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CAPÍTULO V – RAZÕES SUBJACENTES A TRAJECTÓRIAS ESCOLARES DE SUCESSO DE JOVENS CIGANOS

5.1 Mobilidades individuais e Lugares de Etnia

As investigações realizadas por Casa-Nova (1999, 2001, 2005b, 2008b, 2009) sobre uma comunidade cigana da zona do Porto evidenciaram a ―existência de graus de importância diferenciados atribuídos à escola‖ (Casa-Nova, 2001, 2008b:36) pelos elementos participantes naquela investigação. Segundo a autora (Id.), estas diferentes formas de perspectivar a importância da escola têm repercussões na entrada no mercado de trabalho e na relação da comunidade com a sociedade no seu todo. Estes resultados levaram a autora a construir o conceito de lugares de etnia, tendo por base o conhecimento da comunidade em estudo e a constatação de uma ―diferenciação intra-étnica, realizada pelos diferentes sujeitos-actores, constituindo-se em lugares diferenciados (não necessariamente hierarquizáveis ou hierarquizantes)‖ (Casa-Nova, 2001), dentro de um habitus étnico.

A presente investigação corrobora o trabalho desenvolvido por Casa-Nova (1999, 2002) no que diz respeito às ―formas diferenciadas de adesão aos saberes escolares e ao significado dos diplomas académicos‖ (2002:37) por parte dos jovens ciganos entrevistados. No I capítulo referimos, com base nos trabalhos de Casa-Nova, que o habitus étnico (ou de etnia) seria influenciador da relação que os ciganos estabelecem com a escola de forma mais significativa do que o habitus de classe. Sendo a maioria163 dos jovens por nós entrevistados pertencentes a classes de menor estatuto social, a presente investigação veio corroborar aquela realidade. Concordamos com a autora, quando esta refere que o habitus étnico leva à problematização da pertença étnico-cultural e do modo como esta afecta a relação com a escola e com a comunidade de pertença, mais do que o habitus de classe.

Para Casa-Nova (Id.Ibid.), o conceito de lugares de etnia permite representar a grande heterogeneidade do habitus étnico. Neste sentido,

―(…) os sujeitos-actores comparam, de forma hierarquizada ou não, certas características culturais do grupo étnico de pertença com outras características de elementos do mesmo grupo e/ou de outro grupo étnico, de forma a constituirem esquemas de pensamento e de acção perante a sua própria etnia e perante as suas relações inter-étnicas‖ (Id.Ibid.).

Como resultado deste processo, constatamos que no presente trabalho de investigação predomina um habitus composto ―que representa um distanciamento crítico de certas práticas e percepções culturais do grupo étnico, mas não a perda da identidade cultural‖ (Id.Ibid.), em detrimento de um habitus simples que, de acordo com Casa-Nova (2001, 2008b) ―corresponde a um certo determinismo étnico (um certo conservadorismo)‖ (Id.).

Com efeito, o presente trabalho de investigação evidencia que

―o habitus étnico não se apresenta como inalterável de práticas e representações, mas antes como condições sócio-culturais individual e/ou grupalmente reconfiguradas (lugares de etnia) dentro das quais se dá uma grande variabilidade de configurações inter e intra-grupais desde as disposições estruturantes mais conservadoras (habitus simples) às disposições mais estruturáveis, de um certo distanciamento de determinados comportamentos e atitudes do grupo étnico de origem (habitus composto)‖ (2008b:38).

À semelhança da autora, tentamos analisar os diferentes discursos e mobilidades individuais a partir de um habitus étnico composto e dos lugares de etnia. Os excertos seguintes realçam esta aproximação e/ou distanciamento de alguns comportamentos dos jovens ciganos face à sua cultura de origem, evidenciando um habitus composto.

A Joana revela algum distanciamento crítico em relação a determinados valores e tradições do grupo étnico cigano, quando comparado com a cultura da sociedade maioritária.

163 Apenas os pais adoptivos do Miguel pertencem à classe média, tendo a mãe adotptiva desempenhado a profissão de professora do 1º Ciclo antes

―Na minha (cultura) não acho muita coisa de bom porque as outras amigas minhas que não são ciganas podem fazer quase tudo, namorar, levar para lá as amigas para casa e tudo mais. Eu já não

posso. Nem posso estar com um amigo na rua nem nada disso que a minha mãe trata-me mal.‖164

O Miguel também analisa os dois contextos em que interage diariamente, a sua família adoptiva, pertencente à sociedade maioritária, que lhe proporcionou outras condições de vida a que não tinha acesso no seio da família biológica de etnia cigana, embora se distancie também de algumas regras impostas pela família adoptiva.

―Parece que olham para as pessoas... têm uma maneira diferente de tratar as pessoas! Se por exemplo uma pessoa não cumprimentar com um beijo já faz mal! É que é certo, não sei, são outro

tipo de regras que não…a mim não me agradam!165

Por sua vez, relativamente à venda em feiras, o Miguel já não se identifica com o trabalho desenvolvido pela sua família biológica, evidenciando um distanciamento relativamente à profissão exercida pelos seus pais biológicos.

―Mas cheguei a uma altura que não podia mais! Ajudei, quando ainda mandavam em mim! Quando eu tive a hipótese de dizer, não, não quero! Saí, porque acho que não tenho vida para isso! Não fui criado assim, não nasci…―166

Com base na ―heterogeneidade das disposições estruturantes e estruturáveis (habitus) perante a escola devidas à pertença étnico—cultural‖ (2008b:39.), problematizamos, a partir da perspectiva dos jovens ciganos entrevistados a existência de diferentes mobilidades individuais (lugares de etnia) que ―se poderão constituir futuramente em regularidades capazes de mudar a actual relação dos sujeitos-actores sociais ciganos com a educação escolar pública― (Ibid.).

Casa-Nova (Ibid.) considera que os lugares de etnia são móveis, ―em função quer das dinâmicas, da diversidade de estratégias e expectativas de vida, das percepções de si e do «Outro» (cigano e não cigano) e das redes de sociabilidade desenvolvidas, quer dos contextos locais, regionais e, por vezes, nacionais‖.

Constatamos, ao longo deste trabalho de investigação, que os jovens ciganos revelam expectativas de vida diferenciadas e uma valorização diferenciada no que se refere às oportunidades de vida proporcionadas pela escola. Também observamos que algumas famílias e alguns dos próprios jovens revelam maior permeabilidade às pressões grupais e comunitárias, comparativamente a outras. O valor atribuído às tradições ciganas também é distinto em função

164 Excerto da entrevista realizada à Joana. 165 Excerto da entrevista realizada ao Miguel. 166 Id.

Etnicidade + + - - - - + + Maria, Carlos e João Etnicidade Escola Escola Miguel Ana Joana Paulo e Filipe

dos jovens, das famílias entrevistadas e das expectativas familiares de mobilidade social dos jovens.

Com efeito, pudemos constatar a existência de diferentes mobilidades individuais que se constituem em distintos Lugares de Etnia, observando-se em alguns casos mudanças produzidas pelas experiências vivenciadas pelos jovens ciganos que futuramente poderão originar a passagem de um lugar de etnia a outro. Consideramos pertinente esclarecer que, enquanto lugares móveis, os lugares de etnia são apresentados no gráfico seguinte com preenchimento de cor e que poderão aproximar-se ou distanciar-se de um quadrante em função das situações vivenciadas pelos jovens no seu quotidiano escolar, familiar, afectivo e pessoal.

Gráfico 1 - Lugares de Etnia (com base no trabalho de Casa-Nova, 1999, 2002, 2006, 2008b)

Exemplo desta realidade é a situação da Joana que se encontrava inicialmente dentro do quadrante mais escola e menos etnicidade, e que se foi distanciando do trajecto escolar, tendo abandonado a escola e, simultaneamente, alguns valores ciganos, tendo assumido um relacionamento, vivendo em coabitação, com um jovem não-cigano, sendo alvo de pressões e críticas negativas pela sua comunidade de pertença. Actualmente o seu discurso evidencia a possibilidade de uma reconfiguração do seu Lugar de Etnia, tendo a jovem referido que pretende ir morar para longe do local onde reside actualmente com o namorado, para deixar de ser alvo das pressões da família e da comunidade de pertença, e exercer uma actividade que lhe permita obter

melhores condições de vida do que as proporcionadas no seio da família cigana.167 Como já referimos anteriormente a este propósito, é evidente nesta situação que ―as pressões comunitárias, reais ou simbólicas, jogam um importante papel no que concerne às margens de autonomia dos seus elementos individualmente considerados‖ (Id., 2006:175).

Sendo esta uma realidade singular, a maioria dos jovens ciganos participantes neste estudo situa-se no quadrante menos etnicidade e mais escola168, existindo no entanto alguns jovens que se situam no quadrante mais etnicidade e mais escola, como é o caso do Miguel e da Ana. Estes dois jovens, ―perspectivam os diplomas escolares como uma forma de elevação do seu estatuto social‖ (Id.Ibid.) e valorizam a sua pertença étnica e a manutenção dessa pertença.

Como refere Casa-Nova (2008b:40),

―Estes jovens, perspectivam os diplomas escolares como uma forma de elevação do seu estatuto social, revelam simultaneamente produções discursivas altamente valorizantes da sua pertença étnica e da importância da manutenção dessa pertença, ao mesmo tempo que consideram que a frequência prolongada da escola lhes permite a aquisição de conhecimentos e competências linguísticas e discursivas possibilitadores de uma defesa sustentada da sua diferença cultural e de reivindicação de direitos perante o «Outro» diferente.‖

No caso da Ana, a valorização escolar por parte da progenitora traduziu-se numa frequência escolar prolongada, embora consideremos que se trata de um caso de sucesso relativo, pelo facto de a jovem ter desenvolvido um percurso escolar com currículos alternativos, com acompanhamento constante por parte dos professores. Apesar destas dificuldades, a progenitora desenvolveu estratégias que possibilitaram que a Ana desse continuidade aos seus estudos. Neste caso, o papel dos professores e dos Directores de Turma foi também decisivo para a sua continuidade escolar. De acordo com os dados do trabalho de campo, o facto de os irmãos da Ana terem frequentado esta escola, originou uma relação de confiança e de proximidade entre a mãe e as suas professoras, que foi decisiva para a sua trajectória de continuidade escolar. Os dados da nossa investigação, à semelhança dos dados relativos ao estudo de Casa-Nova (2008b:47), apontam para ‖o facto de quanto maior for o grau de proximidade e de confiança entre pais e professores, maior será a probabilidade de garantir trajectórias escolares de sucesso por parte das crianças e jovens‖.

A Maria, o João, o Carlos, o Filipe e o Paulo situam-se no quadrante menos etnicidade e mais escola. Além de serem oriundos de estruturas familiares específicas (casamentos exogâmicos, pais separados, vivência em instituições), estes jovens evidenciam uma maior

167 Estas experiências vivenciadas pelos jovens ciganos podem originar a passagem de um Lugar de Etnia a outro. 168 Não sendo alheia a este facto a vivência institucional de dois dos jovens e a realização de casamentos exogâmicos.

• Capacidade de negociação entre culturas • Capacidade reflexiva sobre a sua cultura e a cultura do ―outro‖

 Orientação pelos professores para percursos profissionais, evitando o abandono escolar

 Socialização Secundária junto da escola e de outros agentes educativos

• Estrutura familiar (casamentos exogâmicos e pais separados)

• • Relações que os jovens estabelecem com a família alargada  Relações de proximidade com vizinhos

proximidade da instituição escolar e as famílias (adoptivas e biológicas) revelam ―expectativas familiares de melhoria do estatuto social destes jovens (desejo de integração social, nomeadamente pelo trabalho) e maiores relações de sociabilidade intra-étnicas dos progenitores e dos adolescentes e jovens‖ (Casa-Nova, 2008b:45). Com efeito, as relações de proximidade com elementos que valorizam os saberes escolares e a realização de casamentos exogâmicos, a motivação pessoal e o desenvolvimento de relações de proximidade professores-famílias contribuíram para a continuidade escolar destes jovens.

5.2 Trajectórias de continuidade escolar: dimensões de análise emergentes do trabalho