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O MODO DE EXISTÊNCIA DOS GÊNEROS

No documento Olavo de Carvalho a Dialética Simbólica (páginas 64-66)

NOTA DO AUTOR À PRIMEIRA EDIÇÃO (1991)

3. O MODO DE EXISTÊNCIA DOS GÊNEROS

o nosso entender, essas leis existem; e o modo de existência de gêneros, se não se assemelha ao dos animais, também não se parece em nada com o das “instituições”, contingentes e mais o menos convencionais, da sociedade humana. Os gêneros existem, não como existem o Rotary Club ou o orçamento municipal, mas como existem as leis da lógica. Estas leis, em si mesmas, são imutáveis, mas se prestam a um número indefinido de aplicações e combinações, algumas das quais podem levar a resultados perfeitamente ilógicos. O fato de que as pessoas façam raciocínios errados não prova que estejam pensando “sem” lógica; prova apenas que pensam mal com lógica e tudo; que não sabem manejar as leis do raciocínio, das quais, no entanto não podem escapar, pois, se o pudessem, seu raciocínio ilógico não poderia nunca ser impugnado como errôneo, já que não haveria critério de raciocínio certo; e, na verdade, o estudo dos raciocínios errados faz parte da ciência da lógica.

Os gêneros literários nem existem “em si mesmos”, como substâncias no sentido escolástico do termo, nem são generalizaçõesa posterioria posteriori obtidas de semelhanças mais ou menos fortuitas entre obras individuais, nem são regras ditadas pelo gosto arbitrário de uma época. São esquemas de possibilidades[

52 ] da organização dos textos. Seu modo de existir e de agir consiste em que delimitam as

possibilidades da invenção literária, diferenciando-a num certo número de direções ou orientações que, uma vez tomadas, acarretam necessariamente certas conseqüências para o desenvolvimento posterior da obra, restringindo o campo de decisão arbitrária do autor; e a capacidade que este possua de dar conta dessas conseqüências sem se afastar do seu objetivo central produz então um padrão final de coerência interna, que é o meio pelo qual poderemos vir a julgar a obra por suas próprias leis, livremente escolhidas pelo autor na gama dos gêneros possíveis e de suas combinações.

Podemos dizer que os gêneros existem e diferem entre si como as direções do espaço. Se um homem vai para o Norte, ele se afasta necessariamente do Sul; e, embora ele possa ir e vir quantas vezes queira, o Norte continuará na direção oposta ao Sul, e perpendicular a Leste e Oeste. O traçado do caminho depende da liberdade de cada qual, mas é balizado necessariamente pelas direções extremas. Os gêneros são, assim, as diferenças extremas entre as várias possibilidades da estruturação literária; à medida que avançamos coerentemente numa dessas linhas de direção, fica mais difícil – porém não impossível – combiná-la com as outras: quanto mais estreitamente comprometido com as regras de um gênero em particular esteja o núcleo essencial de construção de uma obra, mais difícil ficará, na composição do restante, escapar a essas regras ou combiná-las de maneira criativa e eficiente com as de um outro gênero qualquer. É como num jogo de xadrez: uma vez definida uma direção de jogo, é preciso uma habilidade cada vez maior para conseguir revogar as conseqüências que na linha coerente das causas ameaçam seguir-se inapelavelmente a cada novo lance.[ 53 ]

A habilidade do artista consiste, seja em seguir coerentemente, até o fim, as regras da direção escolhida, seja em combiná-las inteligentemente com outras direções possíveis,[ 54 ] formando tecidos mistos. Porém, mesmo na mais rica e inventiva mistura, as leis dos gêneros sempre permaneceriam ativas, ao menos de modo latente, como princípios articuladores e elementos mínimos de que se compõe a mistura.

Mas a ênfase de Wellek e Warren quanto à diferença entre o modo de existência das obras individuais e o dos gêneros ainda pode render alguma coisa. As obras individuais são entes, o substâncias, produzidas pelo homem. Existem porque foram escritas, e só existem depois de escritas. Os gêneros, por sua vez, são esquemas de possibilidades, e, como tais, existem antes e independentemente de que alguém faça o que quer que seja.

Para que uma possibilidade exista, basta que não seja impossível – e ser teoricamente possível, escapar da impossibilidade absoluta ainda que por uma minguada franja de possibilidade, é seguramente mais fácil do que escrever efetivamente um livro, como o sabe quem quer que tenha tentado escrever um. Para que um esquema de possibilidades exista, basta que ele continue suficientemente distinguível de outros esquemas; porque o modo de existência de um esquema de possibilidades consiste apenas em ser um padrão suficientemente claro de diferenciação entre umas possibilidades e outras possibilidades; e, enquanto esta diferença existe, o esquema existe.

Se é assim, os gêneros são indestrutíveis, por mais obras mistas que se escrevam e por mais difícil que se torne, na prática, distingui-los no meio das misturas. Somente a absoluta impossibilidade – teórica e não apenas prática – de distingui-los é que autorizaria então a falar de “inexistência de gêneros”. Mas isto, obviamente, não vai acontecer, porque os gêneros derivam de uma necessidade que ultrapassa o próprio nível “cósmico”: derivam de uma necessidade ontológica, isto é, das condições que balizam e determinam o próprio cosmos físico tomado como um todo; e sua supressão, caso fosse possível, resultaria realmente num perigoso reboliço cósmico. Não é à toa que a dificuldade de definir os gêneros e a conseqüente proclamação da sua extinção chegaram ao auge numa época que cultiva toda sorte de presságios escatológicos.

Sobre a noção de “esquemas de possibilidades”, v. Mário Ferreira dos Santos, A Sab A Sabedoedoria dria dos Princos Princípiosípios, São Paulo, Matese, 1968.

Carlos Bousoño assinala: “Cada frase que o autor concebe como definitiva imprime ao movimento poemático uma direção irrevogável, que, naturalmente, exclui, por sua mera existência, muitas outras possíveis naquele momento, das quais poderiam ter nascido impulsos diferentes, já inacessíveis. O poema em seu desenvolvimento ordena em proporção cada vez maior o esquema geral do seu desdobramento, e o poeta só o que faz é particularizar esse esquema, escolher uma carta do baralho, a cada momento menos grosso, que se lhe oferece” (Teoria de laTeoria de la Expresiõn

Expresiõn PoéticaPoética, 4a ed., Madrid, Gredos, 1966, p. 31-32).

Tanto o purismo dos gêneros quanto a combinação inteligente de gêneros diversos podem dar igualmente bons resultados. As duas maiores obras literárias da Renascença portuguesa –CastroCastro, de Antônio Ferreira eOs LusíadasOs Lusíadas , de Camões – seguem respectivamente essas duas estratégias. Ferreira quis realizar uma tragédia que se ativesse o mais estreitamente possível à regra aristotélica, e com isto obteve a tremenda concentração dramática que faz da sua peça uma das obras de maior impacto da língua portuguesa. Já Camões, não podendo, pela natureza do assunto histórico escolhido, seguir à risca o modelo da epopéia mítica (homérica), articulou a narrativa mítica com a crônica histórica, produzindo uma obra em dois estratos paralelos, que não tem similar na literatura universal. SobreOs Lusíadas como “epopéia impura”, v.Os Lusíadas Antônio José Saraiva, “Os Lusíadas e o ideal da epopéia”, em Para a Para a História História da da Cultura Cultura em Portugaem Portugall (5a ed. Lisboa, Bertrand, Vol.I, p. 81 ss).

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No documento Olavo de Carvalho a Dialética Simbólica (páginas 64-66)