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Modelos de Mundo

No documento Rodrigo Reis Ribeiro Bastos (páginas 45-49)

Capítulo II – Fundamentos teóricos

1- Modelos de Mundo

A evolução do pensamento ocidental nos conduziu a inevitável constatação de que os sentidos humanos não são confiáveis. Desde Platão com sua caverna, passando por Copérnico, Galileu, Descartes, até os dias atuais com os dilemas da física moderna somos compelidos a admitir que não há uma realidade única e objetiva que seja igualmente percebida por todos71.

70 A essa altura do campeonato eu e você – meu prezado leitor- já temos alguma intimidade, o que nos permite

deixar de lado algumas das hipocrisias convencionais. Eu, como de resto toda humanidade, sou incapaz de produzir qualquer tipo de conhecimento verdadeiramente objetivo, por mais que tente, sempre serei tendencioso. Nisso não há qualquer desonestidade ou picaretagem acadêmica, pelo contrário. Fiz o possível para criar uma visão consistente e coerente das teorias que examinei, no entanto, como todo juiz – dos outros e de si mesmo – posso ser imparcial, mas sou incapaz de ser neutro.

71 O que todos têm em comum é a tentativa de demonstrar que as percepções diretas os sentidos tais como obtidas

pelo senso comum são ilusórias e devem passar por uma espécie de filtro. Na alegoria da caverna Platão supõe que só os filósofos são capazes de conhecer à verdade além das sombras. Descartes usa a matemática como forma de perceber a verdade do mundo já Copérnico e Galileu contam para todos que a percepção diária e elementar do movimento solar é um engano. A respeito dos dilemas filosóficos da física moderna recomendo a leitura de

45 Ao contrário, somos constantemente obrigados a aceitar o fato de que a percepção da realidade varia de acordo com as précompreensões do observador72. Arrisco a dizer que a própria separação entre o sujeito que observa e o objeto da observação vem sendo, paulatinamente, posta em cheque73. Mas se os sentidos não são confiáveis como é possível determinar o que é real? Como é possível chegar a verdade absoluta? Simplesmente não é possível determinar o que é absolutamente real nem tão pouco chegar a verdade incontestável74. Mas se é assim, como nos movemos no mundo? Quando sinto fome, sou mordido por um cachorro ou dou uma topada na mesa não toco a realidade? Não. Tudo isso pouco ou nada tem a ver com verdade ou realidade. Quando tenho fome, sede ou bato com o dedo mindinho do pé na quina do armário estou dando significações a essas coisas, estou interpretando. A significação e interpretação somente são possíveis com base em modelos da realidade75. Culturas diferentes ou uma mesma cultura em diferentes estágios temporais perceberão esses eventos de formas diametralmente opostas. Para uns a fome pode ser purificadora e santificada não causando sofrimento algum - o que definitivamente não é o meu caso - para outros a mordida do cachorro pode ser um sinal dos deuses. As sensações físicas provocadas pelos mesmos eventos são descritas, interpretadas e sentidas de formas diferentes, não são transcendentes nem uniformes. As diferenças das sensações, interpretações e significações são condicionadas pelos modelos de mundo em que estamos inseridos.

Mas o que são esses modelos de mundo? Modelo é um esquema, descrição ou imagem padrão a ser reproduzida. Pense em um avião de brinquedo, ele é o modelo de um avião real, que, por sua vez, nada mais é do que o modelo físico do projeto de avião, projeto esse que é o modelo do conceito de avião e assim sucessivamente até se perder o rastro da regressão ou desistir dela76. Qual deles é o avião real? Todos e nenhum, tudo dependerá do ponto de vista. Mas isso é outra história. Não nos desviemos do tema. O fato é que frente as demonstrações da

HANSON, Norwood Russel. Patterns of Discovery. Cambridge: University Press,1961. Capítulo 1 em especial página 5.

72 Sobre o conceito de précompreensão e sua aplicação na filosofia e epistemologia veja: GADAMER, Hans-

George. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1999.Especialmente o item 2.1.1 páginas 404 e seguintes.

73 A influência do observador como parte ativa da observação é tratada na física quântica. A esse respeito veja:

GILMORE, Robert. Alice no País do Quantum. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.Em especial páginas 11 à 23.

74 Sobre a impossibilidade de articulação da verdade: FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. São Paulo:

AnnaBlume, 2009. Em especial, página 45: “ A verdade absoluta, se existe, não é articulável, portanto, não é compreensível”.

75 “People, not they eyes, see. Cameras, and eye-balls, are blind. Attempts to locate within the organs of sight (or

within the neurological reticulum behind the eyes) some nameable called ‘seeing’ may be dismissed.” HANSON, Norwood Russel. Patterns of Discovery. Cambridge: University Press,1961, páginas 6 e 7, veja trambém todo capítulo 1 páginas 4 à 30.

76 RAMOS, Marcus Vinícius Midena. Linguagens Formais. Porto Alegre: Bookman, 2009 E ainda, TEOREY,

46 volatilidade de nossas percepções imediatas e da consequente impossibilidade de objetividade, criamos modelos de mundo, de sociedade, de deuses, sentimentos, de tudo, enfim. É dentro desses modelos que os conceitos de realidade, verdade, falsidade fazem sentido e podem ser aplicados. São esses mesmos modelos que condicionam a linguagem, o comportamento, os valores e as ações humanas. Tudo bem, concordo que isso é difícil aceitar!

Os vários modelos de mundo podem ser divididos segundo sua abrangência em: absolutos e relativos77. Os modelos absolutos se pretendem universais, eternos e sagrados, já os relativos são aqueles que pretendem ser profanos, particulares e contingentes. Os modelos absolutos devem ser impostos e os relativos precisam usar a persuasão.

Ao longo da história da humanidade os modelos absolutos, que contraditoriamente são vários, têm prevalecido até aqui78.

A dificuldade de aceitar a realidade e verdade como contingentes e relativas, melhor dizendo, a dificuldade de adotar modelos relativos de mundo, a despeito das evidências decorre do fato de que a visão absoluta e maniqueísta do mundo foi muito mais útil em termos evolutivos. Fico imaginando nossos ancestrais remotos, caçadores e coletores, discutindo as várias formas de se ver uma maçã ou de qualquer outra coisa. Isso seria muito pouco prático. Imagine, em outra situação, nossos ancestrais em uma floresta avistando um leão. Se eles, ao invés de correr, tivessem parado para examinar e discutir se o leão era macho, fêmea, adulto, jovem, amarelado, albino ou até mesmo se era um leão ou um tigre, provavelmente teriam sido comidos e nós não estaríamos aqui. A visão absoluta, necessária, sagrada e universal do mundo (as coisas são com eu as vejo e pronto!) foi fator determinante para a sobrevivência da espécie79. Por isso ela é tão difícil de ser abandonada e é daí que decorre a forte tendência ao Platonismo, a crer que nossa percepção do mundo é capaz de nos mostrar a única verdade (absoluta universal e necessária), ou melhor, que o mundo tal como vemos e sentimos é o único verdadeiro e todas as outras interpretações não passam de mentiras ou erros. A título de exemplo, tente aplicar ao cotidiano a física elementar. Em um elevador, experimente dizer para seu companheiro de viagem que ele está parado e a parede está se movendo e veja o que acontece, ou convença um astrólogo de que as constelações a que ele se refere não existem mais e que os posicionamentos

77 Sobre as diferenças entre o absoluto e o relativo veja a brilhante troca de correspondências entre Umberto Eco

e o Cardeal Carlo Maria Martini em ECO, Umberto. Em que Crêem os que não Crêem. São Paulo: Record, 1999.

78 São exemplos disso todas as formas conhecidas de radicalismos, dos religiosos aos científicos passando pelos

futebolísticos.

79 ARTSTEIN, Zvi. Mathematics and The Real World. Philadelphia: Prometeus Books. 2014. Capítulo 1 nº 5

47 dos astros usados para seus mapas estão baseados na astronomia ptolomaica; aposto que comprará uma briga e tanto!

A utilidade inegável dos modelos absolutos do mundo acabou por criar uma visão moralista e moralizante, onde quem se atreve a adotar modelos relativos de mundo acaba sendo impiedosamente condenado. Robert Musil, no romance “O homem sem qualidades” em um magistral diálogo em que um amigo descreve o personagem principal, deixa evidente a visão que têm os representantes da tradição absoluta a respeito dos relativistas80.

Dentre os modelos relativos de mundo um obteve grande sucesso prático, ainda que não afetivo. Esse modelo é a racionalidade. O modelo racional é aquele que segue as regras da lógica e exige, para cada afirmação, uma justificação comunicável e verificável. Os métodos usados na justificação e na possibilidade de verificação são variáveis, no entanto elas são indispensáveis. Não há racionalidade sem a apresentação de uma justificação comunicável e verificável - sem a construção de uma prova - segundo critérios pré-estabelecidos81.

Com o passar do tempo ficou claro que o modelo racional, embora relativo e contingente e por isso contraintuitivo, é o que melhor se ajusta e é o mais eficaz para o desenvolvimento e sobrevivência da espécie humana. É com uso da razão que nossa sociedade consegue melhorar as condições e estender a expectativa de vida de seus membros. Os modelos absolutos fundados em certezas inabaláveis foram úteis por milênios, por isso, são difíceis de abandonar. É dessa dificuldade que surge o estranhamento frente a racionalidade que é relativa e contingente.

Não custa frisar que meu ponto de partida é o modelo racional do mundo e que isso é uma escolha. Existem vários outros modelos de mundo o que fazemos é escolher um a adotá- lo. É fato que essa escolha nem sempre é consciente, ou melhor, quase nunca é percebida como o que é: uma escolha. Alguém que adote um modelo absoluto de mundo, o modelo cristão por exemplo, necessariamente não encara a sua escolha como tal, mas sim como uma necessidade inexorável. Isso decorre da natureza absoluta do modelo. O absoluto é universal, necessário e

80 MUSIL, Robert. O homem sem qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. “Não se consegue adivinhar

nenhuma profissão pela aparência dele, mas por outro lado também não parece um homem sem profissão. Pense um pouco em como ele é: sempre sabe o que deve fazer; sabe olhar nos olhos de uma mulher; sabe refletir bastante sobre qualquer coisa a qualquer momento; sabe lutar boxe. É talentoso, cheio de vontade, despreconceituoso, corajoso, resistente, destemido, prudente. Não quero examinar isso em detalhes, acho que ele tem todas essas qualidades. Mas também não as tem! Elas fizeram dele aquilo que ele é, e determinaram seu caminho, mas não lhe pertencem. Quando fica zangado, alguma coisa nele ri. Quando está triste, rumina alguma coisa. Quando algo o comove, ele o rejeita. Qualquer má ação lhe parecerá boa em algum aspecto. É um possível contexto que vai determinar o que ele pensa de um assunto. Para ele, nada é sólido. Tudo é mutável, parte de um todo, de incontáveis todos, que provavelmente fazem parte de um supertodo, mas que ele absolutamente não conhece. Assim, todas as respostas dele são respostas parciais, cada um de seus sentimentos é apenas um ponto de vista, e para ele não importa o que a coisa é, e sim um secundário “como é”.” (página 48)

48 sagrado. Quando adoto um modelo absoluto de mundo não posso, sob pena de incorrer em uma incoerência devastadora, admitir que ele não seja necessário, em outras palavras, não posso ver a escolha como uma escolha. A adoção dos modelos absolutos é sempre vista como necessária. É inimaginável para um crente fervoroso a inexistência de deus ou a existência de outros deuses.

No documento Rodrigo Reis Ribeiro Bastos (páginas 45-49)