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5. Análise e discussão dos dados

5.2. Modo de funcionamento dos serviços e o Planejamento

Continuando com o quadro comparativo entre os dois serviços, enumeramos diferenças entre o que responde à gestão pública com gerência pública (AD) e o que responde à gestão pública através de gerência não-estatal (OSS). Dentre as diferenças principais elencadas, podemos destacar as apresentadas na Figura 2.

Figura 2. Diferenças entre os serviços com gerência pública e gerência

privada.

Na Figura 2, podemos ver as características comparadas entre os dois serviços, os quais praticamente demonstram ser um a antítese do outro. Primeiramente a partir dos relatos coletados na entrevista, vê-se que a hierarquização, ou seja, a cadeia de comando a qual responde os técnicos do serviço é bem aparente no serviço CAPS II – Oeste, em que por ser de gerência pública o mesmo responde diretamente à Coordenação de Saúde Mental do município, que por sua vez responde diretamente à secretaria municipal de saúde.

Dentro do serviço, a coordenadora que responde pelas necessidades administrativas do serviço, bem como encabeça a liderança junto à equipe. Trabalha juntamente com o administrador do serviço, o qual fica responsável pelo preenchimento das documentações (tais

G E NC IA P Ú BLI C A •HIERARQUIZAÇÃO VERTICALIZADA; •FALTADE AUTONOMIA– CENTRALIZAÇÃODOS RECURSOSFINANCEIROSPELO

PODEREXECUTIVO MUNICIPAL; •DESINFORMAÇÃODOS

TÉCNICOSQUANTOAOS RECURSOSFINANCEIROS

•NÃOPARTICIPAÇÃOEM PLANEJAMENTODOSGASTOS

G E NC IA P R IV A D A •HIERARQUIZAÇÃO HORIZONTALIZADA; •AUTONOMIA– INDEPENDÊNCIANAGESTÃO DOSRECURSOSFINANCEIROS

DOPODEREXECUTIVO MUNICIPAL; •CONHECIMENTODETODO

CORPOTÉCNICOQUANTO AOSRECURSOSFINANCEIROS

•PARTICIPAÇÃONO PLANEJAMENTODOSGASTOS

quais ofícios, memorandos, guias de requisição, etc.) e envio para o poder executivo. Vale frisar que o serviço não tem acesso ao manejo dos recursos financeiros, sendo do âmbito da SMS a responsabilidade por isso. A centralização dos recursos cria então uma burocratização dos processos de compra e contratação, em que o serviço recebe apenas os materiais e insumos necessários e que foram requisitados, podendo muitas vezes por falta do que foi pedido no estoque do almoxarifado da SMS, não receber o necessário.

A equipe técnica fica responsável pelas ações do serviço, bem como pelo andamento cotidiano das atividades junto aos usuários e familiares, se caracterizando por atuações interdisciplinares. Existe um calendário de atividades e são realizadas em grupos nos horários determinados, havendo também os atendimentos grupais e individuais de caráter terapêutico.

Já no CAPS II – PAR a hierarquização se apresenta de modo mais horizontalizado devido à autonomia e acesso da equipe com relação ao que é necessário para o serviço, desde materiais e insumos, ou mesmo contratação de novos funcionários. A coordenadora tem um papel de liderança dentro das atribuições administrativas, em que juntamente com a administradora financeira fica a cargo das ocupações administrativas.

De acordo com o recurso financeiro disponível em caixa, há a autonomia para se requisitar materiais, tendo o serviço contato direto com os fornecedores e com o processo de compra. A equipe técnica atua de forma multidisciplinar com atendimentos terapêuticos individuais e grupais, em que algumas atividades são realizadas interdisciplinarmente, bem como atividades realizadas de acordo com um calendário estabelecido de atividades, inserindo-se nestas também os profissionais específicos desde arte terapia, atividades de artesanato, etc. Nota-se um privilégio da técnica de cada área de atuação que pode caracterizar traços de profissionalismo (privilégio das especialidades técnicas) nas atuações dentro do serviço.

Quanto à questão da informação dos técnicos, usuários e familiares sobre os recursos financeiros disponíveis para o serviço, ficou aparente nos discursos dos profissionais entrevistados o alinhamento com a forma que é gerenciado o serviço.

No serviço CAPS II – Oeste devido à centralização do gerenciamento dos recursos financeiros à SMS de Natal, os profissionais da equipe técnica não tinham conhecimento de quanto dispunha o serviço de recurso em caixa, bem como não tinham ciência das informações de como é realizado o financiamento do mesmo. Isso cria um entrave, o qual dificulta a possibilidade entre os profissionais quanto a sua autonomia de determinar o que é necessário para o melhor andamento das atividades, pois eles que sabem do cotidiano do serviço e estão a par das necessidades do mesmo de forma direta.

Acaba que esta centralização gera uma burocratização que aumenta as deficiências do serviço, pois a SMS é quem determina o que será comprado para o mesmo e o que será possível de ser disponibilizado, ficando os profissionais e o serviço a mercê do que pode ou não ser suprido pelo poder executivo local. Foi relatado também que, mesmo com esses fatores contrários, a equipe técnica realiza assembleias com os usuários para saber de suas necessidades e para poder disponibilizar o mínimo de orientação em torno das condições e possibilidades para os mesmo dentro das condições estabelecidas.

Sendo considerável desta forma o enrijecimento da hierarquização na cadeia de gerenciamento do serviço, torna-se consequência natural a equipe técnica não ter acesso ao planejamento dos gastos, não havendo nenhum planejamento das ações do serviço que oriente os gastos necessários, sendo levado em conta as atividades que serão desenvolvidas somente para os que compõem o serviço substitutivo. A SMS, que é quem delimita tais gastos, não tem nenhuma ciência de como serão estas atividades, sendo os gastos planejados de forma a levar em consideração o que foi gasto no ano anterior, demonstrando uma total falta de planejamento dos gastos para o financiamento disponível por parte da gestão pública.

Importante relatar que nenhum plano de gestão foi encontrado e disponibilizado, demonstrando que os gastos são feitos de forma desorganizada e sem levar em conta os reais interessados e participantes de seu uso, que seriam os usuários e equipe técnica do serviço CAPS II – Oeste.

Isso abre possiblidades de crítica de que tal cenário parece estar fundamentado em um descaso com os interesses públicos, levando a uma concepção elaborada a partir de uma análise superficial de que a gerência privada com os recursos repassados diretamente à sua responsabilidade seria uma otimização e a saída para desonerar a gestão pública.

Entretanto, o que parece é que a gestão pública também é desresponsabilizada de sua função, tanto em termos administrativos, mas principalmente no âmbito político de também se reorganizar e procurar se reestruturar para melhor conseguir gerir os interesses públicos diante das novas demandas, inclusive as que são deliberadas pelas perspectivas neoliberais.

O que entra em discussão agora seriam consequências que deveriam extrapolar o mero incentivo à reorganização das gerências dos serviços públicos de saúde. Seria antes disso, priorizar uma reforma da gestão pública estatal, modernizando seus aparatos e transcender a gestão dos interesses públicos da perspectiva tecnoburocrática, ultrapassando a ótica meramente administrativa de recursos. Isso levaria a pôr em questão a lógica da gestão pública, questionando quais são seus objetivos ideológicos e que tipo de política se prioriza a partir de suas articulações com os serviços e os prestadores de cuidados em saúde.

Sendo assim, a gestão pública poderia fundar novas modalidades de articulação com as gerências públicas dos serviços, as quais também passariam por transformações visando maior eficiência e autonomia na utilização dos recursos e na prestação dos serviços de cuidado em saúde. Seria então ultrapassado o caráter gerencialista que visam atualmente os serviços públicos de saúde, os quais tendem a partir de uma perspectiva privada, introjetar modelos de atuação pautados na noção de paramercados.

Podemos ver na fala de Barbosa (2010) o que pode também ser transferido para a questão da negociação de materiais, bem como de outras necessidades do serviço público com gerenciamento da AD, que “os gerentes dos serviços de saúde – especialmente os do setor público – são reféns de regulamentações que restringem severamente, no plano formal, sua autonomia para a contratação, descontratação e a negociação local dos termos dos contratos de trabalho” (p. 2500).

Quando passamos a ver a situação do planejamento dos gastos por parte dos profissionais que compõem o serviço CAPS II – PAR com gerência não-estatal, foi prontamente relatado que todos da equipe técnica tem conhecimento do quanto há de recurso em caixa disponível. No planejamento desses gastos, todos participam e colocam as necessidades existentes, pois como a negociação é direta da gerência do serviço com o fornecimento dos materiais e insumos, de acordo com o que é necessário e da quantidade de recursos financeiros disponíveis, pode ser dirimido os problemas e necessidades do serviço.

Também foi relatada pelos componentes da equipe técnica a realização de assembleias com usuários e familiares, os quais também colocam suas necessidades e as discutem com a equipe técnica do serviço, em que juntamente com a coordenação e administração financeira, veem a possibilidade de execução do que é demandado de acordo com os recursos que estão disponibilizados ao serviço.

Mesmo com o aparente dinamismo existente no serviço, também não foi encontrado nenhum plano de gestão dos recursos disponibilizados pela gestão pública municipal, as quais são repassadas pelo governo federal. Vale salientar que os recursos destinados ao serviço substitutivo CAPS II – PAR são repassados diretamente pelo município e em sua totalidade, em que a autonomia sobre este é total por parte da gerência da ONG que representa formalmente o serviço público de saúde mental. O município de Parnamirim realiza auditoria

mensal sobre os gastos desenvolvidos, os quais tem de ser comprovados pelo serviço para o recebimento do próximo repasse.

Mesmo com a análise das diferenças a partir dos modos de gerência pública e privada dos serviços, as características praticamente contrárias entre um e outro parece levar a uma conclusão superficial de que este seria o real problema. Estaria de acordo com o argumento de que a implantação de tipos diferentes de gerência como os elaborados a partir do regime das OSS seria a solução para desonerar o Estado, e assim atingir o objetivo apregoado durante a reforma gerencial estatal nos anos de 1990.

Entretanto, em uma análise das características administrativas e do funcionamento da gerência pública e privada de serviços substitutivos que possuem a mesma renda em termos de recursos financeiros repassados demonstra que, tais diferenças não seriam uma comprovação de uma superioridade e melhoria do último modo sobre o primeiro (gerência privada > gerência pública), mas de que tal forma de funcionamento e as características vistas a partir disso são na verdade consequências da forma que a gestão pública realiza o repasse.

Em outras palavras, se o serviço CAPS II – Oeste de gerência pública da AD tivesse o mesmo benefício e autonomia que é realizado com o repasse dos recursos financeiros ao serviço CAPS II – PAR de gerência privada por regime de OSS, será que o seu funcionamento também não mudaria e se aproximaria mais da realidade vista, se assemelhando ao funcionamento da gerência não-estatal? O fato é que, ao invés de haver uma modernização nos processos de gestão pública, agilizando a máquina estatal em seus processos e fazendo com que as respostas administrativas estejam em consonância com as necessidades técnicas, houve no Brasil a iniciativa de privilegiar providências paralelas, as quais seriam fortemente incentivadas por iniciativas neoliberais.

Ou seja, na reforma gerencial estatal ocorrida nos anos de 1990 e continuada no início dos anos 2000 tomou-se o caminho deliberado a partir das indicações das tendências

neoliberais para reforma dos Estados, em que no Brasil tomou-se o argumento de que para desonerar e desburocratizar o Estado, este deveria diminuir e abrir parte de suas atribuições para a iniciativa privada. Com a regulação da lei de mercado, bem como das características da gestão estratégica da área privada, viriam a solução para os problemas que eram justificados como sendo consequências das atribuições excessivas do Estado, o qual precisava “desinchar- se” para melhor funcionar a partir de um papel apenas regulador, e não mais de provedor.

Segundo Barbosa (2010),

O projeto neoliberal representa a resposta de governos alinhados com a estratégia de redução do papel do Estado e a transferência para o mercado de diversas de suas atribuições e responsabilidades com a oferta e financiamento de bens e serviços públicos. [...]

O modelo gerencial, a despeito de sua matização, guarda alguns princípios comuns, como reação ao desperdício, incentivos ao desempenho (com separação entre financiamento e provisão), foco na eficiência. A mudança mais substancial patrocinada pelo surgimento deste novo paradigma está relacionada à formação de paramercados (quase-mercados), com a introdução da contratação e seus desdobramentos sobre o comportamento organizacional.

A ideia central contida na noção de paramercados é a de estimular a introdução de mecanismos de mercado dentro do serviço público, estimulando a competição no seu interior. (p. 2486)

Fica claro que o governo brasileiro à época tomou um direcionamento ideológico, o qual norteava não somente a reforma gerencial do Estado, mas toda a reforma consequente dentro dos setores de assistência proporcionados, os quais ficariam com uma influência

indelével das tendências reguladoras neoliberais através do mercado, fazendo da economia o objetivo principal de tal reforma.

Sendo assim, o planejamento dentro de tais moldes sempre terá uma forte tendência ao gerencialismo, o qual no interior de um sistema nacional de saúde como o SUS, provoca o paradoxo de se ter em serviços públicos características gerenciais que privilegiem a excelência nos moldes profissionalistas e a produção de cuidados de modo a se privilegiar a técnica.

As consequências aparentemente benéficas nos moldes gerenciais instituídos com as OSS seriam muito mais advindas da autonomia dispensadas a estas organizações, como a de se beneficiar com o repasse direto e total dos recursos financeiros, e poder manejá-los independentemente, do que necessariamente do modo de funcionamento das gerências não- estatais e privadas instaladas nos serviços públicos de saúde.

Com as noções de mercado compondo o interior dos serviços públicos, criam-se paradoxos que vão além das noções puramente ideológicas, mas da realidade se mostrando em consequências materiais da ideologia que a norteia para sua construção. Fica difícil imaginar a promoção de justiça social e de uma universalidade no atendimento, já que a participação social dentro de um serviço com tais características fica vinculada a introdução de “mecanismos de mercado” para sua regulação, já que neoliberalismo em si pressupõe a individualidade como meio de se buscar uma igualdade.