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NOTA PRÉVIA À PRIMEIRA EDIÇÃO

17. UM POUCO DE TUDO

ragédia, comédia, policial, thrillerthriller: o filme parece misturar um pouco de tudo. Se, porém, atentarmos para a sua estrutura, veremos que ela é similar à do A Auto uto da da AAlmalma, de Gil Vicente: o Diabo e o Cristo lutam pela posse de uma alma humana (Catherine, que por sinal quer dizer “pureza”). O mesmo esquema básico está presente em muitas outras peças medievais e, se Goethe e Thomas Mann decidiram imitá-lo em seus respectivos Faustos Faustos, é porque o Fausto Fausto é uma lenda medieval. A brutalidade, a sangueira toda, também são medievais: o homem da Idade Média estava habituado a espetáculos que hoje nos pareceriam repulsivos: deleitava-se com execuções públicas, procissões de flagelantes e leprosos, e pensava continuamente em guerras, mortes e epidemias, que faziam parte do se cotidiano. A higiene da época burguesa baniu essas imagens, que outrora eram parte do tecido da vida, e, naturalmente, cenas habituais no teatro. Uma certa brutalidade crua do teatro de Shakespeare foi repetidamente qualificada por historiadores como um elemento medieval remanescente.

Só o fato de haver introduzido esse gênero no cinema, vestindo-o com matéria policial, já teria feito deO silêncio dos inocentesO silêncio dos inocentes um momento memorável. Mas, aqui, o modelo ternário dos A Autosutos medievais aparece revisto e potencializado pelo acréscimo de um toque srcinal, que o cura do seu esquematismo congênito, da sua “ingenuidade”, e lhe dá uma força dramática fora do comum: é que cada um dos três arquétipos – Cristo, Diabo e Homem – não aparece simplesmente representado por um personagem, mas duplicado, desdobrado cada um em dois aspectos opostos e complementares, formando o seu encontro um cruzamento altamente explosivo de três eixos de contradições. Mais do que qualquer explicação, um diagrama pode dar conta da estrutura complexa e firmemente amarrada desta história.

Este diagrama deve ser imaginado como um disco horizontal, atravessado por um eixo vertical I e cortado horizontalmente por outros dois eixos, II e III:

1º:

2º:

3º:

4º:

5º:

O Eixo I é o da culpa e da inocência: em cima, as vítimas de Gumb; em baixo, as de Lecter.

O Eixo II representa o Mal, o III o Bem. Porém o disco horizontal tem também uma parte branca, que representa o Espírito, ou as forças universais, e uma parte escura, que representa o mundo da corporalidade onde se desenrolam as ações particulares. Há, portanto, um mal espiritual (Lecter) e um mal corporal (Gumb), que disputa com um bem espiritual (Crawford, ou do conhecimento) e com um bem corporal (Clarice, ou a ação moral) a posse da alma, dividida por sua vez entre a culpa (bodes) e a inocência (carneiros). O ponto central ou neutro, não é preciso dizer, é Catherine, que tem em si a potência da culpa e da inocência.

Creio que não é preciso explicar mais detalhadamente esse diagrama, que fala por si. Mas pode-se tirar dele algumas consequências, relevantes para a apreciação da obra.

Enquanto nothrillerthriller habitual o conflito do bem e do mal é banalizado numa simples luta de polícias e bandidos, aqui, ao contrário, uma história policial é ampliada e potencializada num espelhismo dialético que, condensando dramaticamente todas as ambiguidades e contradições com que o mal se apresenta como bem e eventualmente se transforma nele, acaba por elevar o conjunto às dimensões de uma guerra entre potências cósmicas pela decisão do destino humano.

A estrutura setenária do conjunto é repetida em plano pequeno nos detalhes da narrativa pelo menos três vezes: são sete as vítimas de Gumb, sete policiais rodeiam Clarice enquanto ela sobe pelo elevador para a entrevista com Crawford (vestidos de vermelho), outros sete (vestidos de preto) na delegacia de Elk River.

O esquema setenário, ou cruz de seis pontas, que se usa normalmente em astronomia para a descrição da esfera celeste, é considerado em simbólica uma espécie de “símbolo dos símbolos”, um instrumento hermenêutico com que se pode encontrar a chave estruturante de obras de arte, de instituições, de sistemas filosóficos, etc. A mistificação popular do número 7 é uma paródia desse símbolo. Também é evidente que o aproveitamento artístico dessa estrutura coloca problemas de grande dificuldade, que só um artista de primeira ordem consegue vencer.

O mesmo diagrama pode ser descrito de várias maneiras, inclusive invertendo-se as posições e colocando em movimento os jogos e dinamismos entre os vários polos. Somente isto permitiria obter uma compreensão detalhada da estrutura narrativa, mas, evidentemente, seria um estudo demasiado extenso para se realizar aqui.

Os símbolos variados de que a narrativa lança mão só obtêm sua plena eficácia porque a estrutura, no seu conjunto, é simbólica. A estrutura setenária das direções do espaço a partir de um ponto central foi, desde a antiguidade, considerada um modelo suficientemente amplo e coeso para com ele se descrever o conjunto da estrutura do homem, como se vê pela correspondência entre os sete planetas da astrologia antiga, as faculdades cognitivas humanas[ 75 ] e as sete Artes Liberais que resumiam o essencial da educação medieval.[ 76 ] A relação entre os símbolos particulares e a estrutura total é a pedra-de-toque para sabermos se estamos diante de uma autêntica narrativa iniciática ou de uma imitação grosseira com pretensões “esotéricas” descabidas.

V. Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos Astros e Símbolos, São Paulo, Nova Stella, 1985.

V. Dante, II II ConvConvitoito, trat. II, Cap. XIII; Titus Burckhardt, Principe Principes s et et MethoMethodes des de de l’Art l’Art SacSacré ré (Paris, Dervy-Livres, 1982). V. tb., a propósito dos gêneros:Os gêneros literários: seus fundamentos metafísicosOs gêneros literários: seus fundamentos metafísicos , nesta mesma edição. Sobre os princípios do simbolismo, v. René Alleau, La La ScienScience ce des des Symboles. Symboles. ContribContribuition uition à à l’Étude l’Étude des des Principes Principes et et des des MéthoMéthodes des de de la la SymboliquSymbolique e GénérGénéraleale (Paris, Payot, 1977).

A

No documento Olavo de Carvalho a Dialética Simbólica (páginas 109-111)