• Nenhum resultado encontrado

Capitulo I ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

FORMAS DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

1.6. Movimentos GLBT e as Lógicas de Mercado

O surgimento dos movimentos sociais organizados em torno das discussões referentes à livre orientação sexual possui uma intrincada e paradoxal relação com o sistema capitalista de produção, bem como, com o processo de globalização neoliberal que estamos vivendo (León, 2003). Essa relação pode ser ilustrada através do consumo do que se convencionou chamar de “indústria cor-de-rosa” ou “pink money”, no qual os homossexuais se tornam um grupo de consumo importante, movimentando cada vez mais produtos específicos e volume de capital. Essa movimentação, enfatizada pela indústria cor-de-rosa e pelo fortalecimento sócio-econômico de muitos homossexuais, permitiu acesso a zonas de democracia sexual através do mercado e espaço midiático importante para o lançamento demandas sociais em diversas agendas, produzindo ampla visibilidade (Santos, 2003b).

O movimento GLBT conseguiu uma vasta gama de negociações políticas valendo-se da visibilidade proporcionada pelo mercado, contudo, segundo Santos (2003), muitas vezes essa indústria corrompe ideais e subverte os objetivos emancipatórios das ONG’s que militam nesse movimento. A indústria cor-de-rosa e o conseqüente fortalecimento de um gueto podem promover o isolamento de indivíduos em sub-culturas alijando-os do restante da sociedade sem abrir mão de sua inclusão no sistema capitalista. Esse processo pode levar a uma neutralização do poder emancipatório do movimento GLBT, reduzindo sua força política e circunscrevendo sua visibilidade enquanto um produto do próprio sistema de produção.

Consequentemente, esse processo revela uma ambigüidade: se por um lado, o sistema capitalista e o processo de globalização oferecem as condições necessárias para a erupção e ação do Movimento GLBT, por outro, pode ser visto como parceiro de ideologias patriarcais e homofóbicas(Santos, 2003). O sistema capitalista, ainda mais gravemente em sua vertente neoliberal, relega a um segundo plano o compromisso do Estado com as necessidades sociais e a promoção humana e abriga meios de comunicação midiática que dão visibilidade ao movimento, mas produzem imagens estereotipadas de um universo bastante diversificado, pois o fluxo de valores culturais fica à mercê dos interesses do mercado.

Esta ambigüidade se manifesta nos debates que se dão em torno do “gueto”, e que dizem respeito aos espaços comerciais freqüentados por homossexuais. MacRae (1990; 2005) aponta a importância do gueto, pois,

“(...) é lá (no gueto) que normalmente as pressões sofridas no cotidiano são afastadas, novos valores são desenvolvidos e o homossexual tem mais condições de “se assumir” e testar uma nova identidade social. Uma vez construída a nova identidade, ele adquire coragem para assumi-la em âmbitos menos restritivos e, em muitos casos, pode vir a ser conhecido como homossexual em todos os meios que freqüenta. Por isso é da maior importância o gueto, que mais cedo ou mais tarde também acaba afetando outras áreas da sociedade, criando novos espaços de democracia sexual”. (MacRae, 1990:51)

A relação entre a homossexualidade e as zonas de democratização proporcionadas pelo mercado tem sido amplamente discutida12, pouco criticada, e permanece tão instigante e problemática que serve de inspiração para um sem número de trabalhos, tais como o texto “Do gueto ao mercado” (França & Simões, 2005). Nesse texto, a questão do gueto é discutida através de uma extensa descrição dos territórios de socialização da comunidade gay paulistana. França & Simões (2005) argumentam que a proliferação dos espaços comerciais voltados para a comunidade gay e a diversificação destas opções cresceu tanto que é possível falarmos de um mercado homossexual13.

Tanto os textos de MacRae (1990; 2005) quanto o de França & Simões (2005), apontam características positivas à existência do gueto, defendendo sua existência para uma ampliação das possibilidades democráticas de expressão da sexualidade, afinal, a emergência de formas de vida homossexual mais emancipadas estão intrinsecamente relacionadas à expansão do capitalismo em nossas sociedades (Green, 2003). Todavia, o legado marxista fez com que, durante muito tempo, os intelectuais mantivessem uma visão muito preconceituosa com relação ao mercado, associando-o ao sistema capitalista de produção (Green, 2003) 14.

Esta defesa do gueto, por parte dos dois artigos, não é uma leitura acrítica destes territórios de mercado. Mesmo no texto de França e Simões (2005), no qual o contexto de exploração permanece pouco evidenciado, é reconhecido,

(...) que os territórios reais e virtuais aqui tratados – por mais ampliados, diversificados e pluralistas – ainda sejam reconhecidos como “guetos” é um indicador da tensão recorrente entre os esforços de “pluralizar o universal”, combatendo a segregação e a incomunicabilidade das diferenças, e a necessidade de manter espaços protegidos diante

12

A importância do mercado – de bares e boates principalmente – fica muito clara em vários depoimentos de nossos entrevistados. Diversos grupos se utilizaram destes espaços para iniciar suas atividades. Em Belo Horizonte, o fortalecimento deste mercado foi mais lento do que em outras capitais. Itamar Santos relata sobre os perigos de ser homossexual na cidade em 2000 (ver: histórico do grupo Guri).

13

Santos (2003) traz o exemplo de Chueca, em Madri, que consiste em um bairro todo voltado para a comunidade homossexual. Exemplos parecidos podem ser encontrados em diversos lugares do mundo capitalizado.

14

Green (2003) relata que a relação entre a esquerda e a homossexualidade nunca foi tranqüila. Muitas vezes a homossexualidade era associada a anseios burgueses, ou simplesmente esquecida dentro dos partidos, chegando a ser severamente discriminada em alguns contextos, tais como em Cuba e na antiga

da intolerância que persiste sob múltiplas formas e procedências (França & Simões, 2005:333).

Embora concordemos em grande parte com os argumentos destes autores, ainda resta dizer que a questão do gueto merece atenção em outros pontos. É necessário que consideremos a questão dos direitos sexuais (Petchesky, 1999) dentro de um arranjo teórico que seja capaz de intercambiar as demais demandas sociais por ampliações da democracia que emergem nas sociedades democráticas, reconfigurando permanentemente o espaço da cidadania (Mouffe, 1988, 1996).

O gueto produziria, no âmbito tratado por esses autores, formas encapsuladas de socialização que geram regiões de democracia sexual. Todavia, o gueto por si só não significa mudança social no sentido de propiciar aos homossexuais maior reconhecimento da diferença por parte da sociedade ou algum recrudescimento de seus ideais patriarcais e heterossexistas (Santos, 2003; MacRae, 1990). Talvez possamos nos arriscar a dizer que a inclusão de homossexuais via mercado pode ser uma forma perversa de manter no sistema social de produção os homossexuais capitalizados, de classes mais altas, ao mesmo tempo em que dispersa e desvia os possíveis antagonismos que aí se produziriam15.

Esta discussão se relaciona diretamente com nosso estudo, uma vez que, como dissemos, alguns grupos que pesquisamos apresentam posições políticas extremamente críticas ao sistema capitalista, tais como a ALEM e o CELLOS, enquanto outros, apresentam uma postura excessivamente positiva para com as lógicas do mercado, tais como o Clube Rainbow de Serviços e o Libertos Comunicação. Neste sentido, o fato dos grupos ALEM e CELLOS terem se mantido na liderança na organização da Parada GLBT nos ajuda a levantar perguntas cruciais para o desenvolvimento de nossas análises.

As Paradas GLBT mais importantes do país, como as de São Paulo e Rio de Janeiro, têm como característica uma presença marcante do capital privado, sob forma de patrocínio de grandes empresas. Esta entrada de capital permite amplo espaço de liberdade na organização do evento, mas por outro lado, quais seriam suas implicações? Qual o significado social desta entrada de capital? É importante detectar as implicações

15

Talvez isso tenha a ver com a fala de Mott (2002): “O grande problema do movimento homossexual no Brasil é a falta de repercussão junto ao meio intelectual, a classe acadêmica. Infelizmente as principais lideranças dos 120 grupos homossexuais que existem de norte a sul do país são pessoas de classe baixa, de nível muitas vezes pré-universitário, o que faz com que alguma pessoa de nível mais elevado educacional se envolvendo com o movimento tenha uma certa projeção pela sua própria bagagem intelectual.” Marsiaj (2003) traz reflexões semelhantes.

políticas e sociais da entrada do capital privado junto à ação de um determinado movimento social.

Em Belo Horizonte, ao contrário, a Parada GLBT conta apenas com verba de entidades governamentais destinada à prevenção das doenças sexualmente transmissíveis (DST’s) e produção de eventos culturais. Isto também nos remete a alguns problemas, pois, para a obtenção desta verba, os grupos têm de se adequar às exigências do Estado. Levantamos então, algumas perguntas que são caras à compreensão destes grupos e de suas conseqüências políticas.

• Quais seriam então, as conseqüências destas exigências, na formação das identidades coletivas?

• Que tipos de antagonismos esse movimento expressa e quais se sobrepõem a outros antagonismos democráticos?

• Quais suas implicações para nossa concepção de democracia?

• Qual seu papel para a transformação da realidade social, na construção de uma vida mais justa?

Questões como estas, norteadoras deste trabalho, precisarão de mais aprofundamento e muitos estudos sistemáticos para que obtenhamos respostas adequadas, todavia, partimos de alguns pressupostos que nos permitem afirmar que a política GLBT deve ser entendida como a busca de metas e objetivos GLBT, no contexto de uma articulação mais vasta de exigências, transformando todos os discursos práticas e relações sociais em que a categoria homossexual é construída de forma a implicar subordinação (Mouffe, 1988; 1996).