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NOTA PRÉVIA À PRIMEIRA EDIÇÃO

2. UMA PISTA FALSA

omeço com um exemplo. Márcia Cezimbra, em seu artigo no caderno Idéi Idéiasas doJornal do BrasilJornal do Brasil,[ 71 ] coloca os leitores numa pista falsa, pela qual jamais chegarão a compreender o filme. Mas o erro deve ter passado despercebido, já que muitos espectadores, a quem consultei, revelaram ter entendido a história exatamente como Cezimbra: uma fábula do desejo, o drama da paixão entre um psicopata antropófago e uma bela agente do FBI. Esta interpretação foi também endossada por quase todos os críticos.

Eu não teria a cara de me opor a toda essa respeitável unanimidade se ela não fosse contraditada, também, pelas declarações dos dois atores principais do filme, feitas em entrevistas que ou não foram lidas ou não foram levadas a sério no Brasil. Hopkins diz que o Dr. Lecter – o suposto objeto dos desejos da heroína Clarice Starling – é realmente o Demônio. Nãoumum demônio, masoo Demônio, nome próprio. E Jodie Foster afirma que Clarice é uma heroína verdadeira, como nunca houve uma na história do cinema, porque, no quadro de um drama mitológico, ela tem de “lutar contra os demônios e conhecer-se a si mesma”. Foi exatamente assim que entendi o filme: a luta de uma heroína socrática para desenterrar a verdade do fundo das trevas, da mentira e da loucura. Jodie tem razão ao dizer que uma heroína desse porte nunca houve na história do cinema (com a possível exceção, observo eu, daJoanna d’ArcJoanna d’Arc de Robert Bresson). Mas garotinhas fascinadas por monstrossexysexy são uma banalidade que podemos ver toda semana em enlatados de TV, moldados em King Kong King Kong ou A Bela e A Bela e a Feraa Fera. Se Jodie e Hopkins têm razão, então os críticos brasileiros se equivocaram profundamente.

O motivo de terem errado o alvo está em certos cacoetes mentais que se disseminaram como epidemia entre os intelectuais brasileiros e que os fazem enxergar tudo por um viés pré-fabricado. No Brasil, as palavras “desejo” e “paixão” tornaram-se nos últimos anos chaves universais, aplicáveis a torto e a direito para a explicação de tudo. É também um fenômeno local a onda de nietzscheanismo militante, que só consegue enxergar algo de bom quando sob a forma de um mal ao menos aparente e que procura, em toda afirmação explícita de valores positivos, um sintoma de hipocrisia ou de falsa consciência.

Para essa mentalidade, tudo no mundo é disfarce e auto-engano: retirados os véus do fingimento, vem à tona a única realidade verdadeira, a qual, em todos os casos e circunstâncias, consiste sempre e somente de paixão e desejo, com uns toques de maquiavelismo endossado como natural e são a título de “sinceridade” – como se toda manifestação direta de sentimentos generosos fosse uma grossa perfídia inconsciente e não pudesse haver sinceridade senão no fingimento assumido ou na maldade explícita. A hermenêutica daí resultante – e que seus cultores aplicam indistintamente à interpretação de sintomas psicopatológicos, de obras de arte, de sistemas filosóficos, de tudo, enfim, menos de suas próprias idéias – é rígida, mecânica e repetitiva até à demência.

Não é preciso dizer que a inclinação a ver as coisas por essa ótica maliciosa é um fenômeno sociológico brasileiro, facilmente explicável pela desilusão dos nossos intelectuais com a democracia tão duramente conquistada e tão rapidamente estragada. Visto por essa hermenêutica, o Sol é movido pelas sombras e, evidentemente, o polo ativo da trama deO silêncio dos inocentesO silêncio dos inocentes só pode ser o Dr. Lecter. Lógico: ele é o pior, logo deve ser o melhor. O demônio inteligente exerce um fascínio sobre a

intelectualidade derrotada, que, vendo a vitória dos maus no mundo, sonha em tornar-se como eles, mas, impotente para concorrer com os safados no campo da maldade prática, satisfaz-se em corromper as idéias e os signos, e, hipnotizada pelo sorriso maligno do Dr. Lecter, atribui seu próprio estado de alma a Clarice Starling, sem reparar que, com isto, não está fazendo uma interpretação e sim uma projeção.

Histórias de desmascaramento de valores, onde o bem só pode aparecer sob a forma invertida de um sincerismo do mal explícito, continuam em moda no Brasil, por exemplo nas novelas de TV. São típicas de situações de desencanto social, em que uma intelectualidade marginalizada se rói de ressentimentos: com que alívio o jovem gênio complexado não recebe a notícia de que Nietzsche valorizava o ressentimento como método hermenêutico, de que Freud via na suspeita maliciosa a atitude interior mais propícia ao investigador psicológico! Envenenar o ambiente, expelindo ressentimento e malícia por todos os poros, passa a ser então uma modalidade superior de conhecimento científico, o objetivo último de toda atividade intelectual. Este é o estado de espírito dominante na intelectualidade brasileira, pelo menos em sua parte mais barulhenta – e aparentemente ninguém aí se dá conta de que há uma contradição entre estimular a malícia e pregar a moralidade pública.

Mas, no cinema norte-americano, o que se vê hoje em dia é o contrário: é uma tendência para a afirmação explícita e literal de valores positivos, como se nota pelo sucesso de Dança com Dança com loboslobos, uma apologia direta e “ingênua” do bem e da honestidade. Não seria mais lógico interpretarO silêncio dosO silêncio dos inocentes

inocentes à luz dessa tendência dominante no seu país de srcem do que espremê-lo à força na moldura das preocupações locais e momentâneas da intelectualidade brasileira?

Dito de outro modo: minha hipótese é que o diretor Jonathan Demme e o roteirista Ted Tally quiseram fazer um apólogo sobre a luta entre a inteligência humana e a astúcia diabólica, e estavam pouco se lixando para a paixão, o desejo, Freud, Nietzsche e o escambau. A onda de Freud e Nietzsche nos EUA já acabou, e lá não existiu nenhum Nelson Rodrigues. Por aqui é que estão forçando a barra para ver as coisas pelo lado do abismo, e quando se projeta essa perspectiva sobre alguma idéia ou obra que vem de fora o resultado é que se vê o que não existe e se persuade o público a acreditar que existe. É assim que, por uma cruel ironia, o debate cultural mesmo acaba por isolar este país do mundo, fechando as janelas que lhe incumbe abrir.

É claro que existem paixão e desejo na história de O silêncio dos inocentesO silêncio dos inocentes, mas estão lá como elementos do assunto – entre outros elementos e assuntos – e não como determinantes da forma, da estrutura e do sentido, que, nesta como em qualquer outra narrativa, cinematográfica ou literária, são a coisa decisiva.

Também é claro que o Dr. Lecter é fascinante, principalmente por seu feitio enigmático e ambíguo. Mas, daí a dizer que esse fascínio conseguiu prender Clarice nas malhas de uma paixão abissal, a distância é grande: é a que existe entre possuir uma arma e cometer um homicídio. O Dr. Lecter é fascinante, sim, mas Clarice é um bocado esperta. Já na abertura do duelo de vontades entre os dois, o primeiro que baixa os olhos é Lecter, não Clarice (vi o filme de novo só para tirar isto a limpo); ela continua levando vantagem quando desafia o canibal a conhecer-se a si mesmo e ele pula fora, irritado; e enfim não sai do primeiro encontro sem obter ao menos uma parte do que desejava. Só no primeiroroundround

ela já ganha de Lecter por três a zero. Ela nunca cede nada. A única vantagem que oferece a Lecter é só aparente: é um ardil concebido por Jack Crawford, chefe de Clarice, para induzir Lecter a colaborar na captura do assassino Jame Gumb; e a devolução dos desenhos, no fim, é um mero pretexto para obter de Lecter mais uma informação. De encontro a encontro, ela vai se tornando cada vez mais segura de si – e, no momento em que toda a platéia está suando de medo de que Lecter venha fazer da heroína a sua sobremesa, ela tranquilamente assegura à sua amiga Ardelia Mapp: “SeiSei que ele não vai me procurar”.

No fim, ficamos sabendo que Lecter, embora disfarçando e resmungando, já tinha dado a Clarice todo o serviço. Garota porreta!

O

No documento Olavo de Carvalho a Dialética Simbólica (páginas 87-90)