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MESTRES E DISCÍPULOS

No documento Olavo de Carvalho a Dialética Simbólica (páginas 96-101)

NOTA PRÉVIA À PRIMEIRA EDIÇÃO

9. MESTRES E DISCÍPULOS

mesma dialética do passivo e do ativo repete-se no personagem complementar de Clarice, Jack Crawford. Intelec- tualmente, é ele o mais ativo, na verdade o único ativo, pois é quem planeja e dirige tudo, a tal ponto que se poderia dizer que a trama inteira dos eventos não é senão uma projeção externa de algo que se passou na mente de Jack Crawford. Mas, na prática, ele não participa diretamente da ação. Sua única tentativa de intervenção pessoal (quando invade a casa de Buffalo Bill em Calumet City) é um erro de que se arrepende: ele deveria ter deixado tudo nas mãos de Clarice, como parecia ser seu intuito inicial. Mas os gurus também falham, ao menos na narrativa iniciática, pois aí eles apenas representam o Espírito, e não o são verdadeiramente, o que aliás dá a medida das diferenças entre esse gênero narrativo e as epopéias sacras e mitológicas que constituem seu modelo.

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Aqui devo explicar-me com mais cuidado. Epopéias sacras e mitológicas são aqueles poemas narrativos que, para toda uma civilização, têm o prestigio de verdades reveladas; no início dos tempos, eles fixam a cosmovisão, os valores, as leis e os princípios educacionais que vão orientar os homens e moldar os costumes enquanto durar essa civilização. Narrativas iniciáticas são histórias inventadas numa época mais tardia, e que, sem terem a autoridade de revelações primordiais, são admitidas, por certos grupos ou indivíduos, como uma espécie de ensinamento espiritual ou religioso. As narrativas iniciáticas versam geralmente sobre aspectos ou partes das epopéias sacras, que elas prolongam, ilustram, comentam e especificam, adaptando o fundo da mensagem espiritual à mentalidade e à linguagem de uma nova época. Elas revigoram e atualizam certas potencialidades espirituais contidas na revelação, que arriscariam enfraquecer-se à medida que a passagem dos tempos e as mudanças da linguagem vão dificultando às novas gerações a compreensão direta da epopéia sacra. São narrativas iniciáticas a

Divina

Divina comédiacomédia de Dante, A A flautflauta a mágicamágica de Mozart, o Fausto Fausto de Goethe, a tragédia grega em sua totalidade, Os LusíadasOs Lusíadas de Camões, A A rainha rainha das das fadasfadas de Spenser; e, em nosso tempo,José e seusJosé e seus irmãos

irmãos de Thomas Mann. São epopéias sacras os poemas de Homero, oBaghavad-GitaBaghavad-Gita, o CorãoCorão, o

ntigo Testamento

ntigo Testamento, os Evangelhos Evangelhos, etc.

A diferença entre epopéia sacra e narrativa iniciática consiste fundamentalmente em que os heróis da primeira são deuses, semideuses ou, num quadro monoteísta estrito, aspectos de Deus ou forças de srcem divina. Os heróis da narrativa iniciática, sem terem poderes divinos nem falarem diretamente em nome de Deus, são seres humanos de excepcional envergadura, protegidos ou guiados de perto por forças divinas, cuja presença e atuação no mundo eles representam de maneira mais ou menos sutil e indireta.

Tanto na epopéia sacra quanto na narrativa iniciática os personagens de mestres ou gurus representam sempre o Espírito divino, que conhece tudo de antemão e dirige do alto a caminhada de um discípulo, o qual personifica a Alma humana em vias de se espiritualizar ou divinizar. Uma diferença marcante entre os dois gêneros é que, na epopéia sacra, o mestre é o Espírito divino, de modo literal e integral (naOdisséiaOdisséia, Mentes é Minerva, deusa da sabedoria; noBaghavad GitaBaghavad Gita, Krishna é um aspecto de Brahma, etc.); ao passo que, na narrativa iniciática, o personagem do mestre é apenas um ser humano ligado mais ou menos de perto a um saber divino; é um sacerdote, um mago, um sábio, e não um ser

divino; por isso, guiando “divinamente” o discípulo, não está isento de falhas humanas. Por exemplo, Merlin, no Santo GraalSanto Graal, perde temporariamente a parada para Morgana Le Fay, e Sarastro é temporariamente derrotado pela Rainha da Noite, etc.

A narrativa iniciática, embora possuindo leis estruturais que a definem, pode ser enxertada numa infinidade de gêneros narrativos diferentes, na literatura novelística, no teatro, na poesia épica ou no cinema. Sua estrutura profunda é compatível com os revestimentos mais diversos, do fantástico ao “realista”. Os únicos elementos indispensáveis são o mestre, o discípulo, o adversário, e as peripécias que purificam a alma do discípulo ou lhe revelam um conhecimento. O adversário pode ser uma pessoa (como, na Flauta Flauta mágicamágica, a Rainha da Noite) ou uma situação adversa e diabólica que desafia a inteligência do herói ou tenta sua alma (como no Pr Processo ocesso MauriMauriziuszius, de Jakob Wasserman). O mestre também pode ser um personagem de carne e osso (como Sarastro), uma alusão mitológica (Vênus emOsOs Lusíadas

Lusíadas), ou um simples aspecto superior da alma do próprio discípulo (o mágico pressentimento que guia Etzel Andergast no romance de Wasserman). O ponto que interessa, o critério diferencial que nos certifica de estarmos em presença de uma narrativa desse gênero, não é o conteúdo material dos eventos, mas arelação entre as forçasrelação entre as forças, em suma: a estrutura da trama.

Muitas obras de literatura, do cinema e do teatro apelam para o uso de símbolos e mitos “esotéricos”, sem que isto faça delas narrativas iniciáticas. Ao contrário, os símbolos particulares contidos numa narrativa só adquirem perfeita funcionalidade estética quando a estrutura profunda da obra é a de uma narrativa iniciática; fora disto, símbolos e mitos se tornam meros adornos pedantes. A estrutura total e os simbolismos particulares têm de estar coeridos e amarrados um aos outros num arranjo orgânico, refletindo uma das principais leis da linguagem simbólica, que é a da correspondência entre a parte e o todo, o pequeno e o grande, o micro e o macrocosmo. Só artistas muito hábeis logram obter este encaixe, motivo pelo qual boa parte da arte “esotérica” em circulação é puro lixo.

Tanto pela estrutura, como pelos símbolos a que alude ou pela obediência estrita ao princípio de correspondência,O silêncio dos inocentesO silêncio dos inocentes se revela uma narrativa iniciática, e das mais perfeitas que o cinema já nos deu. Nele não existe uma única referência simbólica ou mitológica que não se encaixe com extrema adequação e felicidade na estrutura total da obra, refletindo esse todo na escala do detalhe; e a estrutura global, por sua vez, tem todos os elementos requeridos: o mestre, o discípulo, o adversário diabólico, as peripécias reveladoras e purificadoras.

Desse modo, é bastante natural que encontremos, entre Clarice e Crawford, a relação Alma-Espírito, que Crawford seja inativo na aparência e ativo no fundo, que Clarice seja fiel ao intuito de Crawford mesmo quando o desobedece aparentemente, e que Crawford, enfim, cometa um engano, na hora em que este engano já está, miraculosamente, corrigido pela Providência. A Alma, na narrativa iniciática, é passiva diante do Espírito, mas ativa diante do mundo; ela luta, mas sua luta é para permanecer fiel ao Espírito num mundo onde as adversidades, tentações e enganos ameaçam arrastá-la para longe da sua vocação.

Que Jack Crawford, no filme, é o mestre ou guru de Clarice, não há dúvida. Um dos colegas dela o menciona literalmente assim (“Seu guru, no telefone”). Será Lecter, complementarmente, o guru de Buffalo Bill, o arremedo diabólico do Espírito, que com tanta freqüência também surge nas narrativas iniciáticas? Veremos adiante. Por enquanto, o que interessa é notar que Crawford, nas funções de guru, mantém uma atuação discreta de segundo plano, longe do centro da ação física (exceto por um lapso), e que, no fim, se retira modestamente, deixando para a discípula as honras da festa. Tal como o Sarastro de Mozart, que, no fim da Flauta Flauta mágicamágica, após haver articulado e dirigido de longe a luta de Tamino para

libertar Pamina, desaparece num halo de luz, deixando para os discípulos o gozo da vitória. É também um

topos

topos, um esquema repetível. Mas como funciona!

2 de junho de 1991. Fausto

Fausto I, trad. Jenny Klabin Segall.

Q

1. 2. 3. 4. 5. 6. 1. 2. 3.

10. UM PAR DE PARES

uanto a Jame Gumb (é este o nome de Buffalo Bill), está para Lecter como Clarice está para Crawford. É o seu oposto complementar. O paralelismo é rigoroso e vale a pena aprofundá-lo. Vejamos primeiro o par Lecter-Gumb:

Lecter só mata seus algozes; Gumb mata vítimas inocentes.

Lecter é frio e racional; Gumb é passional, arrebatado e sem controle (decide antecipar a morte de Catherine, num acesso de raiva).

Lecter despreza suas vítimas; Gumb tem, ante as suas, admiração e cobiça.

Lecter come suas vítimas, as põe para dentro; Gumb deseja entrar dentro delas, vestindo sua pele. Lecter é “superior” às suas vítimas; é o demônio acusador, que julga e castiga (fazendo destarte um tipo de “justiça”). Gumb é “inferior”, ele ataca justamente quem possui o que lhe falta. Lecter extingue suas vítimas para continuar a existir; ele afirma sua identidade às custas da extinção dos outros. Gumb, ao contrário, nega sua própria identidade e deseja transformar-se, morrer como homem feio para renascer como moça bonita.

Da comparação salta aos olhos a figura tradicional do duplo aspecto do mal, que a Bíblia personifica em Lúcifer e Satã, o demônio “superior” que perverte a inteligência, e o demônio “de baixo” que incita às paixões abissais e à destruição do corpo. O demônio como adversário do Espírito e como inimigo da Alma. Neste sentido, Lecter é o adversário de Crawford, como Gumb é o de Clarice. Mestre contra mestre, discípulo contra discípulo.

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O paralelismo de Lecter com Crawford é outro: não são mais dois planos diferentes de uma força de igual tendência, mas dois iguais de forças contrárias. Dito de outro modo: Lecter e Gumb são iguais quanto ao sentido (o mal), mas diferentes em força. Lecter e Crawford são forças equivalentes, mas diversas quanto ao sentido:

Tal como Crawford, Lecter não participa da maior parte ação exterior. Sua contribuição é meramente intelectual. Ele fica “imóvel” no fundo do seu porão, enquanto na superfície se desenrolam as investigações de Clarice e os crimes de Gumb.

Tal como Crawford, ele tem uma certa visão de conjunto do que está se passando (que Clarice e Gumb não têm). A diferença é que Crawford planeja a totalidade da ação, e Lecter só uma parte. Se Crawford é o guru de Clarice, Lecter procura sê-lo também. Ele não se conforma ao papel passivo de mero fornecedor de informações: quer ser o analista e mestre de Clarice. Esta, sabendo que esse papel o lisonjeia, tira proveito da vaidade dele (“vim para aprender com o senhor”). Crawford, por seu lado, como ex-professor, tem por assim dizer naturalmente o papel de mestre, que exerce com modéstia. Lecter procura mostrar seu domínio sobre Clarice (quando na verdade é ele quem está sendo dirigido de longe pelo plano de Crawford), ao passo que Crawford dirige Clarice à distância, sem dar demonstração de que o faz.

4.

5.

6. 7.

Ambos cometem um engano, ao subestimar Clarice. Lecter, no começo, ao tomar a garota apenas como uma caipira pretensiosa; depois o desprezo se transforma em admiração, e a admiração em serviço. Crawford, no fim, ao chamar a si, indevidamente, uma parte do encargo que atribuíra a Clarice.

Crawford conhece todo o passado de Clarice (sua infância, a morte do pai, a vida estudantil). Lecter conhece todo o passado de Gumb, e até conserva, no armazém de Miss Mofet, um arquivo vivente do começo da carreira de Gumb como assassino.

Ambos se conhecem de longa data, e se temem: Crawford sabe que Lecter é capaz de tudo; Lecter está ciente de que Crawford é “uma velha raposa”.

Finalmente, ambos têm um fracasso parcial: Lecter quer dominar Clarice, e não consegue; Crawford quer capturar Gumb pessoalmente, e também não consegue.

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No documento Olavo de Carvalho a Dialética Simbólica (páginas 96-101)