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2.4 O GRANDE CAPITAL NA REGIÃO DO ARAGUAIA E SEUS FLUXOS

2.4.1 Mosaico cultural no Araguaia (a diversidade subalterna)

O Araguaia na atualidade está dividido em três sub-regiões: o Alto, o Médio e o Baixo Araguaia.

77 A expressão Revolução Verde surgiu na década de 1970 e refere-se a um modelo de agricultura intensivo que usa sementes geneticamente modificadas, insumos industriais (agrotóxicos), mecanização, produção em massa de produtos homogêneos e diminuição do custo de manejo. Trataremos dele no capítulo II.

78 COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. 2014. Disponível em:

O Alto concentra os migrantes sulistas, apresentando a maior produção agrícola da região; o Médio concentra os migrantes de Sudeste e Centro-Oeste e a produção da pecuária; o Baixo concentra os migrantes do Nordeste e Norte do país e os maiores índices de desigualdades e problemas relacionados a conflitos de terras, onde a pecuária e o grande latifúndio foram carro chefe durante décadas, sendo agora fronteira de expansão do agronegócio em uma das últimas fronteiras agrícolas de Mato Grosso.

Extensas áreas de pastagens, anteriormente destinadas à pecuária, são removidas para a introdução da soja. Nesse sentido, cabe observar o intenso crescimento da área plantada do grão nos municípios da região, que hoje ultrapassa meio milhão de hectares e há um pouco mais de uma década eram de menos de 15 mil hectares. Tal situação faz crescer a hegemonia política das corporações do agronegócio exportador expondo-o e apresentando-o como a única e grande solução política para o desenvolvimento econômico regional. (BAMPI et al., 2017, p. 40).

O avanço do agronegócio, junto a permanente concentração fundiária, trouxe consigo diversos problemas socioambientais, entre os quais podemos destacar: o aumento do desmatamento; a perda progressiva da biodiversidade; a erosão do solo; os efeitos de substâncias químicas agrícolas sobre o meio ambiente e sobre a saúde humana; a contaminação dos recursos hídricos; o assoreamento de nascentes; córregos e rios. Não é por acaso que, na atualidade, encontramos nesse território a presença de corporações multinacionais como CARGILL, BUNGE, BASF, BREVANT, IHARA79.

Nesse movimento de expansão, o agronegócio “vai ampliando seu território incorporando áreas da agricultura familiar (por intermédio de compra ou sistema de arrendamento) de pequenos agricultores, outrora migrantes da época da colonização e mesmo dos recentemente assentados” (BAMPI et al., 2017, p. 41). A história de ocupação da região criou um mosaico populacional extremamente diverso.

Na atualidade, a região é ocupada e composta por diversos grupos sociais: indígenas, posseiros (de meados do século XX até ocupações recentes), pequenos agricultores ou agricultores familiares (migrantes do processo de colonização particular ou que ocupam grande número de assentamentos de projetos do INCRA), grandes fazendeiros, empreendedores agropecuários e empresários. Estes últimos exercem um poder desproporcional sobre a

79 CARGILL é uma corporação multinacional sediada nos Estados unidos. Fundada em 1865, suas atividades comerciais se dão na área dos grãos, mercadorias agrícolas, alimentação para gado e indústria farmacêutica; BUNGE é uma das principais empresas da agroindústria e alimentos do mundo. Fundada na Holanda em 1818, desde 1905 o Brasil é sua maior base; BASF é a empresa química maior do mundo. Foi fundada na Alemanha em 1925. BREVANT é uma nova marca de distribuição de sementes do consórcio de duas grandes corporações multinacionais norte-americanas, DOW e DUPONT, dedicadas à “defensivos agrícolas” (bem dizendo, agrotóxicos); IHARA nasceu em 1965 no Japão, também dedicada aos chamados “defensivos agrícolas”.

configuração social, política e ambiental da região em detrimento de outros grupos de parca ou menor influência. (BAMPI et al., 2017, p. 43).

As migrações em direção a Mato Grosso na década de 1970 promoveram um salto importante nos números populacionais. Segundo Oliveira (2016, p.170) o crescimento da população mato-grossense foi de 86% entre 1970 e 1980 e de, aproximadamente, 90% na década de 1990. Cinquenta e sete por cento (57%) desses migrantes vieram do Centro- Sul do país, especialmente do Paraná.

Uma pesquisa recente realizada por Quinquiolo (2016) apresenta um levantamento dos diversos grupos do Araguaia, desde uma perspectiva identitária a partir da divisão sócio espacial, citada anteriormente (Alto Médio e Baixo Araguaia).

Eles se auto e inter identificavam pela referência ao grupo identitário ou de origem, usando denominações como: índios, sulistas, goianos, gaúchos. Todavia, as denominações pela atividade laboral também se acoplavam à étnica, como sobreposição: lavradores, agricultores, fazendeiros, pecuarista, trabalhador rural, microprodutor, assentado, sindicalista, garimpeiro, posseiros e membros de movimentos sociais. (QUINQUIOLO, 2016, p. 4-5).

Sobre as características dos grupos migratórios, Quinquiolo (2016) destaca algumas que os diferenciam. Os nordestinos e nortistas fugiam da pobreza e da seca, muitos se viram afetados pelo esgotamento do ciclo da borracha que os obrigou a migrar80. Chegavam sem capital algum e, carregavam crenças na profecia de que, os nordestinos, deveriam ir até o “sertão verde”, associando-o às matas do Araguaia.

Foram os nordestinos e nortistas os que fundaram as primeiras cidades, na beira do Araguaia, como Santa Terezinha ou São Felix do Araguaia (AXA, 2012), que concentraram, inicialmente, sua atividade econômica em serviços mais pesados e no garimpo. Segundo Quinquiolo (2016) há três aspectos principais na representação que os demais migrantes, tais como os sulistas, goianos e paulistas fazem dos migrantes nordestinos e nortistas: “[...] povo trabalhador, que veio fugindo da seca e se inserindo no garimpo”; “descapitalizado, sem recursos”, “fácil sociabilidade em relação a outros grupos, sendo os mesmos considerados como simpáticos, acolhedores, simples e humildes” (QUINQUIOLO, 2016, p. 94). Esta população concentrada no Baixo Araguaia teve a Igreja Católica (desde a linha da Teologia da Libertação), a partir da década de

80 É bom lembrar as grandes estiagens que sofreu o Nordeste, final do século XIX. Segundo Quinquiolo, essas secas extremas “contribuíram para a morte de cerca de 300 mil pessoas pela seca e para a migração de meio milhão de nordestinos, destes 200 mil eram cearenses. Com o desenvolvimento do ciclo da borracha na Amazônia e o estímulo à migração, mais de 250 mil nordestinos se deslocaram para a nova fronteira” (QUINQUIOLO, 2016, p.103).

1970, como forte aliada nas lutas territoriais, com o bispo Pedro Casaldáliga como seu maior representante. Já, a migração sulista entrou na região pelas estradas ligadas aos projetos de colonização privada, e são o que apresentam o maior desenvolvimento na agricultura de escala.

Muitos agricultores familiares sulistas, com pequenas propriedades em seus locais de origem, ou mesmo sem terra, cuja maioria fora filhos, netos e bisnetos principalmente de migrantes italianos e alemães que manejavam a terra, tornaram-se migrantes contemporâneos, com o sonho de transformarem-se em grandes produtores e fazendeiros. Promoveram um intenso “desmatamento civilizador”, replicando situações de intensa degradação ecológica, outrora vivenciadas e constituídas por eles e seus ancestrais em seus locais de origem, no Sul do Brasil. (BAMPI et al., 2017, p. 38).

Contudo, a migração “espontânea”, como dirá Arruda (2017), é rara. A maioria se desloca pela necessidade de sobreviver e melhorar de vida, motivados por incentivos dados pelo Estado que, usou o deslocamento de populações para atenuar conflitos sociais no campo e, para responder às demandas da expansão capitalista. “[...] Esse ‘espontâneo’, não se refere à decisão livre e autônoma dessas massas; antes, a migração significa a tentativa, às vezes desesperada, dessas massas para atender as suas necessidades primárias longe dos seus territórios de origem” (ARRUDA, 2017, p. 62).

Nesse sentido, a migração sulista tinha como uma de suas causas, o empobrecimento e a concentração do capital nos estados do sul.

Entre 1976 e 1978, cerca de 60 mil pequenas propriedades desapareceram no Rio Grande do Sul, incorporadas pelo latifúndio, o que, segundo Schaefer (1985, p. 96), prova que o reagrupamento pretendido de pequenas propriedades rurais não ocorreu. Mesmo com a migração da mão de obra do campo para as cidades maiores, ou para as capitais, a produção, em números absolutos, continuou a crescer. O Paraná bateu recorde de produção de grãos em 1980 (13 milhões de toneladas, 30% da produção nacional), apesar disso o pequeno produtor estava mais pobre que nos dez anos anteriores. (JOANONI NETO, 2014, p. 194).

A questão religiosa81 foi um fator importante na migração sulista. Líderes da Igreja Luterana de Tenente Portela no Rio Grande do Sul, particularmente, o pastor Norberto Schwuantes, criaram a cooperativa COOPERCOL - Cooperativa de Colonização 31 de Março Ltda. Contaram com ajuda dos projetos colonialistas formando as chamadas cidades “gaúchas”, como Água Boa, Querência e Canarana, dando prioridade para a produção de soja, trigo e a modernização da agricultura.

81 Encontramos em diversas pesquisas a importante influencia luterana na migração sulista. Nós nos baseamos no estudo realizado por Quinquiolo (2016, p.147).

Os sulistas, também trouxeram com eles os Centros de Tradições Gaúchas (CTG)82 espalhados pela região, buscando preservar os costumes da mesma forma com que eram cultuados há gerações. O lema criado no primeiro CTG, em 1948, ainda hoje replicado pelos homens (gaúchos) e mulheres (prendas) participantes deste movimento é: “Em qualquer chão – sempre gaúcho”. O Movimento Tradicionalista Gaúcho criou uma "Carta de Princípios", escrita em 1960, em que se regulamentam aspectos éticos, cívicos, culturais, estruturais e filosóficos da cultura gaúcha a serem seguidos pelos tradicionalistas. “[...] Nas narrativas dos gaúchos fica evidente que, além do apreço que eles atribuem ao trabalho, também o fazem em relação à importância atribuída à educação [...] como forma de se valorizar a supremacia de um grupo social” (QUINQUIOLO, 2016, p. 87). Entretanto, os grupos de migrantes nordestinos, nortistas e goianos percebem estas características de forma crítica considerando a existência de preconceitos, não obstante, a miscigenação entre os grupos.

A fala dos entrevistados não gaúchos mostra a forma como caracterizam os gaúchos, como tendo uma intensa afirmação de identidade e como sendo a sua característica principal o fato de “não se misturar com os outros”, “se considerarem superiores aos outros”, ancorada na representação que os mesmos teriam de possuírem uma cultura de raízes europeias. (QUINQUIOLO, 2016, p. 83).

Outro grupo de migrantes provém de Goiânia e Tocantins. Seus integrantes atravessaram o Araguaia pela Ilha do Bananal a procura das pastagens nativas da margem oeste, de terras dos projetos de reforma agrária ou de empregos nas fazendas e municípios. Uma boa parte de famílias assentadas da reforma agrária tem essa origem.

Já, os paulistas são um contingente menor e de ocupação mais ocasional. Entretanto, “[...] possuem importante influência na configuração socioeconômica pela presença de fazendeiros, empresários e pessoas qualificadas que participam dos processos sociais de estruturação das políticas do Estado e do terceiro setor” (ISA/AXA, 2012b, p. 18). Por último, “[...] os mato-grossenses constituem o grupo mais recente, formado pelos filhos dos migrantes e pelos moradores advindos da imigração interna do estado” (Ibidem).

82 Os CTGs tem 29 princípios, mas vale a pena colocar aqui pelo menos um deles, pois mostra a busca pela construção de uma força coletiva que seja capaz de influenciar o Estado: “XXIX - Buscar, finalmente, a conquista de um estágio de força social que lhe dê ressonância nos Poderes Públicos e nas Classes Rio- grandenses para atuar real, poderosa e eficientemente, no levantamento dos padrões de moral e de vida do nosso Estado, rumando, fortalecido, para o campo e homem rural, suas raízes primordiais, cumprindo, assim, sua alta destinação histórica em nossa Pátria”. Disponível em: http://www.mtg.org.br/historico/219. Acesso em: 8 nov. de 2017.

Essa diversidade formada pelos povos originários, pelas comunidades tradicionais e pelos filhos de imigrantes de diferentes regiões do país constituem um mosaico complexo de visões de mundo em interação e são pano de fundo de nosso estudo.

Nesse processo histórico, a terra e suas riquezas são o eixo condutor das ações dos dominantes: invasões, roubos, estabelecimentos de fronteiras e cercas, mudanças de paisagens para adaptá-las às demandas de um mercado nacional e internacional sempre presente. Invisibilidade e negação do “outro”, extermínios, absorção desse “outro” como força de trabalho. Junto com os que sofreram e sofrem a dominação, suas resistências, lutas e defesas dos territórios, com a conservação de culturas onde a dinâmica do capital não faz sentido, com a preservação e o esforço de recuperação do que foi destruído. Essa dinâmica é a que constrói o Araguaia de hoje.

O colonizador, coronel, fazendeiro, o grande empresário frente a grupos subalternos, fragmentados e muito diversos, que sofreram todos tipos de dominação, mas que re-existem. Talvez, porque “[...] tirar o sentido de vida que a terra tem, essa gente que nasceu na terra, e tem a memória da terra não aceita isso. Esperneia, morre, continua reaparecendo em outros termos, mas continua lutando e berrando, dizendo que aquilo é a mãe terra” (KRENAK, 2018, p. 19).

Somos movidos pela força dos afetos em territórios que são feitos por poderes que constantemente violentam espaços do outro em seus modos de ser. Vivemos imersos e submersos na diáspora das consciências, identidades e culturas. [...] As cercas são impostas por aqueles que acreditam que existem fronteiras e fazem delas formas de exercer poder, são cercas fincadas ainda no período colonial em nosso pensamento.[...] Mas ele [o território] não é apenas um espaço geográfico, físico ou espiritual, carregamos também as terras ancestrais em nosso pensamento, forma de estar no mundo, produzimos territórios a cada palavra, cada canção tradicional solta no vento, e todo lugar que mostramos nossa verdadeira face como um ato de sobrevivência fazemos de muitas formas está nossa resistência territorial. (MACHADO, 2017)83.

Machado de forma sucinta e bela mostra como o território pode ser mais do que um acúmulo de hectares passíveis de "cerca". Termina sendo uma história viva de afetos e memórias que sobrevivem em corpos concretos. A terra, assim sentida, representa o corpo da mãe que não deve ser violentado, mas protegido. Esta visão de mundo negada, ocultada, desprezada ao longo da história se confronta com a visão mercadológica do

83 Renata Machado é da etnia Tupinambá, jornalista, roteirista e produtora. Trabalha com a comunicação voltada para etnomídias, descolonização dos meios de comunicação e fortalecimento das narrativas indígenas. O texto faz parte de uma entrevista realizada 05 de outubro de 2017 na Rádio Yandê, intitulada: “Territorialidades, afetos e poderes”. Disponível em: https://radioyande.com/default.php?pagina=blog.php&site_id=975&pagina_id=21862&tipo=post&post_i d=737. Acesso em: 15 set. de 2018.

capitalismo que terminou se impondo. Ambas confluem em direção a modelos produtivos específicos no meio rural que respondem a determinados tipos de sociedade, como veremos na sequencia.

3 MODELOS EM DISPUTA - O AGRONEGÓCIO

O modelo do agronegócio alcançou, nas últimas décadas, fama e prestígio apresentando-se como modelo produtivo com capacidade de "alimentar o mundo" e contribuir substancialmente com a economia brasileira. No entanto, na atualidade, a situação de crise ambiental e climática o obriga a se confrontar com contradições importantes que o situam no campo da insustentabilidade ambiental e no confronto com diversos grupos sociais subalternos. Assim sendo, faz-se necessário entender sua origem, a concepção de mundo que carrega, suas dinâmicas, representações políticas, relação com o Estado e disputa por hegemonia.