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CAPÍTULO IV: O MOVIMENTO E A PARTITURA CÊNICA

4.6. Foco

Dos princípios que se entrelaçam com a significação e execução do olhar, o foco, que se relaciona intimamente às questões antes expostas, é noção fundamental no desempenho da animação. O foco é o objetivo principal das atenções dentro das cenas ou das ações no espetáculo. Quando a personagem

75 La conciencia de la dirección del movimiento es importante porque confiere seguridad y energía al

concentra seu olhar sobre o outro que fala, aponta-o como o centro da atenção naquele instante, orienta os sentidos do público. Em Beltrame, consonante com essa noção cêntrica, o foco “é a definição do centro das atenções de cada ação, [...] é um dos principais meios de comunicação entre as personagens, e isso se dá entre elas mesmas ou com a platéia.” (2008, p. 28-29).

O princípio do foco é um dos eixos centrais nas reflexões do artista Sérgio Mercúrio acerca da animação de um boneco. Ele trabalha com cinco princípios que orientam seus espetáculos e as oficinas por ele ministradas, dentre os quais está o foco. Para ele o foco é uma ferramenta sem a qual não é possível fazer teatro de animação. Seu trabalho é embasado na relação que o boneco estabelece com o público.

Imagem 24 – Espetáculo de Sérgio Mercúrio, El Titiritero de Banfield. Fonte: http://www.eltitiritero.com.ar/

Além disso, como podemos ver na imagem acima, Sérgio Mercúrio assume seu papel de ator-animador, de maneira que se não tivesse total domínio do seu foco e do foco do boneco, o público não apenas poderia ficar confuso quanto àquele que fala, mas também a personagem perderia no seu caráter de vida independente. A voz também caracteriza e diferencia as personagens do boneco e do ator-animador, mas o foco é essencial na promoção desse discernimento. “A importância do foco, na comunicação é tão grande que inclusive pode chegar a gritar. [...] Quem não olha a

quem lhe fala, tem implícita a não comunicação.”76 (2006, no prelo, tradução nossa)

O artista enfatiza que, sem foco, a personagem se desfaz e volta a ser somente um objeto inanimado. Esse foco é dado, em seu conceito, pelo direcionamento do olhar.

Além do foco da personagem, o ator-animador deve ter controle sobre o seu próprio foco. Em geral as reflexões encontradas a esse respeito sugerem que o animador deve manter o olhar sempre sobre o objeto. Cara apresenta essa concepção em seu livro com destaque: “REGRA: o olhar do manipulador é sempre concentrado sobre o objeto que ele manipula.” (2006, p. 23, tradução nossa) 77. Entretanto, Jean-Louis Heckel, num exercício com cabeças de bonecos78, orienta os atores-animadores a direcionarem seu foco ao boneco e ao ponto onde se encontra o foco do boneco, fazendo circular a “energia” contida na carga do olhar.

Como o olhar tem um forte poder de significação, de orientação da atenção, o ator-animador ao olhar para a personagem contribui para concentrar a atenção do público sobre as ações do objeto. O olhar pode estar a serviço de outras situações como a sua utilização nas transições de personagens antes citadas, ocorridas na Cia. Pequod, no espetáculo Peer Gynt. O foco do ator-animador pode ser visto como uma como ferramenta, utilizando-o segundo os objetivos do trabalho que desenvolve.

Convém ressaltar que não é somente o olhar que direciona o foco, ainda que possa ser o principal meio. O objeto em cena pode recorrer a outros recursos para implementação do foco. Podemos pensar na disposição espacial que os outros personagens configuram no palco que pode implicar numa distribuição visual que estabelece um “peso maior” a uma personagem ou objeto. O foco pode também ser apresentado por meio de outros gestos (que não o olhar), pela posição do corpo da personagem ou por outros sistemas de signos como a iluminação, por exemplo. Outro aspecto que contribui com o foco é a redução da movimentação das personagens quando não são o foco da ação. Com isso, a personagem que fala, em tendo mais movimentos, chama a atenção do público para si. Se as outras personagens não diminuem sua movimentação, a cena pode ficar confusa, com multifocos que dão a sensação de sujeira e imprecisão na cena.

76 La importancia del foco, en la comunicación es tan grande, que incluso puede llegar a gritar. [...]

Quién no mira a quien le habla, tiene implícita la no comunicación. Este texto foi gentilmente cedido pelo artista.

77 RÈGLE: Le regard du manipulateur est toujours concentré sur l’objet qu’il manipule. 78 Oficina realizada em maio de 2008.

A personagem na condição de observador pode ficar completamente parada ou realizar os pequenos movimentos de indicação de vida. Alguns autores elegem a imobilidade como princípio para atuação nessa situação de escuta no teatro de animação. Amorós e Paricio orientam para alcançar a clareza da mensagem que chega ao público: “o que fala se move [...] [e] os bonecos que escutam estarão quietos e voltados para o que fala, atraindo desta maneira a atenção do público sobre ele.”79 (2005, p.77, tradução nossa). Cara, a favor desse princípio, aponta uma “regra de ouro” que estabelece um princípio fundamental para o jogo com o objeto. É um princípio de correspondência anunciado do seguinte modo: “Regra: “Esse se move – esse fala. Esse não se move – esse não fala.” [...] Ao inverso, um objeto que não fala não deve se mover. [...] A associação estrita da palavra ao movimento

é um código que permite o reconhecimento imediato do personagem que fala.”

(2006, p. 51, grifos da autora, tradução nossa). 80

A opção por ficar absolutamente parado exige precisão no retorno ao movimento, pois se essa personagem se mantém parada quando a ela é devolvida o foco, isto pode evidenciar sua condição de matéria. O grupo Tábola Rassa utiliza esse tempo em atraso a favor de sua dramaturgia, numa cena do espetáculo L’Avar em que o velho avarento escuta outra personagem contar uma história. Ao terminar de falar, a velha torneira continua inerte e a personagem que falava convocando sua atenção, tem como resposta uma fala e um gestual daquele que se enfadou e até dormiu ao escutar a história pouco interessante.

Na construção dessa relação de humanização que o espectador faz com o objeto-personagem, um aspecto a pensar é que dificilmente na referência humana alguém se encontra absolutamente parado. É bem verdade que o foco da cena estando sobre aquele que se move e fala, pouco se percebe outro objeto- personagem que se encontra com maior imobilidade, na escuta. Mas alguns elementos podem ser observados na composição dessa diminuição cinética.

A manutenção do nível do objeto e de seu eixo central (princípios que esclareceremos na seqüência da pesquisa) é necessária, tanto para a opção de completa imobilidade, quando na execução de movimentação reduzida. Encontram-

79 El que habla se mueve [...] los títeres que escuchan estarán quietos y vueltos hacia el que habla,

atrayendo de esta manera la atención del público sobre él.

80 Règle: “Ça bouge – ça parle. Ça ne bouge pas – ça ne parle pas.” [...] À l’inverse, un objet qui ne parle pas ne doit pas bouger. [...] L’association stricte de la parole au mouvement est un code

se personagens que começam a afundar ou amolecer na cena por esquecimento do ator-animador em manter a tonicidade.

É importante também a manutenção do foco, seja ele para a personagem que continua a ser foco da cena ou para as indicações de foco dadas pela personagem em foco, seja quando ele aponta o foco para um objeto ou partes de seu corpo ou quando ele mesmo se desloca.

A personagem em escuta, pode também realizar pequenos gestos, de maneira a não atrapalhar a canalização da atenção que se encontra na outra personagem, como um breve movimento de cabeça que confirma para o outro que fala sua condição de escuta. A respiração pode ser também uma aliada nessa tarefa de interpretação da personagem fora do foco. O objeto sem ação pode encontrar a manutenção de sua interpretação na realização da respiração.