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2 REPRESSIVISMO PENAL, DIREITO PENAL DO INIMIGO E O PAPEL DO CÁRCERE NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO INIMIGO

2.2 O modelo de Direito Penal do Inimigo

O descontrole da criminalidade faz com que a sociedade apele por justiça social. Frequentemente, a abundância de delitos noticiados pela mídia, se transformam em súplicas por medidas autoritárias e vingativas. A informação errada ou muitas vezes ampliada a respeito do que acontece, estimula na criação de crenças por respostas autoritárias como a pena de morte e a prisão perpetua, entre outros. Neste contexto, expandem-se os movimentos “[...] com natureza claramente repressivistas/punitivas, amplamente presentes na política criminal contemporânea (HEUSER, 2016, p. 32),” e estes estimulam uma espécie de

[...] retorno às formas pré-modernas de persecução, nos quais o processo se transforma na pena principal, configurando-se como uma espécie de “suave inquisição”, o que destoa radicalmente do sistema liberal e democrático consagrado em grande parte das constituições ocidentais (BARATTA apud HAUSER, 2016, p. 32)

Dentre os modelos punitivistas contemporâneos destaca-se o direito penal do Inimigo, que é um movimento repressivista que foi apresentado por Günter Jakobs, nos anos 80 do século XX, para analisar o direito penal alemão da época. Conforme Jakobs, citado por Kai Ambos (2006, p.11):

[...] este compreendia disposições que transformavam o autor punível em uma mera «fonte de perigos», em um «inimigo do bem jurídico», privando- lhe assim de sua esfera privada e de seu status como cidadão. Posto que quando o Estado penetra na esfera privada, na «esfera cidadã interna», «acaba a privacidade e com ela a posição do sujeito como cidadão; sem seu âmbito privado não pode existir o cidadão». O destinatário das denominadas regras do direito penal do inimigo – que se caracterizam por

uma antecipação da intervenção jurídico-penal, uma legislação de luta no lugar de uma legislação penal e pela supressão de garantias processuais – se converte em um inimigo que não goza do status de cidadão.

Ao apresentar essa teoria Jakobs teve como propósito separar as pessoas que cometeram algum tipo de crime em duas posições, as que são ditas como cidadãos, mesmo cometendo um delito, isto é, podem voltar a viver em harmonia com sociedade, já as outras as inimigas da sociedade, ou seja, indivíduos que não possuem mais status de cidadãos e, portanto, sem acesso à direitos e garantias, bem como são tratas de modo diferenciado, pois são consideradas inimigos do Estado.

Além disso, Jakobs (2010, p.40) afirma que “[...] o Estado pode proceder de dois modos com os delinquentes: pode vê-los como pessoas que deliquem, pessoas que tenham cometido um erro, ou indivíduos que devem ser impedidos de destruir o ordenamento jurídico, mediante coação,” ou seja, deveram receber uma resposta ao ato praticado, mas não apenas uma pena e sim uma medida de segurança contra a pessoa perigosa dita como inimigo.

Cabe citar que, o indivíduo inimigo da sociedade, por essa teoria, deve ser retirado da comunhão com a sociedade, ficando sob guarda do Estado, sendo assim, neutralizado suas opiniões, seus atos e suas condutas, isto é, anular a criminalidade e a violência, não sendo mais considerados cidadãos, vistos como pessoas que não são capazes de se readaptar ao convívio com a população.

Jakobs (2010) apresenta várias teorias, de grandes filósofos para justificar sua concepção, sendo que um dos mais significativos fundamentos para a teoria do direito penal do inimigo é apresentado pelos filósofos Rosseau e Fichte, uma vez que, por um lado

[...] em princípio, um ordenamento jurídico deve manter dentro do Direito também o criminoso, e isso por uma dupla razão: por um lado o delinquente tem direito a voltar a ajustar-se com a sociedade, e para isso deve manter seu status de pessoa, de cidadão, em todo caso: sua situação dentro do Direito. Por outro, o delinquente tem o dever de proceder à reparação e também os deveres têm como pressuposto a existência de personalidade, dito de outro modo, o delinquente não pode despedir-se arbitrariamente da sociedade através de seu ato. (JAKOBS, 2010, p. 26).

Entretanto,

[...] para Rousseau e Fichte, todo delinquente é, de per si, um inimigo; para Hobbes, ao menos o réu de alta traição assim o é. Kant, que fez uso do modelo contratual como ideia reguladora na fundamentação e na limitação do poder do Estado, situa o problema na passagem do estado de natureza (fictício) ao estado estatal. (JAKOBS, 2010, p. 26 -27 grifo do autor).

Contudo, Jakobs afirma que não se mantem nas teorias de Rosseau e de Fichte, “[...] pois na separação radical entre o cidadão e o seu Direito, por um lado, e o injusto do inimigo, por outro, é demasiadamente abstrata (JAKOBS, 2010, p. 25).”

Outra teoria marcante é a do filósofo Hobbes, pois este

[...] em princípio, mantém o delinquente, em sua função de cidadão: o cidadão não pode eliminar, por si mesmo, seu status. Entretanto, a situação é distinta quando se trata de uma rebelião, isto é, de alta traição: pois a natureza deste crime está na rescisão da submissão, o que significa uma recaída no estado de natureza... E aqueles que incorrem em tal delito não são castigados como súditos, mas como inimigos. (JAKOBS, 2010, p. 26). Cabe ressaltar que, Hobbes “[...] nominalmente, é (também) um teórico do contrato social, mas materialmente é, preferentemente, um filósofo das instituições (JAKOBS, 2010, p. 26).” Ademais, os doutrinadores que se baseiam no contrato social, endentem e explicam que os cidadãos fazem partes de um contrato, mas no momento em que deixam de se fazer parte, ou seja, cometem um crime, como consequência é reincidindo o acordo, sendo assim perdem os direitos e garantias pertencente ao contrato.

Todos esses pensamentos contribuíram e muito para a teoria do direito penal do inimigo, bem como a necessidade pela busca da justiça, visto que, a população precisa de uma solução rápida para os atos cometidos pelos criminosos, de modo que em um primeiro momento a teoria foi considerada eficaz, eis que ao separar o inimigo da sociedade tornaria um ambiente mais seguro.

Não obstante, Jakobs afirma que o Direito Penal deve garantir as normas, isto é, criar leis para garantir a preservação do sistema da sociedade. Dessa maneira, a coação é uma pena, ou seja, tem como objetivo penalizar o crime cometido.

Esta coação pode ficar limitada em um duplo sentido. Em primeiro lugar, o Estado não necessariamente excluirá o inimigo de todos os direitos. Neste sentido, o sujeito à custodia de segurança fica incólume em seu papel de proprietário de coisas. E, em segundo lugar, o Estado não tem por que fazer tudo o que é permitido fazer, mas pode conter-se, em especial, para não fechar a porta a um posterior acordado de paz (JAKOBS, 2010 p. 29).

É de fundamental importância destacar que, na atualidade, o entendimento que predomina na doutrina brasileira é que o Direito Penal tem como função proteger os bens jurídicos fundamentais, ou seja, garantir a proteção dos direitos, eis que estes previnem a proteção da vida humana. Ademais, os delitos ou os crimes, são lesões ou perigos causados por um ou mais indivíduos ao bem juridicamente protegido (BITTENCOURT, 2011).

Pode se mencionar que só existe delitos “[...] como violação das normas de uma ordem praticada (JAKOBS, 2010, p. 30),” sendo assim, considera-se delito a tentativa ou a ação de ato contrário as regras, ou seja, qualquer atitude que esteja proibida em leis, princípios e normas. Da mesma maneira,

[...] os delitos só acontecem em uma comunidade ordenada, no Estado, do mesmo modo que o negativo só se pode determinar ante a ocultação do positivo e vice-versa. E o delito não aparece como princípio do fim da comunidade ordenada, mas só como infração desta, como deslize reparável (JAKOBS, 2010 p. 31).

Pode se afirmar que, no direito do cidadão, a pessoa que comete delito é vista pelo Estado como aquela que infringe a lei, ou seja, logo após o cumprimento da pena e a segurança de que cumprirá as normas impostas na sociedade, o indivíduo voltará ao seu convívio com a população, quer dizer, voltará a ser visto como cidadão. Todavia, “[...] há muitas regras do Direito Penal que permitem apreciar que aqueles casos nos quais a expectativa de um comportamento pessoal é defraudada de maneira duradoura, diminui a disposição em tratar o delinquente como pessoa (JAKOBS, 2010 p. 33),” isto é, em casos de crimes como delitos sexuais, a forma de lidar com os indivíduos, estabelece a um tratamento que não prevê direitos e garantias, procedendo de forma desumana (JAKOBS, 2010).

Distinto do Direito Penal do Cidadão, o Direito Penal do inimigo isola a pessoa que cometeu o delito, sendo assim retira esta do contato com a sociedade, bem como do convívio do ordenamento social. Logo “[...] a função manifesta da pena no

Direito Penal do cidadão é a contradição, e no Direito Penal do inimigo é a eliminação de um perigo (JAKOBS, 2010 p.47),” visto que, o indivíduo no momento do ato do crime torna-se inimigo da sociedade.

Segundo Jakobs, citado por Meliá (2010, p. 90)

[...] o Direito Penal do inimigo se caracteriza por três elementos: em primeiro lugar, constata-se um amplo adiantamento da punibilidade, isto é, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), no lugar de – como é o habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionalmente altas: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é considerada para reduzir, correspondentemente, a pena cominada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são relativizadas ou inclusive suprimidas.

Outrossim,

[...] um Direito Penal do inimigo é indicativo de uma pacificação insuficiente; entretanto esta, não necessariamente, deve ser atribuída aos pacificadores, mas pode referir-se também aos rebeldes. Ademais, um Direito Penal do inimigo implica, pelo menos, um comportamento desenvolvido com base em regras, em vez de uma conduta espontânea e impulsiva (JAKOBS, 2010, p.22 grifo do autor).

Contudo, a teoria do Direito Penal do inimigo tem como formato a distinção dos indivíduos entre cidadãos e inimigos o que se mostra totalmente incompatível com o valor da dignidade da pessoa humana consagrado no texto da Constituição Brasileira de 1988. Deste modo ao afirmar que a função do D. Penal, na perspectiva do inimigo, não é a proteção de bens jurídicos e sim de penalizar, numa espécie de guerra contra àquele que infringiu a lei, a tese proposta por Jakobs mostra-se totalmente inadequada e ilegítima. Apesar disso, não é raro que tal teoria seja utilizada para justificar ações abusivas e ilegais praticadas no âmbito do sistema penal contemporâneo, especialmente no âmbito da execução penal. Neste aspecto explica-se, em certa medida, porque o cárcere tem um papel muito importante na construção da imagem do apenado como inimigo da sociedade.

2.3 O papel do cárcere na construção da imagem do inimigo: quem são os