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2 REPRESSIVISMO PENAL, DIREITO PENAL DO INIMIGO E O PAPEL DO CÁRCERE NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO INIMIGO

2.1 Repressivismo e expansionismo penal no contexto contemporâneo.

Na atualidade o crescente desenvolvimento do direito penal é visível e deriva dos avanços científicos e tecnológicos que permitem mais visibilidade as situações de violência, bem como, com o surgimento de novas medidas criminais, que alteram as leis e as penas impostas aos criminosos, sob influência de uma sociedade assustada com a violência e a criminalidade. Ademais, a consequência dos sentimentos de intranquilidade, desconfiança e medo na população contemporânea, traz o aumento da aflição com as várias formas da delinquência, da qual pode ser citado como exemplo o crime organizado, violências contra mulheres, crimes de drogas e entorpecentes, entre outras.

Cabe ressaltar que a partir da segunda metade século XVIII surge a legislação penal que defende a liberdade dos seres humanos face os abusos estatais, bem como eleva o princípio da dignidade humana. Todavia de acordo com Gomes, Molina e Bianchini (apud HAUSER, 2016, p. 25)

o Direito Penal tradicional nasceu com a objetivo de proteger os direitos fundamentais da pessoa contra o poder punitivo do Estado, ou seja, “contra a violência, o despotismo e a arbitrariedade que caracterizavam o Direito Anterior.” Tratava-se de um Direito Penal constituído a partir da ideia do contrato social, que concebia o indivíduo como detentor de direitos naturais inalienáveis e via o Estado como guardião de tais direitos. A este conjunto normativo (o Direito Penal) foi atribuída, originariamente, a tarefa de contenção do poder punitivo do Estado, buscando-se, a partir dele, eliminar o arbítrio e resguardar os direitos de liberdade (individuais) e a dignidade humana.

Além disso, a partir desta perspectiva liberal, a intensa ou autoritária intervenção do Estado no âmbito dos privilégios individuais a todo momento passou

a ser vista de forma negativa, eis que, segundo Pierre Channu (apud BITENCOUT, 2017, p. 69 “[..] o direito penal, construído em torno do contrato social, não faz mais que legitimar as formas modernas de tirania. Sob a ideia de que o criminoso rompeu o pacto social, cujos termos supõe-se tenha aceito [...]”, sendo assim, “[...] a intervenção punitiva do Estado deve ser mínima e pautada por um conjunto de garantias penais e processuais, que assegurem aos acusados proteção frente ao arbítrio ou o excesso punitivo (HAUSER, 2016, p. 25).”

Diferentemente do Direito Penal tradicional, de natureza liberal, o contemporâneo se expande como uma resposta ao medo e a preocupação da população relativos à criminalidade, sendo capaz de destacar algumas características fundamentais que o direito penal passa contrair. “[...] A primeira dessas características é uma maior identificação/solidarização da coletividade com as vítimas, em decorrência do medo de tornar se uma delas (CALLEGARI; WERMUTH, 2010, p. 20),” ou seja, a partir desse momento, o Direito penal não é mais visto como dispositivo de defesa da sociedade em relação ao Direito punitivo do Estado e sim como um instrumento de amparo e proteção a vítima, ocasionando assim, uma maior comoção social, expandindo as exigências de respostas, bem como penas atribuídas ao criminoso pelo Estado.

Da mesma forma, Gomes, Molina e Bianchini (apud HAUSER, 2016, p. 26) apresentam como características do expansionismo penal contemporâneo a “[...] deliberada política de criminalização em lugar da descriminalização ou despenalização,” o que faz com que, surjam novas formas de criminalidades, que ocorrem a partir de um novo processo de criminalização de condutas que anteriormente eram consideradas lícitas (HAUSER, 2016), como por exemplo, os delitos ambientais, que antes da Lei n.9.605/98, não eram objetos regulados pelo direito penal.

Outra característica “[...] é a maior instrumentalização do Direito Penal no sentido de evitar que os riscos se convertam em situações concretas de perigos (CALLEGARI; WERMUTH, 2010, p. 20 - 21),” sendo assim, aparecem leis penais preventivas para evitar o reparo da inatividade do Estado diante dos riscos (CALLEGARI; WERMUTH, 2010).

Outrossim, os riscos são consequências de um mundo globalizado, uma vez que, com o avanço das tecnologias surgiram efeitos ambientais, econômicos e sociais indesejados, muitas vezes incontroláveis, gerando o risco e paralelamente o sentimento de medo e insegurança. Igualmente,

[...]o componente futuro é marcante na ideia de risco, visto que é com base nele e na sua incalculabilidade que as ações presentes devem ser derteminadas: a ameaça futura é o centro da consciência em relação aos riscos. Assim, no lugar de um Direito Penal que reacionava a posteriori contra um feito lesivo individualmente delimitado, surge um Direito Penal de gestão punitiva dos riscos em geral, tornando-se possível falar em um processo de administrativização do Direito Penal que traz em seu bojo uma supervalorização e o consequente incremento punitivo de infrações e deveres de cuidado, de forma a dar cuidado não só de perigo abstrato, mas também aos chamados delitos de acumulação7 no marco da luta contra as

novas formas de criminalidade (SÁNCHEZ apud CALLEGARI; WERMUTH, 2010, p. 21 grifo do autor).

Igualmente, segundo Gomes, Molina e Bianchini (apud HAUSER, 2016, p. 28) a “ampla criminalização das figuras de delito abstrato” é outra característica da “política criminal” contemporânea, uma vez que,

[...] nos crimes de perigo abstrato o castigo punitivo recai sobre a conduta do agente sem qualquer lesão ao bem jurídico ou exigência de dolo na causação do resultado danoso em relação a determinado objeto tutelado pelo direito. Pune-se, apenas, a violação da norma, renunciando-se a prova do dano ou a prova da causalidade entre a conduta e o resultado, já que este é presumido (GOMES, MOLINA E BIANCHINI apud HAUSER, 2016, p. 28)

O perigo abstrato tem como exemplo o delito do agente dirigir em influência de álcool, disposto no artigo 306 do atual Código brasileiro de trânsito, sendo que o tipo penal de tal crime não exige que o indivíduo tenha lesionado ou matado alguém, apenas descreve um comportamento que deva ser respeitado, ou será penalizado. Contudo, “[...] a utilização desta técnica coloca em cheque os princípios da lesividade/ofensividade que exigem como pressuposto da intervenção punitiva a lesão concreta a um bem jurídico protegido (HAUSER,2016 p. 28-29),” sendo assim, outra característica a ser destacada é a “[...] baixa preocupação e efetividade dos

7 Segundo André Luis Callegari e Maiquel Ãngelo Dezordi Wermuth (2010, p. 21) “ os delitos de

acumulação são aqueles que, enquanto condutas individuais, não causam, por si sós , lesão ou perigo a bens jurídicos, mas que, considerados em conjunto- ou seja, se praticados por outros sujeitos – conduzem a uma situação de lesão ao bem jurídico tutelado.”

princípios da igualdade, proporcionalidade e lesividade (GOMES, MOLINA E BIANCHINI apud HAUSER, 2016, p. 29).”

Mais uma característica que merece destaque são as “[...] frequentes alterações da legislação penal (GOMES, MOLINA E BIANCHINI apud HAUSER, 2016, p. 27),” eis que, com os avanços de novos delitos, a sociedade busca por respostas do Estado, sendo assim um grande número8 de leis penais são criadas e

alteradas anualmente, sendo oferecidas para a população como soluções mágicas, medidas estas, que muitas vezes são ineficazes. Contudo, ao analisar a cultura cotidiana, observa-se que, quanto mais leis são criadas e penas aplicadas, mais crimes são cometidos e com isso a sociedade fica mais violeta.

De certo modo, o sentimento de medo presente na sociedade contemporânea é influenciado pela mídia, uma vez que esta abrange todo país, bem como o mundo, sendo por meio das rádios, telejornais, internet, meios que possibilitam o acesso de notícias para todas as pessoas, e estas são, de certa forma, influenciados com as informações e as opiniões dos donos desses mecanismos. Todavia, “[...] pode-se sustentar que, no âmbito das notícias e exposições de opiniões sobre a criminalidade, a mídia é pautada por um discurso majoritariamente punitivista (SILVEIRA, 2015, p. 27),” visto que, diariamente são transmitidos para a sociedades notícias espetacularizadas sobre determinadas formas de criminalidade e sobre seus autores, assim sendo, a população se solidariza com o sofrimento da vítima e acaba clamando por justiça, que é sempre compreendida numa perspectiva de maior penalização, ainda que a custas de relativização de garantias.

Em suma, pode ser citado como exemplo, “o caso do menino Bernardo Boldrini9,” que ocasionou uma grande repercussão social, visto que, foi tudo

transmitido pela mídia, não apenas uma vez, mas várias vezes. Sendo assim, a população se comoveu com a história e passou a lutar por justiça. Portanto, pode se dizer que “a informação acaba fomentando no seio social um ímpeto vingativo, que, em consequência, gera a expectativa de uma atitude repressiva por parte do Estado,

8 No Brasil existem mais de 180 mil leis que estão em vigor (PÓVOA, 2017).

Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolinabde Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa

canalizada na repressão policial e/ou no aumento do Direito Penal (SILVEIRA, 2015, p. 27).”

Contudo, a sociedade cria um anseio punitivista o que encoraja o Estado a agir da mesma forma, ou seja, querer penas mais rigorosas, flexibilização de garantias assim, criando novas leis e regras. Entretanto, isto gera um descontrole expansivo do direito penal, uma vez que, a mídia exige penas maiores e mais eficazes, fazendo com que o acusado tenha menos garantias e direitos. Por fim, pode-se citar como exemplo de movimento punitivista o modelo de Direito Penal do Inimigo que será analisado a seguir.