmbito. O artista é um renovador, traz algo de novo para o universo, e criar é dar vida a imagens que refletem esse diálogo entre mundo interior e exterior, inconsciente e consciente. Criar imagens só é possível dentro de um encontro amoroso, no seu sentido mais amplo, entre os dois mundos citados acima. Vale dizer que a semelhança do fazer artístico com a criação de cenários no sandplay se dá somente em seus aspectos de criação e diálogo entre esses mundos, e não em seu produto ou obra. O que aqui estou dizendo é reafirmado pelas palavras de Martin Buber:

Fazer é criar, inventar é encontrar. Dar forma é descobrir. Ao realizar eu descubro. Eu conduzo a forma para o mundo do ISSO. A obra criada é uma coisa entre coisas, experienciável e descritível como uma soma de qualidades. Porém àquele que contempla com receptividade ela pode amiúde tornar-se presente em pessoa.28

27 Ferreira, A. B. de H. - Novo Dicionário da Língua Portuguesa (1993, p. 153). 28 Buber, M. – Eu e Tu (1979, p. 12).

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Dando sequência à pesquisa sobre o processo artístico e da estética da arte, temos a visão de Luigi Pereyson, de que os “temas centrais da Estética consideram como decisivos do processo artístico três momentos que podem dar-se simultaneamente: o fazer, o conhecer e o exprimir. Estas três dimensões estão presentes em todas as obras de arte”.29 Discutiremos com maiores detalhes cada momento em relação ao sandplay, mas antes podemos fazer uma pequena reflexão sobre essa relação. O fazer dá-se na própria execução do cenário, o conhecer parece estar relacionado à ampliação da consciência dos conteúdos apresentados no cenário e, finalmente, o exprimir estaria na condição de dar forma e linguagem ao que deseja se manifestar. Restaria ainda um próximo passo, o qual Jung conceituou como “consequência ética”, que seria atualizar essa experiência na vida, trazer a nova atitude para a vida concreta. Essa consequência ética é um passo esperado na terapia do sandplay, assim como na análise verbal - no entanto, não na arte. Fazendo essa reflexão, parece-me que o sandplay se diferencia da arte em sua técnica e em sua função terapêutica, que engloba uma transformação na atitude consciente do indivíduo que o pratica.

Com o objetivo de ampliar o conceito do primeiro momento da arte - como construção, como fazer -, trago o trecho de Bosi referente a isso:

A arte é um fazer. A arte é um conjunto de atos pelos quais se muda a forma, se trans-forma a matéria oferecida pela natureza e pela cultura. Nesse sentido, qualquer atividade humana, desde que conduzida regularmente a um fim, pode chamar-se artística. Para Platão exerce a arte tanto o músico encordoando a sua lira quanto o político manejando os cordéis do poder ou, no topo da escala de valores, o filósofo que desmascara a retórica sutil do sofista...30

Vejo novamente aqui a semelhança da arte com a expressão usada no sandplay, onde há os mesmos atos que mudam a forma tanto da areia como da disposição dos objetos usados no cenário. É claro que devemos questionar o uso de materiais preestabelecidos, como é o caso das miniaturas usadas nessa técnica. Sabemos, no entanto, que elas são sempre utilizadas diferentemente e com formas que as redimensionam no espaço, criando assim novas respostas expressivas sempre. Além de poder considerar esses arranjos como uma forma de bricolagem, e por mais que o material seja sempre o mesmo, disponível a várias pessoas, seu uso e sua forma final diferem muito uma da outra.

29 Apud Bosi, A. – Op. cit. (1989, p. 9). Grifos do original. 30 Bosi, A. – Op. cit. (1989, p. 13).

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No que se refere ao juízo estético desse fazer, quando nos referimos aos cenários na areia, nem sempre podemos afirmar que ele esteja presente, mesmo que sempre haja um momento no qual o indivíduo considere que sua obra esteja pronta. No entanto, isso não garante uma satisfação estética. Vejamos o que Bosi diz sobre a contradição da estética e do livre fazer criativo:

O jogo estético resolveria a contradição, a primeira vista insolúvel, entre a liberdade de formar (a arte é uma livre combinatória de imagens e representações) e a sua necessidade imanente: o juízo estético que regula por dentro o fazer artístico visa à harmonia das formas sensíveis. Caberia à faculdade do gosto perceber quando a síntese foi alcançada, isto é, quando o artista produziu uma bela representação da existência, ou quando malogrou no seu intento.31

Percebo no meu fazer do sandplay que, com o aprofundamento dos conteúdos que desejam se manifestar, há um maior período de gestação dessas imagens por nascer e, da mesma forma, uma maior satisfação estética da síntese apresentada por tais imagens, sendo essa síntese sempre algo novo, como no nascimento.

O segundo momento da arte é o da arte como conhecimento, um ato de percepção que reflete o que se convencionou chamar de “realidade” natural, psíquica e histórica. Platão retoma a questão da arte como forma peculiar de conhecimento no Livro das Leis. Ele diz que tanto pinturas quanto poemas, danças e melodias, produzem ícones (imagens semelhantes aos objetos). Assim, as artes seriam produtoras de imagens semelhantes à natureza (Bosi, 1989, p. 45). Volto aqui à ideia de Jung de que a psique é a única realidade objetiva, e projeta a si mesma em tudo. Sendo assim, imagem e realidade nada mais são do que reflexo da psique que se expressa e de tudo participa. Tarkovski (1990, p. 38) fala da função da arte como conhecimento, e de que a humanidade foi condenada a uma busca da verdade no momento em que Eva comeu a maçã da árvore do conhecimento.

Já em Hegel voltamos à ideia de totalidade ao se falar de estética: “A tripartição da Estética hegeliana (Arte Simbólica, Arte Clássica, Arte Romântica) supõe que o Espírito se move no tempo e objetiva-se em momentos ideais totalizantes”.32 Talvez fosse verdadeira a

afirmação de que quanto mais totalizante o cenário, mais estético ele deva ser. Pude vivenciar tal experiência, mas não teria dados para aqui reafirmá-la. Percebo, também, a necessidade do espírito penetrar a matéria para que tal sentimento de totalidade possa aproximar-se da

31 Bosi, A. – Op. cit. (1989, p. 15). 32 Bosi, A. – Op. cit. (1989, p. 45).

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realidade psíquica. Acredito que o espírito de Eros, unindo-se à matéria, vislumbra e expressa a alma em forma de imagem, em síntese criativa. Martin Buber fala também desse encontro que se dá na arte e da fértil dinâmica desse encontro, como veremos a seguir. Antes, porém, gostaria de pontuar que o “ISSO”, para Buber, está relacionado com o objeto, e o “TU” com o sujeito.

O ato essencial da arte determina o processo pelo qual a forma se tornará obra. O face-a-face se realiza através do encontro; ele penetra no mundo das coisas para continuar atuando indefinidamente, para tornar-se incessantemente um ISSO, mas também para tornar-se novamente um Tu irradiando felicidade e calor. A arte ‘se encontra’: seu corpo emerge da torrente da presença, fora do tempo e do espaço, para a margem da existência.33

O terceiro momento é o da arte como expressão; e, para compreendê-lo melhor, vale falar sobre o significado geral de “expressão”. Tomemos primeiramente os dizeres de Bosi sobre tal aspecto.

A idéia de expressão está intimamente ligada a um nexo que se pressupõe existir entre uma fonte de energia e um signo que a veicula ou a encerra. Uma força que se exprime. Força e forma remetem-se e compreendem-se mutuamente. A relação constante entre força e forma permite a constituição de um saber que investiga as correspondências entre as expressões corporais e a sua qualidade subjetiva.34

Força e forma, da maneira como as entendo, estão indiferenciadas e indiscriminadas quando não manifestas ou inconscientes. Força, como potencial, só é possível de se manifestar ao encontrar a forma de se expressar, ou a matéria imbuída de virtude plástica. Não consigo as considerar já previamente unidas no manancial do caos criativo, pois, se assim fosse implicaria um determinismo que, para mim, é avesso ao encontro criativo amoroso que sempre traça novos caminhos. Temos, ainda nos dizeres de Buber algumas contribuições: “A criação revela a sua essência como forma no encontro. Ela não se derrama aos sentidos que a aguardam, mas se eleva ao encontro daqueles que sabem buscar [...] nada se revela senão pela força atuante na reciprocidade do face a face”.35

Quando olho para o “expressar-se” no sandplay, percebo claramente essa relação dialética de força e forma, espírito e matéria. Há um impulso inconsciente que se expressa ao dialogar com a forma que se cria, não raro quando objetos ou movimentos se formam sem que o indivíduo consiga dar-lhes uma razão lógica ou consciente. A dialética de força e forma é o

33 Buber, M. - Op. cit. (1979, p. 16). 34 Bosi, A. – Op. cit. (1989, p. 50). 35 Buber, M. – Op. cit. (1979, p. 29).

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próprio processo expressivo. Aprofundemo-nos agora um pouco mais, usando a visão hegeliana, acerca do processo expressivo:

Hegel dava o nome de ‘expressão’ precisamente a esse tecido audível, visível: esse ‘existir sensível’ inerente a todo fenômeno simbólico.

É dinâmica a relação que se estabelece entre as forças e as formas na obra de arte; é graças ao movimento que passa de umas para as outras, ou melhor, é no interior desse movimento que nasce o ato expressivo: o gesto plástico, a corrente melódica, a frase lírica.

A energia persegue formas que a liberem e, ao mesmo tempo, a intencionem e a modulem. O pathos que não encontra essas formas pulsa aquém da experiência artística. Quem chora ainda não está cantando. Ou, na confissão de Paul Klee: ‘Eu crio para não chorar; essa é a primeira e última das razões’. 36

Inúmeras vezes esse processo se dá no sandplay, assim como em outras atividades criativas, que dão lugar, ou continência, a algo que necessita se expressar e criar forma, algo que exige passagem sem que possamos negar o pedido, já que nossas almas correm risco de serem consumidas e corrompidas.

Eis a eterna origem da arte: uma forma defronta-se com o homem e anseia tornar-se uma obra por meio dele. Ela não é um produto de tornar-seu espírito, mas uma aparição que se lhe apresenta exigindo dele um poder eficaz. Trata-se de um ato essencial do homem: se ele a realiza, proferindo de todo o seu ser a palavra-princípio EU-TU à forma que lhe aparece, aí então brota a força eficaz e a obra surge.37

Aqui Buber reafirma o lugar de instrumento dado ao artista pelo qual a obra apenas passa, pois não lhe pertence, e ainda da dialética dinâmica proferida entre EU-TU que cria o caminho totalizante da psique em direção ao Self.38Nessa confrontação dialética a forma se revela ao artista, que a torna imagem plástica, seja ela qual for. A imagem, por sua vez, origina-se do mundo dos deuses - representação do inconsciente neste mundo do humano.

Tarkovski reitera o conflito, o diálogo, a dialética necessária ao artista:

As obras-primas nascem da luta travada pelo artista para expressar seus ideais éticos. Na verdade, é destes que nascem seus conceitos e suas sensações. [...]. Sua obra sempre será um esforço espiritual que aspira à maior perfeição do homem: uma imagem do mundo que nos fascina por sua harmonia de sentimentos e idéias, por sua nobreza e seu comedimento.39

Para dar continuidade ao tema do processo de criação e do objetivo da arte temos ainda em Tarkovski a expressão de sua ideia da arte como interlocução para a procura do sentido da vida:

36 Bosi, A. – Op. cit. (1989, p.56). 37 Buber, M. – Op. cit. (1979, p. 11).

38 O Self, na concepção junguiana, refere-se à totalidade psíquica. 39 Tarkovski. – Op. cit. (1990, p. 26-27).

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De qualquer modo, fica perfeitamente claro que o objetivo de toda a arte – a menos, por certo, que ela seja dirigida ao ‘consumidor’, como se fosse mercadoria – é explicar ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual é o significado da sua existência. Explicar às pessoas a que se deve sua aparição neste planeta, ou, se não for possível explicar, ao menos propor a questão.40

Com isso, Tarkovski esclarece o que representa o aparecimento desse espírito e a eterna e insaciável ânsia pelo espiritual, pelo ideal.

Abordei aqui alguns dos aspectos da arte e da estética da arte que, de alguma forma, assemelham-se ao processo do sandplay. Passarei agora, a uma maior compreensão dessa técnica terapêutica.

“Você pode ser um poeta, mas não pode se transformar num poeta”. Hermann Hesse

40 Tarkovski. – Op. cit. (1990, p. 38).

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SANDPLAY / CAIXA DE AREIA

“Work of the eyes is done, now go and do heart work on all the images imprisoned within you.”41

Rainer M. Rilke

Sabe-se que o contato com a natureza é essencial para o equilíbrio do indivíduo. O contato com a areia e o manuseio da mesma nos remete a uma relação com a natureza que é energizante. Em minha prática clínica percebo que a relação com a areia leva o indivíduo a um processo introspectivo, no qual as mãos são o meio condutor dessa relação meditativa com a imagem. Ele entra em contato com formas mais instintivas e intuitivas de si - formas não valorizadas no nosso cotidiano. Segundo Ruth Ammann, as mãos no sandplay são mediadoras entre o Espírito e a Matéria, servindo de ponte ao ato criativo, assim como proporcionam esse encontro e sua síntese. Melhor dizendo, as mãos agem como um psicopompo42 entre as imagens potenciais internas e a criação em si, a materialização das formas na areia (Figura 6, pág. 42). Trago aqui um diferente ângulo de semelhante aspecto nas palavras de Rose.

What makes for artistic expression is the capacity to work an idea and emotion over in some definite medium. Artistic endeavor, Dewey claims, is not direct discharge, but indirect expression involving the transformation of the artistic’s inner thoughts and feelings through the modification of the outer, objective material, each in organic connection with the other, such that new relationships are formed and new emotional responses evoked. Form is a way of presenting experienced matter. An art work orders matter through form; it reduces the raw materials of experience. What it is depends on how it is done. Experience unites form and matter. They can no more be separated than a living creature from its environment.43

41 “O trabalho dos olhos foi feito, agora vá e faça o trabalho do coração em todas as imagens aprisionadas dentro

de você”. “Ponto de Virada” Rilke. (Tradução minha).

42 Psicopompo é considerado um guia, ou aquele que liga dois mundos, o mundo dos mortos e dos vivos. 43 Rose, G. Op. cit. (1980, p. 6) “O que contribui para a expressão artística é a capacidade de trabalhar uma

ideia ou emoção em algum meio definido. Dewey diz que o esforço artístico não é uma descarga direta, mas uma expressão indireta envolvendo a transformação dos pensamentos e sentimentos internos artísticos através da modificação do externo, do material objetivo, cada um com uma ligação orgânica com o outro, de forma que novos relacionamentos são formados e novas respostas emocionais evocadas. A forma é uma maneira de apresentar a matéria da experiência. Um trabalho de arte ordena a matéria pela forma; ele reduz as matérias-primas da experiência. O que é, depende de como ele é feito. A experiência une forma e matéria. Elas não podem mais serem separadas, da mesma maneira que uma criatura viva não pode se separar de seu ambiente.” Rose. P.6. (Tradução minha).

Referências

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