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Ontologia

No documento Rodrigo Reis Ribeiro Bastos (páginas 56-61)

Capítulo II – Fundamentos teóricos

3- Ontologia

Adoto um modelo racional em que percebo o mundo de forma razoavelmente organizada. Em meu modelo divido a percepção do mundo em: ser e conhecer. O ser, por sua vez é dividido em ser em sentido estrito ou ontologia e dever ser ou deontologia. Por fim há o conhecer, ou a epistemologia, que fornece os instrumentos técnicos para a sistematização, compreensão do modelo de mundo e onde estão os elementos do conceito de conhecimento.

Para que não paire qualquer dúvida e para que esse texto possa ser avaliado é importante frisar que minha concepção ontológica do mundo, os dogmas finais do meu modelo de mundo, são absolutamente relativos. Para isso faça algum sentido temos que trazer a luz aos conceitos de absoluto e relativo101.

As afirmações cujo fundamento é absoluto são caracterizadas pelo seguinte: universalidade, necessidade, eternidade, autoevidência e sacralidade.

De outro lado, as afirmações cujo o fundamento é relativo são caracterizadas pela contingência, temporalidade, necessidade de justificação e ausência do sagrado (fundamento profano).

A universalidade diz respeito a validade do fundamento para todos os seres humanos independentemente de sua individualidade, considerada em quaisquer aspectos tais como: sexo, idade, grau de instrução, cultura, geografia e etc...

Uma vez que o indivíduo afirma que seu fundamento é universal a consequência natural é que sua necessidade se imponha. O que é universalmente válido deve ser observado e imposto de forma cogente a todos os seres humanos.

Como decorrência da universalidade e da necessidade os fundamentos absolutos são percebidos como eternos, isto é, fora do tempo. São válidos em qualquer dimensão de espaço e tempo.

56 Na medida em que são universais, necessários e eternos, os dogmas absolutos independem de justificação já que podem e devem ser percebidos e conhecidos de forma “natural” por toda humanidade.

Por fim os dogmas fundamentados no absoluto são sagrados e qualquer sacrifício (próprio ou de preferência alheio) deve ser suportado para sua manutenção e/ou imposição.

A fundamentação pela via absoluta padece de dois problemas, um prático e outro lógico, que são insuperáveis: o problema lógico é a distinção e impossibilidade de dedução entre um ser e um dever102. O problema prático advém da contradição imposta pelas características intrínsecas dos fundamentos absolutos.

O problema lógico é o seguinte: quando os dogmas são percebidos como absolutos (universais, necessários, eternos e sagrados) eles devem ser aceitos por todos. Quem não concorda com eles só pode ser anormal (louco, burro ou delinquente). Para ensinar e os ignorantes e normalizar os anormais os dogmas precisam ser expressos e impostos por via de normas, afinal normal é o que está de acordo com a norma103. Toda norma expressa um dever, ou melhor, expressa a vontade de que alguma coisa que não é seja. Sempre que uma conduta é normatizada a ela é associado um valor. Valor é o sinal positivo ou negativo aposto a uma dada conduta. Toda valoração é normativa, isto é, toda valoração é estabelecida na forma de um dever. As condutas valoradas positivamente devem ser adotadas e as valoradas negativamente devem ser evitadas. Se uma conduta já é adotada não quer dizer que ela deva ser adotada nem, ao contrário, uma conduta que deve ser adotada não significa que ela o seja. É um problema de economia; se uma conduta já é não precisa dever-ser e se deve ser é porque não é. Aqui está o problema lógico crucial dos dogmas absolutos: se são universais, necessários, eternos e sagrados não precisam de normas, não precisam dever-ser, se precisam ser ensinados e impostos isso só é possível com o uso de normas, ou seja, de um dever-ser. Ora, se o fundamento absoluto é universal, necessário, eterno e sagrado ele já é. Se já é não precisa dever-ser. Se deve ser é porque não é absoluto, universal, eterno, necessário e sagrado. É fácil de constatar que não há um fundamento que ostente os predicados de universalidade, necessidade, eternidade e sacralidade, o que temos são fundamentos que pretendem se impor pela via das normas e que, portanto, devem ser e não são. Assim, de duas uma, ou adotamos os mesmos dogmas de forma espontânea e “natural” ou esses dogmas não são absolutos.

102 A diferença entre ser e dever é a base da teoria normativista de Kelsen, que veremos no capítulo 3. 103 FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Mas Limonad, 2002. pp 93,153

57 O outro problema que decorre da universalidade, que é intrínseca ao fundamento absoluto, está diretamente relacionado ao problema lógico. É difícil, senão impossível, entender como podem existir e coexistir vários fundamentos absolutos distintos. Se o fundamento absoluto é universal deve ser único. Como há vários fundamentos dogmáticos absolutos diferentes, que disputam o posto de único fundamento válido e verdadeiro, e como não há nenhum critério justificável para a escolha de um em detrimento de outro, a adoção de todo e qualquer dogma como fundamento absoluto não passa de uma escolha arbitrária fundada, no máximo, em um ato de fé e se é uma questão de escolha não pode ser, ao mesmo tempo, universal, necessária, eterna e sagrada.

Do outro lado, temos os fundamentos dogmáticos relativos que escapam dos problemas descritos para os absolutos, mas padecem de outros. Os fundamentos dogmáticos relativos são emocionalmente menos convincentes por sua falta de fé e de apelo a um elemento externo, superior ou sobrenatural. Essa característica, que é a maior virtude dos fundamentos relativos, acaba por ser sua desgraça.

Os seres humanos têm uma necessidade patológica de Certeza e Verdade (com maiúsculas) adjetivos que que não podem ser oferecidos pelos fundamentos relativos. Dogmas relativos apenas fundamentam uma ontologia circunstancial, isto é, aplicável em um contexto histórico, cultural, espacial e temporal limitados (contingentes), por isso mesmo os fundamentos relativos são mais ou menos voláteis e devem ser justificáveis de forma lógica ou empírica não possuindo nenhum traço de sacralidade. Ao contrário dos dogmas fundados no absoluto, os critérios relativos são sempre contestáveis e não há como se afirmar que eles devem se impor, necessariamente sobre os demais. Os dogmas relativos carecem de apoio transcendente, o que causa um problema de ordem afetiva, já que os seres humanos têm uma irracional necessidade de Verdade e Certeza (sagradas). Mas, por outro lado, é o fundamento dogmático relativo que permite o pluralismo (porque não é universal); a tolerância (na medida em que não é necessário); a evolução (por não ser eterno); o desenvolvimento do conhecimento humano (pela necessidade de justificação); e, se não garante ao menos possibilita, a democracia (já que por ser profano pode ser contestado). Outra característica fundamental dos dogmas relativos é a sua razoável autonomia frente as normas. Como o fundamento dogmático relativo não se pretende universal, necessário, sagrado ou eterno ele não precisa ser imposto a quem dele discorda, com isso os dogmas retornam ao seu lugar, ao campo do ser, da ontologia, e deixam o campo do dever, da deontologia, o que elimina o problema lógico que assola os fundamentos dogmáticos absolutos.

58 A diferença entre os fundamentos relativos e absolutos pode ser descrita em termos de conceito e preconceito. O conceito é uma formulação justificada e que comporta exceções e pode ser modificada desde que sejam apresentadas provas ou argumentos convincentes para tanto. O preconceito, por sua vez, não admite mudanças críticas ou erros, nossos preconceitos (todos nós os temos) são irracionais.

A contradição dos fundamentos relativos emerge quando tento aplicar o dogma da relatividade sobre ele mesmo, quando tento encarar a relatividade como relativa. Se a relatividade é relativa então ela pode ser absoluta. Indo um pouco mais além a contradição fica evidente na medida em que ao adotar uma ontologia relativista repudio de forma categórica (absoluta) todas as ontologias fundadas no universal, eterno, necessário e sagrado. Ao adotar essa postura acabo por sacralizar o profano104105.

O simples resumo que acabei de expor traz à tona o problema da recursividade. Veja: na medida em que avalio fundamentos ontológicos tendo como ponto de partida os mesmos fundamentos que serão avaliados me deparo com a recursividade que é a fonte última dos problemas de completude e consistência tratados por Gödel e evitados por Kelsen. Um bom exemplo desse problema é descrito pelo paradoxo do mentiroso106. Imagine a seguinte afirmação: “essa afirmação é falsa”. Se a afirmação for verdadeira então ela é falsa e se for falsa é verdadeira. A mesma coisa acontecerá com os fundamentos dogmáticos relativos. Se aceito apenas dogmas relativos a relatividade se torna absoluta e não pode ser admitida já que só aceito dogmas relativos. A única forma de escapar dos paradoxos da recursividade é evitando a recursividade. Enquanto a justificação das afirmações se mantém na esfera puramente axiomática não há nenhum problema. Sempre será possível evitar a recursividade remetendo a justificação dos axiomas para outros modelos. A coisa se complica quando entro no campo ontológico (dogmático), onde evitar a recursividade é impossível. Não há saída!

Mas o caráter absoluto ou relativo são apenas propriedades, características e não a ontologia em si. A ontologia é composta por afirmações metafísicas sobre o mundo e tudo o que está nele contido. Na medida em que essas afirmações são metafísicas elas não estão sujeitas a qualquer critério de verificabilidade, por isso existem tantas escolas filosóficas diferentes.

104 Aqui, pela primeira vez, aparece o problema dos paradoxos da auto referência que dão a tônica das limitações

dos modelos formais.

105 A mesma crítica já foi dirigida á Dawkins. DAWKINS, Richards. The God Delusion. New York: Mriner Book,

2008.

59 Para tentar compreender as várias opções e percepções ontológicas do mundo adotei um esquema em que a ontologia se divide em: essência, existência e realidade107.

A essência é identificada como a coisa em si, as coisas como realmente são não como parecem ser. Essa essência é sempre evasiva e impossível de apreender108.

A existência é a aparência externa das coisas. Enquanto a essência esconde a existência mostra. A existência seria o aspecto do ser em si que podemos perceber, mas nunca percebemos ou apreendemos de forma completa, em todas as suas facetas, é aí que entra a realidade.

A realidade é a porção da existência efetivamente percebida pelo sujeito.

As escolas metafísicas variam de acordo com a ênfase dada a cada um desses elementos. O platonismo, por exemplo, dá ênfase a essência. Kant, por outro lado, traz sua inflexão para a existência. Podemos afirmar que Deleuze109 e Wittigenstein110, cada um de uma forma, enfatizam a realidade. E assim por diante. Cada grande escola filosófica pode ser catalogada de acordo com a ênfase que dá a essência, existência ou realidade.

De meu turno adoto a postura segundo a qual a essência é irrelevante já que ela jamais pode ser apreendida ou compreendida. A existência também é de pouca ou nenhuma relevância na medida em que me conformo com minha incapacidade perceptiva. Jamais conseguirei perceber todos os aspectos da existência. Me contento em lidar com a realidade, assim entendida como a efetiva percepção que tenho do mundo. Note-se que o termo realidade tem aqui a acepção já delimitada como sendo o mundo tal qual o percebo, por isso essa realidade depende visceralmente das minhas ferramentas epistemológicas e é volátil podendo mudar na medida em que as técnicas e os instrumentos para a minha percepção do mundo evoluem. Além disso, essa concepção metafísica é totalmente relativista já que a realidade é ditada pela percepção e não só a percepção se altera de acordo com as précompreensões como ela varia de sujeito para sujeito. Minha concepção ontológica do mundo pode ser resumida por uma passagem de Shakespeare em Macbeth onde ele diz o seguinte111:

107 Lavelle, Louis. Introduction à l’ontologie. 2e édition. Paris: Les Presses universitaires de France, 1951, pp

9/65.

108 “[Górgias] diz que nenhuma coisa é: se é, é incognoscível: se tanto é quanto [é] cognoscível, não é, no entanto,

[comunicável] a outros. E conclui que não é, reunindo (15) as coisas ditas por uns e outros, isto é, todos os que, dizendo coisas contrárias acerca do-que-é, denunciam-se – como parece– uns aos outros” LEONTINOS, Górgias de. Paráfrase Do Mxg Do Tratado Do Não-Ser. São Paulo: S.E., S.D.

109 É a conclusão a que cheguei sobre o modelo do rizoma. Veja: DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. MIL

PLATÔS Capitalismo e Esquizofrenia Vol. . São Paulo: Editora 34, 2000, p/p 14 e seguintes.

110 A opção de Wittgenstein pela realidade fica evidente quando ele afirma que: “Os resultados da filosofia são a

descoberta de um absurdo simples qualquer e as mossas que o intelecto arranjou ao bater contra o limite da linguagem”. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2009, pagina 73.

111 Life’s but a walking shadow, a poor player That struts and frets his hour upon the stage And then is heard no

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A vida é apenas uma sombra. Um pobre ator que se empavona e agita por uma hora no palco. Então não se ouve mais nada. É um conto. Narrado por um idiota, cheio de som e fúria. Significando nada.

Já que a vida não passa de uma história sem nexo contada por um idiota, aos gritos, cheio de som e fúria, a única alternativa que me resta é criar uma realidade, criar um significado e faço isso estabelecendo, manipulando e comunicando modelos, ainda que provisórios, da forma mais coerente possível.

Tanto meus modelos deontológicos quanto os epistemológicos estão condicionados aos dogmas escolhidos (os da relatividade absoluta).

Agora que deixei claras (ao menos eu acho que sim) minhas opções ontológicas vamos adiante.

No documento Rodrigo Reis Ribeiro Bastos (páginas 56-61)