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A mudança na jurisdição e no papel desempenhado pelo juiz acompanha a mesma lógica das transformações no contexto geral de passagem do absolutismo monárquico para o liberalismo. O direito passa a se submeter à lei e ao princípio da legalidade, que passam a ser os únicos fundamentos de legitimação para atuação do intérprete e do aplicador do direito.

Ferrajoli explica que a mudança se atém muito mais à forma do que ao conteúdo da experiência jurídica, pois o que muda é o título de legitimação. Antes era a autoridade dos doutores e agora passa a ser a autoridade da fonte de produção normativa. Acrescenta ainda:

Precisamente, o feito de que a lei seja preestabelecida convencionalmente por uma autoridade, segunda uma fórmula hobbesiana, serve, em efeito, para transformar o juízo em verificador do que foi preestabelecido pela lei. E serve, pois, para dar fundamento a todo o complexo de garantias: desde a certeza do direito à igualdade perante a lei e a liberdade frente a arbitrariedade, da independência do juiz à carga de prova para acusação e aos direitos de defesa.78.

No que se refere ao campo da hermenêutica jurídica surge a Escola da Exegese, cujas bases traduziam o ideal positivista. Essa Escola defendia a “perfeita identidade entre texto

77 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Ação Civil Pública, o direito social e os princípios. In: Ação civil pública

após 20 anos: efetividade e desafios. Édis Milaré (Coord.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 297.

78 FERRAJOLI, Luigi. Passado y futuro del Estado de derecho. In: Neoconstitucionalismo(s). Edição de Miguel Carbonell. Madrid: Editorial Trotta, 2005, p. 16. (Tradução livre nossa: Precisamente, el hecho de que la ley sea preestablecida convencionalmente por una autoridad, según la fórmula hobbesiana, sirve, en efecto, para transformar el juicio en verificación de lo que ha sido preestablecido por la ley. Y sirve, pues, para dar fundamento a todo el complejo de garantías: desde la certeza del Derecho a la igualdad ante la ley y la libertad frente a la arbitrariedad, de la independencia del juez a la carga de la prueba para la acusación y a los derechos de la defensa).

legal e a norma”. Assim, caberia ao intérprete uma atividade dogmática de buscar a vontade da lei no caso de alguma obscuridade, pois caso a lei fosse clara bastaria ater-se ao método gramatical ou literal e fixar-se no exato sentido das palavras. O magistrado era a boca da lei (la bouche de la loi)79.

No desenvolvimento de seu papel, o magistrado deveria apresentar neutralidade e não deveria se preocupar com valores esculpidos na sociedade. Sua atividade impunha que ficasse alheio às mudanças político-estruturais e às particularidades de cada caso submetido ao seu julgamento.

Na verdade tratava-se de uma confusão entre imparcialidade e neutralidade do juiz. Sob a pecha de neutralidade o que se conseguia era a manutenção do status quo, que naquele contexto significava a permanência e salvaguarda dos interesses da classe burguesa recém- chegada ao poder.

Marinoni80 chama de “não-elogiável a intenção de afastar do Poder Judiciário algo que

é fundamental para a aplicação da justiça ao caso concreto”, pois não é possível ao juiz ou ao processo a neutralidade.

A ideologia liberal e individualista torna o jurista um “simples técnico”, na medida em que transforma sua atividade em “meramente cognitiva (e não prático-valorativa)”, através dos métodos lógico-formais, o que acaba tirando qualquer responsabilidade política de sua atuação81.

Portanto, no que se refere à atuação jurisdicional o dogma da igualdade de todos perante a lei apresenta graves deficiências quanto à efetivação de direitos. Além disso, o

79 PIMENTA, José Roberto Freire; PORTO, Lorena Vasconcelos. Instrumentalismo substancial e tutela jurisdicional civil e trabalhista: uma abordagem histórico-jurídica. Revista do Tribunal Regional da 3ª Região, Belo Horizonte, v. 43, n. 73, jan/jun. 2006, p. 94.

80 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 66.

81 NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: COUTINHO, Adalcy Rachid. et al. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Ingo Wolfgang Sarlet (Org.). 2.ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006, p. 23.

respeito à dignidade humana ficava de lado, porque os cânones do liberalismo acabavam por impedir o magistrado de oferecer tratamento diverso às diferentes situações concretas e para indivíduos de diferentes posições sociais.

De fato, Eugênio Facchini Neto explica brilhantemente o que chama de “verdadeira armadilha ideológica”:

O Juiz pode afastar sua responsabilidade diante da decisão por ele dada ao caso concreto, pois tal solução não seria fruto de sua vontade, já que ele simplesmente estaria aplicando a solução preestabelecida pelo ordenamento jurídico. O ordenamento jurídico, assim, funciona de forma supostamente neutra e asséptica, não buscando atingir ninguém em particular82.

Ademais, Freire Pimenta e Lorena Porto advertem que o irrestrito elogio aos princípios da legalidade e da igualdade (formal), ainda que tenha permitido romper com resquícios de privilégios medievais, ignora as diferenças reais existentes entre os cidadãos e gera discriminações, uma vez que iguala os desiguais. Ainda, acrescentam:

Se discriminações e injustiças existiam na Idade Média, por força da lei, elas também se fizeram presentes no Estado liberal de direito, pelas deliberadas abstenções da lei e limitação de sua força cogente, com a finalidade declarada de manter o Estado de então neutro e impassível diante das intoleráveis desigualdades reais83.

Tais constatações com relação à igualdade formal põem em xeque o ordenamento jurídico liberal, com seus contornos jurídicos marcantemente positivistas, que concebe o

82 NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: COUTINHO, Adalcy Rachid. et al. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Ingo Wolfgang Sarlet (Org.). 2.ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006, p. 23.

83 PIMENTA, José Roberto Freire; PORTO, Lorena Vasconcelos. Instrumentalismo substancial e tutela jurisdicional civil e trabalhista: uma abordagem histórico-jurídica. Revista do Tribunal Regional da 3ª Região, Belo Horizonte, v. 43, n. 73, jan/jun. 2006, p. 98.

Estado como instituição dotada de neutralidade no que diz respeito aos valores e mudanças e desinteressado na efetivação dos direitos por ele próprio editados84.

84 SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2.ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 205.

3 ESTADO SOCIAL DE DIREITO