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NOTA DO AUTOR À PRIMEIRA EDIÇÃO (1991)

5. O VERSO E A PROSA

s gêneros mais gerais que existem, que abarcam todos os outros (e que, por isto mesmo, sendo “gêneros de gêneros”, poderiam ser chamados propriamente categorias) são o verso e a prosa. A distinção entre o verso e a prosa reflete ao nível do microcosmo literário humano, a condição “número”, ou quantidade.

O que quer que digam os teóricos empenhados desde há cem anos em intermináveis discussões, o fato é que a distinção entre verso e prosa é apenas uma distinção entre as duas formas mais gerais da quantidade: a quantidade contínua e a quantidade descontínua. São quantidades contínuas, por exemplo, a extensão e o volume; são quantidades descontínuas as séries, as periodicidades, as secções, etc. Verso é verso enquanto predomine nele algum princípio de descontinuidade ou seccionamento, seja ele rítmico o métrico, algum tipo de reiteração sonora; e a prosa é prosa enquanto flui e não volta. Os versos são como gotas de chuva, que pingam repetidamente, e a prosa é um rio que corre sem interrupções. Daí uma certa “superioridade” do verso, porque “vem do céu”, como a fala descontínua e enigmática dos anjos e dos oráculos, enquanto a prosa desliza ao rés-do-chão como a fala cotidiana dos homens.

Essa distinção reflete, portanto, os princípios da continuidade essencial e da descontinuidade existencial entre Infinito e finito.

O simbolismo tradicional do círculo pode ilustrar isso um pouco mais claro. Se representarmos o Ser, único e infinito, por um ponto, os raios que dele partam representam as suas distintas possibilidades de manifestação nas várias direções; são as qualidades, ou propriedades, que prolongam a sua essência sem separar-se dela. Se, partindo desse ponto, traçamos agora vários círculos concêntricos, estes representarão as várias gradações de proximidade e afastamento que cada ponto e cada segmento dos raios podem ter em relação ao ponto central. Os raios representam a continuidade essencial, e os círculos, a descontinuidade existencial; os raios, a unidade do real; os círculos, a multiplicidade de planos ou níveis.[ 60 ]

Esta figura aplica-se à distinção de verso e da prosa de maneira dupla, segundo a regra da simbólica tradicional que admite sempre a concomitância de um simbolismo direto e de um simbolismo inverso.[ 61 ] Podemos dizer, de um lado, que os raios expressam o fluxo contínuo da prosa, e o seu seccionamento pelos círculos concêntricos, o ritmo do verso. De outro lado, podemos encarar a figura em sentido inverso, e dizer que a prosa gira ou discorre continuamente como os astros em suas órbitas, e que os raios do verso seccionam ou escandem ritmicamente estes círculos segundo as direções do espaço.

As misturas possíveis de distintas gradações de verso e de prosa não devem fazer perder de vista a distinção essencial, porque toda mistura, por mais complexa que seja, será sempre composta de contínuo e descontínuo.

A tendência mais recente da crítica é para esquecer o papel fundamental do fator quantitativo – métrico ou rítmico – na distinção entre prosa e verso, e procurar uma distinção de tipo semântico. Isto é: tenha ou não métrica e rima, um texto é considerado “poético” ou “prosaico” conforme predomine um uso “conotativo” ou “denotativo” da palavra; o verso falain modo obliquoin modo obliquo e a prosa in modo rectoin modo recto.[ 62 ]

Esta nova distinção surgiu da necessidade de dar conta de um grande volume de obras de intenções poéticas escritas sem compromissos com a métrica. Mas, por um lado, denotação e conotação não passam dos equivalentes semânticos da continuidade e da descontinuidade, como se vê pela referência direta ou indireta, contínua ou descontínua, do significante ao significado. Por outro lado, é uma distinção derivada e segunda, e não primária.

Durante milênios, as obras poéticas tiveram métrica e rima, quer predominasse nelas o conotativo o o denotativo (porque tratados de ciência e filosofia, que no sentido semântico diríamos prosaicos, eram vazados em formas poéticas, sem que ninguém o estranhasse).

Poderíamos admitir, para cortar a questão pela raiz, uma quádrupla classificação, segundo o cruzamento de critérios fonéticos e semânticos: assim, existe o contínuo-conotativo, e o contínuo- denotativo; o descontínuo-conotativo e o descontínuo-denotativo; e as gradações destes quatro darão conta facilmente de todas as misturas possíveis, sem ser necessário complicar mais a questão, que aliás poderia ter sido resolvida desde logo pela constatação do caráter equívoco da palavra “prosa”, como oposta, por um lado, ao “verso”, e, por outro, à “poesia”.

Mas, a rigor, segundo a sua srcem, verso e prosa não são modos de significação, e sim modos de elocução. Para evitar mais confusões, diremos que um texto intensamente “conotativo”, mas sem reiteração rítmica nem métrica de espécie alguma, não é verso: é prosa poética ou coisa assim: e um texto puramente “denotativo”, como por exemplo certas falas totalmente prosaicas e informativas das tragédias de Shakespeare e Racine (para não falar dos antigos tratados rimados de geometria e física), são versos.

Resumindo: o contínuo, quer conotativo, quer denotativo, é prosa; e o descontínuo, quer conotativo, quer denotativo, é verso, “poético” ou não. Se quiserem mudar isto, preferindo aplicar o critério semântico, não vai fazer a mais mínima diferença; apenas, em prol da clareza, recomendamos ter em mente que a distinção de verso e prosa se refere primariamente à elocução, e secundariamente (metaforicamente, ousecundum quidsecundum quid) à significação; e que ao passarmos da aplicação direta à aplicação metafórica de um conceito é preciso fazer ajustes e compensações, evitando a transposição rasa, mecânica e ininteligente.

Desse ponto de vista, veremos que em teoria todos os gêneros literários podem ser vazados indiferentemente em prosa ou em verso (ou em distintas gradações de mistura), e que de fato muitas vezes o foram, conforme o gosto e a preferência das épocas. Se hoje nos parece um pouco estranho escrever tratados de física com métrica e rima, aos gregos não pareceria menos estranha a prosa poética dos simbolistas.

Repetimos que a existência de graus variados de mistura, e mesmo de misturas quase indecomponíveis, não muda em nada o conceito geral: o fato de que o Nordeste não esteja nem a Norte nem a Leste não suprime a existência do Norte e do Leste, que têm de continuar onde estão para que seja possível alguém estar no Nordeste. O culto obsessivo das exceções – que em última análise poderiam sempre ser reduzidas à regra, se valesse a pena o trabalho –não deriva de outra coisa senão do gosto pelo que Ortega y Gasset chamava “filosofia dos gatos pardos”.

Antes de entrarmos na discussão dos gêneros em particular, temos de esclarecer que a distinção entre os gêneros é de um tipo completamente diverso daquela que existe entre verso e prosa. Esta diferença é dupla:

1. Verso e prosa distinguem-se conforme o número – ou ordem, ou relação –, ao passo que os gêneros literários se distinguem segundo reflitam as categorias do espaço ou do tempo e as várias modalidades de

espaço e de tempo. Verso e prosa são “categorias”, ou gêneros de gêneros; elas abarcam todos os gêneros, do mesmo modo que o número abarca o espaço e o tempo.

2. Se os gêneros são corpos de possibilidades, e se estes corpos são distintos entre si, cada corpo se define como um princípio ou regra de estruturação da matéria tomada como um todo, ao passo que verso e prosa são princípios de estruturação das partes mínimas – sentenças e períodos – tomadas isoladamente. Uma tragédia é uma tragédia porque a totalidade dos eventos narrados concorre necessariamente para um desenlace trágico através de um encadeamento conforme à regra da tragédia, ainda que haja, aqui ou ali, ao longo da obra, elementos prazenteiros ou cômicos. Mas versos são versos porque suas frases são seccionadas e costuradas, uma a uma, segundo algum tipo de módulo reiterativo; e a prosa é prosa porque suas frases se sucedem num fluxo contínuo, sem compromisso de reiteração. Para saber se uma obra está escrita em verso ou em prosa, basta ler alguns parágrafos, ou às vezes até mesmo dar uma olhada no formato da mancha na página, ao passo que, para saber se é comédia ou tragédia (caso isto não esteja declarado na folha de rosto), é preciso ler a obra inteira e conhecer as conexões íntimas entre seus elementos e planos de significado.

Os gêneros, como dizíamos, são corpos de possibilidades de composição da matéria literária, e estes corpos se diferenciam entre si conforme reflitam, em sua estrutura interna, as outras duas grandes dimensões da existência corporal: o tempo e o espaço. Daí a primeira grande divisão dos gêneros: o modo temporal ou sucessivo se expressa nos gêneros narrativos, e o modo espacial, ou simultâneo, nos gêneros expositivos. As subdivisões internas de cada um destes gêneros – ou, se quiserem, suas espécies – vão definir-se, portanto, segundo as várias modalidades de tempo e de espaço, modalidades estas que, por sua vez, se diferenciam pelo número: contínuo e descontínuo. Tempo contínuo (ou intérmino), tempo descontínuo (ou terminado): tal é o critério de diferenciação entre os gêneros narrativos. Espaço contínuo (ou totalidade abrangente), espaço descontínuo (ou subdividido em lugares distintos): tal é o critério de distinção dos gêneros expositivos.

Cf. Laleh Bakhtiar,Sufi. Expressions of the Mystic Quest Sufi. Expressions of the Mystic Quest (London, Thames & Hudson, 1979, pp. 10-11); e René Guénon,Symboles de laSymboles de la Science Sacrée

Science Sacrée (Paris, Gallimard, 1962, Chap. VIII-XIII).

René Guénon, Le Règne Le Règne de la de la QuanQuantité et les Stité et les Signes ignes des des TTempsemps (Paris, Gallimard, 1945, chap. XXX), A distinção exclusivamente semântica é defendida por Massaud Moisés (op. cit op. cit ., cap. IV).

S

No documento Olavo de Carvalho a Dialética Simbólica (páginas 69-72)