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Percepções e opiniões dos/as jovens ciganos/as face ao seu contexto familiar, educativo e escolar

CAPÍTULO IV ETNICIDADE, ESCOLA E FAMÍLIA: REFLEXÕES A PARTIR DE UMA PESQUISA DE TERRENO

4.2 Análise das e reflexão sobre as entrevistas realizadas

4.2.4 Os/as jovens ciganos/as: auto-percepções e opiniões sobre o seu trajecto-projecto pessoal e escolar

4.2.4.3 Percepções e opiniões dos/as jovens ciganos/as face ao seu contexto familiar, educativo e escolar

A Joana referiu em entrevista que gosta muito de ler, contudo não vimos no seu quarto um único livro, referindo em entrevista que não tem a possibilidade de adquirir livros. A primeira reflexão que fizemos quando observamos esta realidade foi que para esta jovem conseguir efectivamente desenvolver uma trajectória escolar de sucesso, se torna bem mais difícil do que para aquele jovem que tem as condições económicas, culturais e sociais exigidas pelo sistema escolar. Hoje os jovens têm cada vez mais facilidade de acesso às novas tecnologias e à informação que estas lhes podem fornecer. Esta jovem, em especial, não tem um computador em casa, a sua progenitora é analfabeta e os irmãos mais velhos frequentaram a escola apenas até ao 4º ano. Os dados recolhidos indicam que a persistência pessoal desta jovem foi fundamental para esta ter desenvolvido um percurso escolar de continuidade.

A pressão da família e do grupo étnico para a não continuidade escolar sentida fundamentalmente pelas raparigas entrevistadas, revela-se marcante e passam pela censura, considerando que a continuidade escolar seria sinónimo de comportamentos que vão contra os valorizados no seio do grupo étnico cigano ―ai não sei quê vais atrás deste rapaz, vais lá para ver este rapaz, para lá para ver rapazes‖.131

Como refere Casa-Nova (2009:171)

―O controlo comunitário e grupal sobre o indivíduo é uma constante quotidiana, sendo exercido de múltiplas formas, desde a ameaça de activação do sistema próprio de justiça, à ameaça de exclusão, passando pela ridicularização e pela censura, funcionando como uma poderosa forma de regulação e preservação de comportamentos individuais concordantes com a lógica colectiva e de concretização de expectativas de vida.‖

130 Excerto da entrevista realizada à Maria. 131 Excerto da entrevista realizada à Joana.

Mas esta situação não pode ser generalizada a todas a jovens raparigas entrevistadas (total de 3). Duas delas, que vivem junto dos elementos da família alargada, referem efectivamente este controlo e a existência de uma diferença de tratamento face aos rapazes. Contudo, outra das jovens entrevistadas que vive com a mãe e padrasto não cigano, longe da família cigana alargada desde muito nova, já refere que não sentiu esta postura por parte da sua família. Neste sentido, será plausível dizer que as relações que as jovens entrevistadas e os seus pais estabelecem com a família cigana alargada podem condicionar o seu percurso escolar.

Casa-Nova (2009:167), analisa esta problemática associada ao facto de ainda ser negado aos elementos do género feminino do grupo étnico cigano um percurso escolar prolongado. Concordamos com a autora que considera que para esta realidade podem contribuir várias razões, quer relacionadas com a própria cultura cigana, quer com a forte patriarcalidade existente no seio desta comunidade e, na nossa opinião, no seio das famílias de duas das jovens entrevistadas.

O facto de as mulheres constituírem uma ―minoria dentro de uma minoria em termos de relações de poder‖ (Id..), permite-nos compreender as razões pelas quais duas das jovens entrevistadas fizeram muito esforço para continuarem a estudar. Em dois dos casos estudados, foi a mãe que, contra a tendência da comunidade, sempre estimulou a filha a continuar os seus estudos.

As razões para a pressão no que concerne à não continuidade escolar que duas das jovens entrevistadas dizem ter sentido ao longo do seu percurso escolar são ainda complementadas com a questão da manutenção da honra no seio da comunidade cigana.

―o facto de a mulher cigana, dentro da comunidade, ser aquela que é portadora da responsabilidade, da honra de toda a comunidade. E aqui reside a questão fundamental dado que a honra masculina está intimamente associada ao comportamento da mulher. E uma escolaridade prolongada poderá ter diversas consequências, nomeadamente aumentar a possibilidade de a jovem se enamorar de um jovem que não seja cigano e, portanto, dar origem a casamentos exogâmicos, ou seja, fora do endogrupo, o que, como referi anteriormente, na perspectiva dos elementos deste grupo, poderá dar origem a uma perda da identidade cigana pela ―contaminação‖ do grupo, ou seja, pela adição de novas dimensões culturais, diferentes das dimensões culturais ciganas. Por outro lado, o facto de a jovem se deslocar em trajectos mais ou menos prolongados entre a escola e a casa, fora da vigilância do grupo a que pertence, fragiliza a rapariga podendo dar origem a que ela fique, nas palavras de elementos desta comunidade, ―falada‖ dentro do seu grupo de pertença, sendo este factor inibidor de um futuro comprometimento/casamento dessa jovem‖ (Id.:180-181).

Estas razões poderão estar subjacentes ao facto de uma das jovens entrevistadas ter referido que os rapazes têm ―mais valor‖ para os pais do que as raparigas e que é por isso que não valorizam o facto de ela dar continuidade aos estudos.132 Talvez por esta razão as três jovens

entrevistadas referiram que não pretendiam casar com alguém pertencente ao grupo étnico cigano.

―- E tu pensas em casar? – Haum… Sim!

– Mas com alguém de etnia cigana?

– Não! Até não! Porque vejo o que passam as minhas irmãs e a minha mãe e todos nós.‖ 133

Esta jovem considera que para os rapazes é diferente, que o seu irmão que casou com uma jovem de etnia cigana está bem. Acrescenta que ―os rapazes podem fazer o que querem, o que lhes apetece…‖.134

Com efeito, com base nos testemunhos recolhidos, não parece existir a mesma pressão sobre os rapazes no que se refere à realização de casamento endogâmicos. Um dos jovens refere inclusive que os ciganos devem casar com ciganos, mas quando o questionamos sobre se casaria com uma jovem cigana este refere que não.

―– Apesar de passarem tantos anos, os ciganos estão em Portugal há mais de quinhentos anos e muitas das comunidades mantêm a mesma cultura…

– Claro.

– Mantêm. O que é que achas?

– Outras não. Agora começam a ser mais… Acho que agora começa-se a ver mulheres mais bem arranjadas, começam a sair e acho que se está a perder um bocado. Espero eu que não se perca porque se não vamos ser todos iguais outra vez. Agora vê-se mais mulheres ciganas arranjadas e mesmo a casar com pessoas normais e isso.

– Mas os homens ciganos também. – Não sei.

– Mas…

– Não quero que me chamem machista mas…acho que devia ser cada um com a sua… não misturar as coisas.

– E tu? Vais-te casar com uma mulher cigana?

– Não. Eu não quero! A minha mãe quer-me sempre …a filha do fulano e a sobrinha do fulano mas eu digo sempre ―eu é que sei da minha vida. Não és tu que me vais pôr uma mulher‖. Eu é que sei os meus gostos. Tanto é que prefiro… se calhar se não tivesse estudado aqui…

– Estavas casado?

– Já! Mas como foi assim e obrigado por ser assim senão sabe-se lá com quem é que eu ia parar e a vida que ia ter!‖135

Para o Miguel, à semelhança do que refere Casa-Nova (2009:129), ―A realização de mais casamentos inter-étnicos era/é perspectivado como uma ameaça à unidade cultural, podendo ter como consequência a sua descaracterização em termos étnico-culturais, existindo portanto uma estratégia racional na inibição de uniões exogâmicas‖, o que também parece ser o caso da mãe biológica do Miguel. O jovem também considera que se devem manter as uniões endogâmicas, embora não o deseje para si, evidenciando ainda que estas uniões podem condicionar a qualidade

133 Excerto da entrevista realizada à Joana. 134 Id.

de vida do casal. A nossa percepção é de que, embora valorize a manutenção das tradições e cultura do grupo étnico cigano, o Miguel considera que os casamentos exogâmicos possibilitam ao cigano a melhoria da sua qualidade de vida.

De acordo com os dados das entrevistas, apenas uma das jovens tem casamento marcado com outro elemento do grupo étnico cigano. Pudemos constatar que a própria escola tem funcionado como uma forma de retardar o assumir deste compromisso por parte da jovem

―Aquilo que constava era que possivelmente, como estaria prometida iria abandonar a escola mas…

também pode ser um recurso sei lá! Continuar a estudar para não casar…‖136

―Quero terminar o curso, não penso em casar, sou muito nova. Também vejo o que acontece com as minhas irmãs …‖137

Esta postura é apoiada pela mãe a qual refere que ―gostava que a minha filha tivesse uma vida melhor do que a minha‖138 e para ela a escola poderá ser uma resposta à sua preocupação. Tivemos conhecimento que esta família terá passado por problemas familiares, tendo inclusive a mãe fugido do pai na altura em que a Ana frequentava o 6º ano de escolaridade, tendo voltado de novo para o marido, que teria ficado ―mais calmo‖. Os registos escolares e as entrevistas realizadas indicam que o pai será uma pessoa violenta e que a mãe teve sempre que trabalhar muito para terem o necessário para sobreviverem. Esta família também não mantém relações de proximidade com a família alargada, considerando que se trata de pessoas problemáticas. Também foi possível constatar que houve uma pressão por parte dos professores para que a mãe permitisse que a Ana continuasse a estudar. Ou seja, embora a mãe apoie a filha no prosseguimento dos estudos, face às dificuldades sentidas pela Ana, foi a pressão e o apoio dos professores e o facto da mãe desejar um futuro melhor para a filha que possibilitaram a sua continuidade escolar.

Na opinião da Directora de Turma, as alunas ciganas que frequentam a escola revelam muitas dificuldades. Acrescenta que ―Mesmo agora, estando a Ana no 10º ano, houve a preocupação de a vocacionar para algum curso que lhe permitisse sucesso.‖139

Apesar das dificuldades e da pressão sentidas, fundamentalmente na fase de transição para o 2º Ciclo, uma das jovens considera que

136 Excerto da entrevista à Directora da Turma da Ana. 137 Extrato da entrevista realizada à Ana.

138 Excerto da entrevista à mãe da Ana.

―Agora dão-me valor porque eu já tenho assim um bocado de estudo e eles não. E agora percebem um bocado. E se não fosse por minha vontade eu não estava a estudar nem nada. Nem tinha ido para o 5º ano.‖140

Este extracto evidencia a importância da persistência pessoal nas trajectórias de continuidade escolar de jovens ciganos. Esta persistência parece ser mais decisiva no caso das raparigas do que nos rapazes, devido ao controle e pressão de que estas são alvo, para que mantenham relações sócio-afectivas no seio do grupo de pertença.

Os receios que estes jovens sentem nesta fase da sua vida, repleta de dúvidas, revelaram- se em forma de desabafo.

―Na minha (comunidade) não acho muita coisa de bom porque as outras amigas minhas que não são ciganas podem fazer quase tudo, namorar, levar para lá as amigas para casa e tudo mais. Eu já

não posso. Nem posso estar com um amigo na rua nem nada disso.‖141

Casa-Nova (2002) constatou que na comunidade por si estudada havia raparigas que inclusive tinham reprovado intecionalmente para continuarem na escola. As razões subjacentes a esta atitude permitem-nos compreender por que algumas das jovens entrevistadas referem que se têm esforçado muito, apesar da falta de apoio em casa, para continuarem a estudar. A autora (Casa-Nova, 2009: 168).) refere que

―A escola funciona para elas como um espaço de liberdade, como um espaço de relações inter- étnicas e de sociabilidade que lhes está proibido fora do espaço escolar pela vigilância de que são alvo, vivendo muito confinadas à família e ao grupo de pertença, por comparação com os rapazes, que gozam de grande liberdade, frequentando discotecas, cafés e namorando com raparigas fora do grupo de pertença. ―

As preocupações que sentem em relação à sua família, muitas vezes com problemas sérios, acompanham os alunos no seu quotidiano escolar. O Miguel ―desabafa‖ em relação à situação do pai biológico que se encontra desempregado:

―É, foi um erro, porque saiu do emprego e agora não tem para onde ir, já tem, vai fazer 40 anos! Mas não tem habilitações, nem... E pronto! E ele sente -se um bocado… estar ali e ter digamos que obedecer entre aspas porque quem paga as contas é a minha mãe, quem faz isto é a minha mãe, quem faz aquilo é a minha mãe…e ele não opina assim… quando é para defender ou para tentarmos compreende-lo mas quando é ele que está mal, nós é que temos de o compreender a ele, é um bocado chato! Porque ela só vê o lado dela, porque também está naquela situação, e eu entendo!‖142

140 Excerto da entrevista realizada à Joana. 141 Id.

O Miguel acrescenta que

―Há muitas pessoas aí que tenho pena quando por exemplo nas festas, eu como não vou ajudar a minha mãe, passo e olho e vejo e penso ―a minha mãe também deve estar assim‖ e eu não estou lá a ajudar. Mas é aquela coisa, só peço que corra tudo bem essa noite e que ela venda muito que é para não ter que… para não ficar triste. às vezes no fim eu digo ―então correu tudo bem?‖ e ela ―não foi assim muito bom‖ e eu deixa lá hão-de vir dias melhores.‖143

Este jovem revela grande preocupação face às dificuldades que a sua mãe enfrenta na venda ambulante, tendo-nos confidenciado que quer terminar o Ensino Secundário para obter um trabalho que lhe permita ajudar financeiramente a sua família biológica. O jovem não pretende prosseguir estudos universitários.

―Venho para as aulas e começo a pensar nisso, será que está tudo bem? O que é que se passou? Não consigo dormir às vezes…Acho que faz parte! É a minha mãe que vira a casa ao contrário! Ela é que sabe, ela é que manda! É chato, é um bocado chato, porque também o meu pai deixou um emprego, o meu pai tinha um emprego por causa de eu andar a estudar! Eu acho que foi um erro dele…‖144

Estes excertos salientam a importância e a influência do contexto familiar no quotidiano escolar das crianças e jovens entrevistados. Consideramos que os jovens que se sentem mais seguros face ao bem-estar da sua família, poderão concentrar-se mais nas actividades que lhes são exigidas pela escola.

Quando questionados sobre o tempo dedicado ao estudo, os jovens entrevistados referem que não estudam muito. Apenas o Filipe e o Paulo, por viverem numa instituição têm horários pré- definidos para dedicarem ao estudo.

―Não. Já estudei mais, agora já não. Já estou naquela de estou a acabar o curso, acho que não...é o que eu digo, os meus pais também não estudaram, não é…Não sei, para já não tem sido muito difícil, que seja mesmo preciso estudar, por isso não é agora que está a acabar... Não é agora que eu vou estudar!‖145

Este excerto evidencia o desinteresse do Miguel pelos estudos e o nível de exigência aos alunos que parecem transitar de ano sem estudarem. Já nos extractos seguintes o Miguel refere que quando gosta das matérias se aplica mais e que, como no caso da Maria, se desconcentra facilmente, como pudemos comprovar pela realização da observação directa das aulas.

―Sinto um bocado de desinteresse agora. Porque é… Depende das matérias, quando são matérias que me interessam eu sou mais aplicado, quando não me interessam abstenho-me completamente.146 143 Id. 144 Id. 145 Id. 146 Id.

―Tento estar mais ou menos atento às aulas quando me consigo concentrar que eu sou uma pessoa que desconcentro-me facilmente.‖147

O Paulo refere que estuda, embora por vezes não o faça nos horários estabelecidos para esse efeito, pela instituição onde vive.

―Eu, sou sincero, eu às vezes no estudo quando estamos das cinco e meia às sete, muitas vezes que não durmo à noite adormeço no estudo, por isso não estudo lá muitas vezes, mas quando tenho a noção que tenho de estudar, estudo mesmo. Não é um dia antes dos testes mas para aí uma semana antes dos testes.‖148

Os extractos seguintes revelam uma grande desmotivação da Joana face ao curso que frequenta, denunciando já a vontade de enveredar por uma actividade profissional, abandonando os estudos.

―Porque na escola eu já não estou interessada em estudar. Eu queria mais um emprego para me distrair, fazer alguma coisa que eu gostasse. Agora ali na escola…‖149

―Os professores são bons e ajudam-nos também e isso, mas nós também não podemos abusar da paciência deles. A turma agora está um bocado dividida, há o tal mau estar, um mau ambiente. Mas

de resto eu dou-me bem com toda a gente só que há lá um mau ambiente.‖150

―Ninguém me ajudava, tinha que fazer sozinha. Estudo, leio a matéria, faço resumos, faço perguntas

a mim mesma…‖151

Nesta última transcrição está patente uma solidão no contexto familiar face às exigências da escola, revelando também a persistência da jovem que estuda sozinha, sem a ajuda dos progenitores.