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MEU LUGAR DE FALA

No documento ANNA CRISTINA C. DE A. S. BRISOLA (páginas 29-33)

É preciso me situar em meu lugar de fala. Sou uma mulher branca, cisgênero, heterossexual, de classe média, casada e mãe de quatro filhos já adultos. Venho de um lado de uma família tradicionalmente presbiteriana, de pastores e de homens e mulheres atuantes nas igrejas, com valores cristãos como base para a vida e com capital cultural e acadêmico. De outro uma família de mulheres que trabalhavam e eram independentes financeiramente e homens que ocupavam posições privilegiadas na sociedade, com grande capital econômico, social e cultural.

Minha avó materna, mulher que nunca “trabalhou fora”, era uma mulher dedicada ao trabalho religioso e social. Uma mulher que fez faculdade de nutrição já mãe de seus filhos, assim como eu fiz minhas graduações e pós-graduações. Uma mulher que, com toda religiosidade e vasto conhecimento bíblico, evoluiu e desconstruiu muita coisa ao longo dos seus 93 anos de vida. Minha mãe, que foi submissa a meu pai todo tempo que viveram juntos, voltou a estudar e teve que trabalhar quando eles se separaram na minha adolescência. Sempre foi uma mulher culta, sempre leu muito e sempre gostou de fazer pesquisas por sua conta, mas só pôde efetivamente fazer faculdade de psicologia e atuar nesta área depois que se separou do meu pai e se libertou. É definitivamente uma mulher sábia e a frente de seu tempo.

Por parte do meu pai, venho de uma família de classe média alta, com homens e mulheres muito bem colocados socialmente. Minha avó e a maioria de suas irmãs foram funcionárias públicas, três das muitas irmãs (eram 7 mulheres e 4 homens) não se casaram e viveram suas vidas de maneira independente, inclusive financeiramente. Meu pai foi administrador por boa parte da vida e depois passou a advogar. Era um homem autodidata, aprendeu mais de 5 línguas sozinho, lendo e ouvindo música. Extremamente culto e inteligente, mas sem inteligência emocional, carregava nas tintas machistas e era opressor, apesar de muito simpático, engraçado e carinhoso também.

As duas famílias tinham muitos traços machistas que afetaram a minha formação, e também traços racistas que eram dissimulados, mas apareciam em anedotas, comentários e na quase totalidade dos casamentos, muito raros são os casamentos inter-raciais nas minhas duas famílias de origem. Sou filha desta construção com raízes brancas dominantes, burguesas,

patriarcais e racistas, ainda que precedida por mulheres que desafiaram essa estrutura e de tias-avós e tias que sempre trabalharam profissionalmente.

Minha história não diferiu tanto da minha mãe ou da minha avó, mãe dela, em relação a submissão. Fui submissa ao meu pai até os 18 anos, uma menina que seguia as regras, que era participativa na igreja e sempre fui cristã. Me casei virgem aos 18 anos com o filho de um pastor e segui submissa e silenciada, não só pelos homens mas por mim mesma. Me separei com 25 anos, meu filho mais velho tinha 2 anos e meio e estava grávida da minha filha. Casei novamente e tive mais dois meninos. Ser mãe sempre foi uma escolha e uma vontade muito grande, adoro ser mãe e cumpri, praticamente apenas este papel até que o meu filho mais novo tivesse 8 anos. Trabalhei sim, por necessidade, mas minha prioridade era ser mãe.

Aos 39 anos resolvi que queria voltar a estudar, e assim fiz – graduação de jornalismo, depois de publicidade, emendando no mestrado e neste doutorado. Este período acadêmico da minha vida foi concomitante e também alimentador da consciência do meu papel de mulher no mundo e de que sou sujeita da minha vida e não extensão e propriedade dos homens que seriam meus donos. Se meu segundo marido aceitou e incentivou essa emancipação, ainda que sendo militar e em parte machista, a academia aprofundou e alargou essa perspectiva. Mais ainda, conviver com mulheres que, como eu agora, percebiam seus espaços, sua luta e viviam o feminismo. Incluo aí, além destas mulheres amigas da academia, minha mãe, minha filha, que muito me ensinou, minhas irmãs e outras amigas militantes.

Assistindo a alguns documentários uma coisa que me horrorizou foi a subserviência dos negros aos policiais brancos, o medo nos olhos deles, a linguagem com que tratavam os policiais brancos, como um escravo trataria um senhor de engenho, um feitor ou um capitão do mato. Além disso, a óbvia construção histórica e social e as consequências sociais do racismo expressa nos quatro documentários. Bateu fundo a percepção da dívida que temos e de como anos de naturalização ainda correm nas veias da nossa sociedade.

 Black & White: documentário de 2020 dirigido e filmado pelo jornalista e professor do Departamento de Comunicação da PUC-Rio, Luís Nachbin, que discute a questão do racismo na sociedade estadunidense. O filme recorre a várias cenas e situações enlaçadas ao movimento Black Lives Matter. O documentário mostra a morte de George Floyd e Rayshard Brooks, ambos registrados em filmagens;

 Escravos de Job: documentário de Xavier de Oliveira, realizado no ano de 1965, sobre o trabalho, formal ou não, das crianças da Rocinha. O documentário foi vencedor do Primeiro Festival de Cinema Amador, do Rio de Janeiro, promovido pelo Jornal do Brasil e Mesbla mas ficou na obscuridade por muitos anos;

 Pantera Negra: de Jô Oliveira, que ganhou menção honrosa no IV Festival de Cinema Amador JB/Mesbla, em 1968. Musical, desenhado e pintado à mão sobre película 16 mm, com a inserção de várias fotos do movimento negro nos Estados Unidos, atravessado pela morte de Luther King;

 A 13ª emenda: ocumentário de Ava DuVernay que discute a décima terceira emenda à Constituição dos Estados Unidos e seu terrível impacto na vida dos afro-americanos. “Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado”. Retratando as consequências do racismo e a construção histórica do preconceito o documentário aponta como esta formulação racista contribuiu para associar os negros ao mundo do crime e, por consequência, chancelar o aprisionamento deles nas cadeias cada vez em maior quantidade através de um processo de encarceramento em massa.

Os documentários trouxeram à tona como minha percepção da realidade negra mudou ao longo dos anos. Cresci sem ter contato com as favelas e a pobreza, era aquele lugar, aquela coisa, aquelas pessoas que minha avó ajudava fazendo e levando comida, fazendo doações do que não usávamos mais, que ela visitava para ajudar. A caridade era e sempre foi parte de minha família, principalmente a materna, mas nós crianças só participávamos separando brinquedos e roupas para serem doados. Acumular nunca foi permitido, deixar comida no prato também não – “Pense em quantas crianças passam fome e você desperdiçando comida”.

Embora minha família nuclear fosse de classe média, dependendo da situação do país, média baixa (fiz meu ensino médio em escola pública ou com bolsa), havia um senso de justiça, uma percepção das desigualdades. A ideia de ajudar aos mais pobres, e ser ajudado como “mais pobres” em situação mais difíceis, sempre foi natural, mas o que percebo agora é que o racismo estava disfarçado no assistencialismo, ainda que a intenção fosse genuinamente generosa e verdadeira. Percebi como a falsa igualdade entre brancos e negros pobres e a proximidade distanciada da classe média baixa e o pobre menos pobre disfarça no Brasil a força e fúria do racismo.

Tentando lembrar de meus contatos com favelas e pobrezas, me veio à memória as “aventuras” de criança em uma “favela” atrás da casa da minha avó. Brincávamos, eu, meus primos e alguns amigos do prédio da minha avó, de desbravar o território em um sentimento de anarquia, mas também como um desafio ao perigo, do mesmo jeito de quando entrávamos em casas abandonadas. Imagine só, lá no final dos anos 70, inicio dos 80, favela nem era lugar perigoso de fato, era lugar de gente pobre, aquelas que ajudávamos. Ainda mais “favela” no

Ingá, bairro tradicional de Niterói. As casas abandonadas eram certamente muito mais perigosas.

Morei em Copacabana até os quase 9 anos e não lembro de contato ou visão de favela por lá. Meu pai trabalhou por um ano na BRASPETRO e fui morar em outro país, a Argélia, em um bairro mais afastado do centro, mas em uma casa gigantesca, lembro de casas mais pobres, mas não favela ou penúria por perto. Os contatos que tive com os argelinos, causaram mais espanto aos meus olhos infantis pela cultura do que pela pobreza, “sujeira era coisa de árabe”.

Voltei no ano seguinte ao Brasil e fui morar em São Francisco, bairro nobre de Niterói. Novamente via ruas mais pobres, tinha amigos por lá, mas não favelas. Com 13 anos fui para o bairro de Pendotiba, nossa situação financeira ficou mais difícil, fiquei neste mesmo bairro até os 30 anos. Os lugares pobres e os condomínios de ricos foram aumentando, mas a miséria ainda ficava bem distanciada e escondida.

Neste devaneio me impressionei de só ter tido contato direto e real com a favela e a miséria aos 39 ou 40 anos, quando comecei a fazer trabalhos jornalísticos. Fui ao Santa Marta (que frequentei por três meses por conta de um projeto), ao Bumba (em Niterói, por ocasião do desabamento), quando rodei em Teresópolis, por ocasião da tragédia a procura de minha empregada e quando fomos ajudar as vítimas e, a que mais me chocou, quando fui ao extinto Lixão de Caxias fazer uma matéria sobre a realidade dos catadores de lixo, sobre a nudez social. Nestas experiências fui confrontada com a realidade da pobreza, com sua crudeza, malvadeza e com a maioria preta nestes lugares.

Meu racismo já havia sido acareado muitos anos antes. Ainda na adolescência percebi tendo amigos negros que minha família era muito branca, percebi que a realidade deles, ainda que não de pobreza, era diferente da minha. Percebi que as pessoas que trabalhavam nas casas da minha família, fossem como domésticas, nas obras e construções, como porteiros ou caseiros eram na maioria negros. Trabalhei como voluntária cuidando de crianças pobres nas igrejas que frequentei. Mas a consciência das marcas do racismo, de maneira ampla, custou mais a ser percebida. Notar que poucos negros participavam das mesmas rodas sociais que eu, que não convivi com nenhum indígena ao longo da vida, que a militância étnico-racial era mais que necessária, foi um processo bem mais longo que se manifestou nesta tese.

No documento ANNA CRISTINA C. DE A. S. BRISOLA (páginas 29-33)