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CAPÍTULO IV: O MOVIMENTO E A PARTITURA CÊNICA

4.5. O olhar

O olhar é um elemento central na estruturação da animação. Na formação voltada para a animação de objetos, a professora Anne Cara acentua que o marionetista“[...] deve tomar consciência da importância expressiva do olhar da

marionete e o considerar como um dos vetores mais eficazes da ilusão de vida

autônoma do objeto manipulado.” ( 2006, p. 42, grifo da autora, tradução nossa)65. Joan Baixas aponta nesse sentido:

O olhar é o órgão no qual reside o espírito da marionete. [...] Os marionetistas experientes controlam com perfeição o olhar de seus personagens e, através dele, lhes dão a aparência de seres extraordinários, surpreendentes e dotados de espírito. Olhar e respiração se fundem na composição das ações do personagem, na musicalidade de seu desempenho, na estrutura rítmica de sua expressão. (1944, p. 42- 43, tradução nossa)66.

Nos escritos de Amorós e Paricio também encontramos a atribuição de grande importância ao olhar do objeto animado: “o olhar dos bonecos reflete sua intenção, seu interesse, é sua característica física mais importante.” (2005. p. 70,

65[...] prendre conscience de l’importance expressive du regard de la marionnette, et le considérer

comme l’un des vecteurs les plus efficaces de l’illusion de vie autonome de l’objet manipulé.

66 Le regard est l’organe où reside le génie de la marionnette. […] Les marionnetistes experimentés

contrôlent à la perfection le regard de leurs personnages et, à travers lui, leur donnent l’apparence d’êtres extraordinaires, surprenants et doués de génie. Regard et respiration se fondent dans la composition des actions du personnage, dans la musicalité de sa prestation, dans la structure rythimique de son expression.

tradução nossa) 67. Para os autores, não se pode construir bonecos sem olhos, salvo

se a proposta é uma personagem “completamente anônima, impessoal, permanentemente coibido ou cego” (2005, p.70, tradução nossa)68. A personagem num objeto emite signos visuais e tal como todos os elementos plásticos nele contidos os olhos também emitem significados, possivelmente com maior força que os demais signos plásticos existentes no material animado. Entretanto, em desacordo com os autores, entendemos que o olhar da personagem não depende fundamentalmente dos olhos físicos do boneco ou outro objeto animado. Podemos observar o teatro de animação realizado com objetos retirados do cotidiano nos quais não são acrescentados olhos, mas estes são “vistos” pelo público através dos movimentos que são impresso no objeto.

Imagem 20 - Espetáculo O Princípio do Espanto do Grupo Morpheus 12 Fonte: http://www.fototech.com.br/galeria.php/120/1168

No espetáculo apresentado na imagem acima, o ator-animador trabalha com um boneco sem olhos, existindo apenas o relevo no rosto. Sua animação em nada perde por essa opção da poética do espetáculo. É o todo do movimento do objeto que lhe confere a capacidade de olhar. Nesse sentido, a cabeça e o nariz do boneco servem de referência, não somente para o público, mas também para o ator- animador, para localização dos olhos “imaginários” e a identificação do direcionamento do olhar do boneco. No caso de outras formas animáveis, mais abstratas ou objetos cotidianos, por exemplo, o animador pode pesquisar diferentes referências na morfologia dessas formas. Encontradas essas referências, o treino na busca de possibilidades e precisão no direcionamento desse olhar são momentos

67 La mirada de los títeres refleja su intención, su interés, es su característica física más importante. 68 [...] completamente anónimo, impersonal, permanentemente cohibido o ciego [...]

subseqüentes. Esse olhar, proveniente dos movimentos de todo o corpo material do objeto, encontra na cabeça, no rosto e no nariz, seus principais componentes. Nas palavras de Cara, “é o posicionamento preciso e a manipulação da cabeça que condicionam o “olhar” da marionete.” (2006, p. 42, tradução nossa)69.

A relação espacial entre o ator-animador e a personagem varia conforme o gênero de animação. Em geral, a maioria dos gêneros se situam em três posições: o ator-animador encontra-se abaixo do boneco, como nos bonecos de luva e de vara. Ou os bonecos são animados por trás, como acontece na animação sobre mesa ou balcão. E em outras situações os bonecos são animados de cima, como acontece na animação com fio e com tringle. Existem outras formas de animação como, por exemplo, o boneco que se encontra ao lado do ator-animador, no caso do ventríloquo (que anima com a mão por trás, mas todo o corpo está na lateral); também podemos lembrar o homem-palco e outros bonecos-máscaras em que o animador veste a personagem e se encontra dentro dela. Essa relação espacial exigirá do ator-animador encontrar movimentos que possibilitem à personagem o direcionamento do olhar. Amorós & Parício (2005) apresentam em seu estudo uma ilustração das três situações mais comuns para animação de um objeto:

Imagem 21 - Três situações para animação de um objeto e sua relação com olhar direcionado para o público.

Fonte: AMORÓS & PARÍCIO, 2005, p. 73

69 C’est le positionnement précis et la manipulation de la tête qui conditionnent le “regard” de la

A ilustração evidencia que a localização do ator-animador com a personagem deve atentar para a relação do olhar com o público. Quando o objetivo é estabelecer uma comunicação direta com o público pelo olhar e o olhar da personagem não encontra o do público, a comunicação não se estabelece. Assim, na construção de um boneco é importante o cuidado com a localização dos olhos e nariz, pois se o boneco fala e olha para cima todo o tempo, perde sua força dramática. É necessário construir o boneco de maneira a facilitar ou mesmo possibilitar que o boneco olhe para o público, não sendo o mais apropriado efetuar o direcionamento do olhar exclusivamente pelo ajuste de posição do boneco, sob pena de causar um desgaste na musculatura do ator-animador. O melhor é que se delineie (com desenhos, volumes, convencionando, etc) os olhos de maneira que olhe na direção do espectador em sua posição “normal” e naquela que seja, portanto, menos desgastante para o ator-animador. O Grupo Giramundo Teatro de Bonecos também aborda essa questão em seus processos de formação de atores-animadores. O grupo estabelece as três posições de animação, tais quais as apresentadas na ilustração acima e orienta o cuidado da localização do olho no momento da construção, como podemos ver na ilustração abaixo:

Imagem 22 – O direcionamento do olhar e a construção. Fonte: Giramundo Teatro de Bonecos, 2005, p.42, mimeo

Extraída de textos de estudo destinados à formação produzidos pelo grupo, a imagem demonstra a preocupação com esse aspecto. Nesse exemplo, com o boneco de luva, o grupo chama atenção para o risco de lesionar o pulso pelo esforço necessário à correção, na animação, de um erro de construção. A construção, portanto, tem relevância nos movimentos do olhar, mesmo entendendo que o olhar não está na fisicalidade do boneco, mas em seus movimentos.

Distintas maneiras de olhar estabelecem diferentes significados. Meschke (1988) apresenta duas noções dessa relação olhar-movimento. A primeira delas é que os olhos dirigem o movimento do corpo e a outra é que o olhar não está caracterizado apenas com os movimentos de cabeça, mas por movimentos e posturas do corpo do objeto. Em seu trabalho, classifica e apresenta o que chamou de tipos fundamentais de olhares. Primeiramente os olhares estão divididos em estáticos e móveis. O olhar estático refere-se à máscara dada à personagem, é o olhar que ela possui parado, somente com as feições materiais dadas ao/pelo objeto. Trata-se das configurações da pintura, do relevo - ou ausência destes na constituição física do objeto. Nas palavras do autor, “este é o olhar que o criador deu à figura, todavia imóvel, a expressão que desde o princípio determina se a figura tem irradiação ou possibilidade de trocar e enriquecer a expressão de seu rosto ao colocar-se em movimento.” (MESCHKE, 1988, p. 61, tradução nossa)70. Amorós e Paricio (2005) nos oferecem exemplos do olhar estático quando citam que olhos inclinados para dentro sugerem enfado e se essa inclinação é leve dá impressão de astúcia. Se a inclinação é para fora, dá a noção de tristeza. Olhos juntos são mais infantis e pupilas pequenas resultam em olhos mais inquietos. Abaixo, uma imagem para ilustração da presença de olhos inclinados em um boneco.

Imagem 23 - Olhos inclinados para dentro. Boneco de Serguei Obrazstsov. Fonte: AMORÓS & PARICIO, 2005, p. 75

O olhar deixa de ser estático quando à máscara facial é combinado o movimento impresso pelo ator-animador ou mesmo pela iluminação. Na definição de

70Esta es la mirada que el creador ha dado a la figura todavía inmóvel, la expresión que desde el

principio determina si la figura tienne irradiación y posibilidad de cambiar y enriquecer la expresión de su rosto al ponerse en movimiento.

olhar móvel, Meschke aponta para os rostos articulados, mais presentes no Oriente que no Ocidente, mas também para todo aquele olhar gerado no rosto não articulado que se sustenta pelo movimento do conjunto das outras partes do objeto. Esse conjunto cinético responsável pela criação do olhar é que provoca em algumas pessoas do público a impressão de ter visto o movimento de uma boca ou olho que na realidade são formas estáticas no rosto do boneco.

Dando seqüência ao entendimento das definições de Meschke sobre os tipos fundamentais de olhar, encontramos:

1. Olhar de descobrimento: pode constar de uma partitura na qual o foco do olhar sai de uma direção à outra onde se encontra a descoberta, ou a descoberta pode estar na mesma direção desse foco, sendo apresentada pelos gestos e ações da personagem. A maneira como se aproxima, rápido, lento, cambaleante, saltitante, etc., compõe também a noção do olhar que essa personagem lança à descoberta. A aproximação lenta pode indicar o conhecimento penetrante ou vacilante, curiosidade ou um medo que faz hesitar a personagem. Uma aproximação rápida pode evidenciar um olhar desejoso pelo que foi encontrado ou mesmo que estava sendo procurado e foi (re)encontrado.

2. O olhar de reação: olhar por meio do qual a personagem pode expressar a relação estabelecida com algo ou alguém e explicitar sua reação. “Uma reação é um processo que tem lugar no cérebro e no coração. Se materializa fazendo com que olhar se mova com uma velocidade e em uma direção a eleger.” (MESCHKE, 1988, p. 61, tradução nossa)71.

3. O olhar de seguimento: é o olhar que segue algo ou alguém que se move. Esse olhar pode servir para direcionar o foco de atenção do público a esse outro algo ou alguém; pode significar uma relação afetiva com esse outro que se move, como o estarrecimento diante da ação da outra personagem ou o embevecimento na contemplação da personagem que se desloca; pode também ser usado para significar o deslocamento de algo que não existe materialmente, como um navio que parte e leva a pessoa amada.

4. O olhar interior: é o olhar que não foca o mundo exterior da personagem, senão que olha seu próprio universo interior. Esse olhar pode ser estabelecido pela escolha

71 Una reacción es un proceso que tiene lugar en el cerebro y en el corazón. Se materializa haciendo

de um ponto fixo ou deslocar o olhar para diferentes direções com movimentos predominantemente mais lentos, mais comuns no ato de pensar:

O olhar que expressa o vôo do pensamento deve alternar a direção, deslizar ou resvalar sem rumo, com velocidades e longitudes diferentes. “Os pensamentos vagam”. Um olha interior analítico, mais voluntário, se dirige com intensidade para a terra, para a profundidade e as raízes. A atitude e o movimento do corpo complementam o olhar. Uma assimetria entre a cabeça e o corpo pode sublinhar o introvertido. (MESCHKE, 1988, p. 62, tradução nossa)72.