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Motivações para obediência e transgressão de regras e ordens

Além das questões relativas à relação dos alunos com a autoridade, outros aspectos da transgressão e da obediência foram levantados pelos jovens. Segundo eles, as razões que levariam um aluno obedecer ou transgredir regras ou ordens no ambiente escolar seriam de ordem convencional, relacional, moral e de ordem pessoal, sem que nenhuma delas se destacasse como principal determinante.

A maioria dos jovens que se referiu aos aspectos de ordem convencional citou o conhecimento das normas e regras como a razão principal da obediência e da transgressão, estando a educação familiar em segundo plano. Portanto, seria importante lembrar o papel coercitivo da educação e, como nos afirma Leme (2009), de que educar envolve certa violência. Estes jovens parecem compreender que seria necessário submeter-se às regras disciplinares da escola, assim como controlar seus impulsos para viver em sociedade. Nesse sentido, os conflitos seriam inerentes ao processo de ensino aprendizagem, seriam resolvidos; através da coação e, consequentemente, da submissão de uma das partes à vontade da outra ou de forma pacífica, na qual seriam respeitados os direitos e objetivos de todos, através da negociação, do diálogo e da conciliação. No entanto, segundo Fevorini (1998), para muitos professores o respeito do aluno pelo professor estaria quase que exclusivamente relacionado à obediência, à submissão e ao cumprimento das normas e regras estabelecidas pelo professor. Segundo esta autora, a aparente preocupação dos professores em fazer o aluno entender o sentido das normas e regras é, na verdade, uma forma de persuadi-lo a obedecer e não realmente, de fazê-lo conhecer os princípios ou valores que elas representam. Portanto, dificultam o desenvolvimento de sua autonomia do aluno.

Para metade dos jovens de nossa pesquisa, as atitudes dos alunos, principalmente as de transgressão, dizem respeito às questões de ordem relacional, que teriam a finalidade de destaque, de exibição de poder e de marcar uma influência pessoal entre os colegas. Essas atitudes foram identificadas, pelos jovens, como tentativas de integração do aluno ao grupo ou de manutenção de seu status entre os colegas, o que se relaciona à importância da escola como espaço de convívio com os colegas, assim como à admiração dos jovens pelos amigos - que apareceram, em nossa pesquisa, em segundo lugar na lista das pessoas mais admiradas34

. Percepção que é também reforçada, quando lembramos que a conversa durante a aula,

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segundo os jovens, cumpriria a função de se fazer notar pelo outro, através de comentários ofensivos ou provocações aos colegas, aspectos esses já apresentados no Estudo 1, que confirmam a preocupação do aluno pelas questões de ordem relacional. Este aspecto também foi encontrado por Leme (2006), ao constatar que a grande maioria dos jovens considera que o comportamento de alunos que perturbam a ordem em sala de aula ocorre devido à atenção dada a eles pelos colegas. Isso porque os juízos alheios, principalmente dos pares, durante a adolescência, teriam um grande peso, já que a importância do olhar dos pais se deslocaria, parcialmente para o olhar dos colegas e da sociedade em geral, além de se voltar mais para si (Piaget 1932/1994). O olhar do outro influenciaria tanto nas escolhas do que valorizar em si como na percepção de se ter mais ou menos valor como pessoa. Vale lembrar que o “olho da consciência” dialogaria com e seria realimentado pelo “olho do outro” (La Taille, 1996). Os juízos alheios, portanto, seriam efetivos se vindos de pessoas significativas, com as quais o jovem se identificaria.

Ao assumir o juízo alheio como seu próprio juízo ou a recusar-se a assumi-lo, o jovem revela anseios também para consigo mesmo e relativos ao meio social no qual vive, pois apesar deste não ser determinante, tem muita relevância quando da escolha dos valores que farão parte das representações de si mesmo e da constituição da personalidade moral. Se, neste ambiente, as ações morais são pouco valorizadas, o mais provável é que a expansão de si pouco se alimente delas. Por outro lado, se os conteúdos morais são valorizados, e atos que correspondessem a eles são incentivados, o mais provável é que passem a fazer parte do rol de valores do jovem e de inspiração para a expansão de si. Mas se o ambiente julga as ações morais como provas de fraqueza, isso torna muito difícil para o jovem ver-se como pessoa de valor, como quem age de forma moral. Isso ocorreria, segundo os jovens de nossa pesquisa, porque os alunos consideram atacar os padrões desejados pela escola um sinal de força, poder e fama.

Pensamos que manifestações desse tipo seriam encorajadas quando o professor se coloca distante, passivo ou alheio aos conflitos que ocorrem entre os pares cotidianamente entre os colegas, uma vez que esses conflitos teriam a função de chamar a atenção do professor, de fazer-se notar por ele. Sobre isso, Sennett (1980/2001), comenta que uma figura de poder, quando se coloca distante ou indiferente às pessoas, desperta nelas o desejo de serem reconhecidas, de confirmarem sua própria importância, sendo essa uma das motivações da transgressão, que teria como intenção romper com a indiferença e com a distância. As reações que o jovem provocaria na figura de poder dariam a ele a medida de sua importância, pois ser notado seria ter despertado “interesse” e proporcionar, com isso, a proximidade.

Há, também, argumentos dos jovens para as atitudes, tanto de obediência como de transgressão, que foram agrupados em torno de motivações relativas à moralidade. Para esse grupo, os alunos deveriam tomar suas decisões a partir de princípios e valores morais oriundos da consciência. Esses jovens perceberiam as ações morais dos alunos como decorrentes da sensibilidade ou do equacionamento moral, o que pode ser notado, por exemplo, nestas respostas:

As pessoas que respeitam é porque tem consciência do que tá fazendo e outras não. (Y.M., f,12)

A escola não ensina as pessoas a pensar, então as pessoas não pensam. Ninguém questiona e pergunta. Não tão acostumadas a pensar e faz essas coisas. (M.N., f, 12)

É porque a pessoa não tem consciência do que tá fazendo, se ela sabe que tá errado, não tem motivo pra ela fazer algo que tá errado. (C.B., f, 12)

Uma pessoa pode fazer alguma coisa que faz mal, mas não percebe e acha que fez o bem. (I.P., 12)

Porque isso é uma coisa de consciência, eu não faria sei lá. Tipo fazer bullying, eu acho isso muito errado e não tem uma regra assim, não faça. Mas eu acho muito errado. Tipo uma zoação, não só bater, mas falar “Aê baleia...”. Acho que ninguém respeita ninguém aqui. As pessoas zoam bastante. (A.R., f, 14)

Notamos aqui que esses jovens julgaram as atitudes dos colegas, tomando como parâmetros o respeito e a justiça. Já os que atribuíram a moralidade à personalidade teriam a crença de que as ações morais do indivíduo seriam determinadas pela sua constituição, ou seja, à personalidade do aluno. Vejamos como expressaram essas questões:

Porque acha certinho não é ser legal. (A.R., f, 14)

Porque a pessoa acha que desobedecer algumas coisas é o máximo. (B.F., f, 11) Porque (para ela) é mais legal fazer a coisa errada que a coisa certa. (B.N., f, 13) Outras, porque elas querem fazer coisas que não podem, mas acham legal. (P.L.,f, 11) Porque não tem vergonha, não tem vergonha de fazer, são bagunceiros mesmo. (J.C., 12) Porque uns é desobediente e outros sabem fazer o que tem que fazer. (I.P., 12)

São pessoas mais rebeldes que não concordam com a pessoa que tá falando e não segue o que faz todo mundo. (L.V., 12)

Nesse caso, as motivações foram relacionadas, principalmente, à transgressão. Como foi visto, quando abordamos a questão do respeito à autoridade, muitos jovens e professores atribuem aos problemas de disciplina à má constituição do aluno, o que se confirma nesses depoimentos. Parece-nos que a percepção, tanto do jovem como do professor, sendo mais determinista, teria como consequência uma postura mais passiva e submissa frente a situações de desrespeito cometidas para com eles por estes alunos, dificultando aproximações e o estabelecimento de relações de reciprocidade e respeito mútuo. Estes alunos poderiam se somar àqueles cujas ações teriam a finalidade de destaque, como citamos anteriormente.

Diferente dos jovens que indicaram a moralidade como determinante dos comportamentos de obediência e transgressão, há os que sugeriram que as transgressões

ocorreriam por questões de ordem pessoal, apresentando as motivações de afirmação da vontade - “fazer o que se tem vontade” - e de obtenção de prazer, que expressam tanto uma postura essencialmente egocêntrica quanto uma posição de anomia, em que as regras de civilidade não seriam levadas em conta. Sobre anomia nos diz La Taille (2009, p. 259), “Da anomia, não nasce heteronomia e muito menos autonomia: nasce e se perpetua um individualismo autocentrado que mina toda e qualquer possibilidade de espírito coletivo de justiça e solidariedade.”. Sendo assim, o outro não seria incluído nas opções de ação do aluno, afirmando a soberania do eu.

Estas motivações, assim como as outras, relacionam-se aos afetos que, como vimos, são parte importante na constituição da personalidade moral.

A motivação como fonte energética das ações, representada pela afetividade, é fundamental para a moralidade (La Taille, 2006). Nesse sentido, seria necessário examiná-la para compreendermos os comportamentos, sejam eles morais ou não, levando em conta duas dimensões: a do “saber” e a do “querer”. Ou seja, que o jovem pode saber o que deve ser feito e optar se quer agir ou não de determinada forma. Sendo assim, poderíamos pensar na obediência dos alunos tanto do ponto de vista intelectual como afetivo, assim como na transgressão. Nesse sentido, procuramos compreender quais seriam as fontes energéticas das ações dos jovens, perguntando a eles que sentimentos atribuiriam às transgressões e às atitudes obedientes dos alunos.

Entre os jovens 32,45% (Tabela 17, p.137) indicou que os sentimentos que frequentemente acompanhariam as ações de transgressão seriam os de satisfação, por agir conforme o próprio desejo ou por ser notado pelos outros corroborando com a percepção de que as transgressões ocorreriam por motivos de ordem pessoal. Isso se expressa nas respostas de L.G. (13): “Acho que ela se sente meio, com talvez, peso na consciência, mas se sente mais solta. Sei lá, acho que fica livre. Então, né? Uma coisa que sabe que tá errado, mas tá fazendo a coisa porque prefere ser livre.”, ou de R.B. (14): “Pra passar como maioral, se sente o bonzão.”, que claramente indicam atitudes autocentradas e inconsequentes do ponto

de vista moral, reforçando os dados encontrados anteriormente.

No entanto, como vimos, outros sentimentos foram atribuídos aos comportamentos de transgressão e obediência, como a culpa e a vergonha, que têm estreita relação com sentimentos morais. Alguns jovens indicaram a culpa como sentimento relacionado aos atos de transgressão, como se pode notar na fala de V.M. (11): “Acho que se sente mal, porque ela

feito algo censurável. Da mesma maneira, uma parcela menor de jovens indicou a vergonha como um sentimento mais dirigido ou relacionado às expectativas que se tem de si mesmo:

Acho que ela se sente mal depois de um tempo. Ela faz uma coisa que é meio ruim, aí cai meio que uma culpa nela, de ter feito a coisa e também a coisa que ela fez. (A.F., 12)

Mas a pessoa se faz uma coisa errada, pode se sentir depois constrangida com ela. (G.S., 13) Eu já fiz bastante coisa errada, então eu me sinto magoada depois do que eu faço. Magoada com o que eu fiz, comigo mesma, ai fico descontando em mim. Ai, eu fico bastante triste. Mas não sei as outras pessoas. (G.M., f, 13)

A atribuição de sentimentos de culpa e vergonha pode parecer muito semelhante nestas falas, isso porque ambos indicaram que o aluno sentiria algo que o remeteria a pensar na sua atitude, seja por julgá-la errada, seja por julgar que fez algo errado. Nesse sentido, ambas se remeteram a uma atitude reflexiva posterior à ação que, cada uma à sua maneira, sugeriu uma mudança de comportamento no futuro. No caso da culpa, poderíamos dizer que a mesma não estaria mais presente a partir do momento que alguém ou um acontecimento livrasse o jovem deste sentimento. Já a vergonha, por ser exclusivamente um sentimento autoatribuído, dependeria exclusivamente do próprio aluno para ser superado. Considerando que existe uma vergonha moral, experimentada apenas quando o não cumprimento do dever estivesse de fato ou virtualmente colocado e quando os valores morais participassem mais centralmente e fortemente da personalidade (La Taille, 2006), devemos dar uma atenção especial a essa ocorrência no relato dos jovens. Cometer uma transgressão moral, nesse contexto, corresponderia ao medo de decair perante seus próprios olhos e também perante os olhos das pessoas respeitadas, incidindo como perda de valor pessoal (La Taille, 2006). Isso porque o sentimento de culpa incidiria, prioritariamente, sobre a ação e a vergonha ao que se é, ou seja, ao “eu”. A vergonha seria mais efetiva em impedir o sujeito de fazer uma determinada ação que o faria sentir-se envergonhado do que a culpa. Mesmo assim, levando- se em consideração as diferenças entre os sentimentos de culpa e vergonha, seria interessante considerar a soma dessas respostas, pois elas nos indicam atitudes em direção à moralidade.

Diferentemente do que encontramos nas respostas de alguns dos jovens que sugeriram que os alunos não encontrariam qualquer razão para cometer transgressões, isto é, que não sentiriam nada ao cometê-las, segundo a fala destes jovens, as atitudes desses alunos seriam inconsequentes e gratuitas. Esses comportamentos provavelmente relacionam-se ao tédio (como relatado no Estudo 1, p.91) como uma retirada de energia e de interesse pela situação escolar. Se somarmos este resultado, aos que atribuíram sentimentos de prazer e satisfação com as atitudes de transgressão, poderíamos pensar que os jovens identificaram aqueles, que foram descritos por La Taille (1996) como os “sem vergonha” - expressão que esse autor

utiliza para qualificar uma pessoa imoral que não reconheceria o controle externo, ignorando ou desprezando o juízo dos outros, ou que não consideraria condenável cometer atos contra a moral. Em outras palavras, esses alunos poderiam corresponder tanto àqueles que vivem o tédio como aos que não têm desenvolvido a sensibilidade moral, ou mesmo, àqueles cujo sistema de valores é diferente dos praticados em seu ambiente escolar. Confirmamos a presença desses alunos, também, entre aqueles que deram pouca ou nenhuma importância à escola, e entre aqueles que idealizaram a vida futura como uma vida de usufruto do prazer, do pouco comprometimento com os outros e consigo mesmos (Capítulo 3, p.30).

O meio social, em que vivem os jovens, as características das autoridades com quem convivem, as oportunidades de resolução dos conflitos, as oportunidades de relações de cooperação e respeito mútuo, com certeza têm grande influência sobre o conjunto de valores com os quais os jovens contam para julgar a si mesmos e aos outros. Portanto, para finalizar esta análise, cabe-nos apresentar como as variáveis de idade, sexo e tipo de escola influenciaram no posicionamento dos jovens diante das questões apresentadas.