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No contexto do liberalismo há uma supervalorização do individual e a colocação do Estado em posição passiva e inerte. Ao Estado cabe somente respeitar a esfera privada.

44 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6.ed. Tradução de João Batista Machado. Coimbra: Editora Armênio Amado, 1984, 104.

45 COLEMAN, Jules. Authority and Reason. In: The autonomy of law: essays on legal positivism. Oxford University Press: Edited by Robert P. George, 1999, p. 287. (Tradução livre nossa:Legal positivism can be characterized by its commitment to two basics tenets: the rule of recognition and the separability thesis. The rule of recognition is the claim that wherever there is law there exists a normative practice among relevant officials that specifies the conditions that must be satisfied in order for a norm to count as part of the community’s law. The separability thesis is the claim that there is no necessary connection between law and morality).

De fato, essa relação entre o público e o privado retrata a situação histórica de uma época em que o sistema capitalista é a economia de mercado e o Estado é liberal. Ademais, a igualdade é apenas formal e o Estado não intervém na esfera privada. Há uma separação muito nítida entre essas duas esferas.

Bobbio fala sobre a existência de um verdadeiro fosso separando as esferas pública e privada, ressaltando a existência de uma grande “dicotomia” entre essas duas esferas46.

Segundo Norberto Bobbio, “na teoria do direito a distinção que se apresenta, mais marcadamente do que qualquer outra, como caráter de ‘grande dicotomia’ é a distinção entre direito privado e direito público”47.

Esse relacionamento entre o público e o privado não tem uma evolução homogênea, apresentando momentos alternados de total preponderância do público sobre o privado e vice- versa, além de contextos históricos de total interpenetração.

Enquanto no findar da Idade Média e na formação do Estado moderno havia essa interpenetração entre o público e o privado; por volta do século XVII percebe-se uma franca separação entre essas esferas, o que refletia a separação entre sociedade e Estado, política e economia, direito e moral.

A demonstração dessa cisão entre o público e o privado interessa ao nosso estudo na medida em que demonstra a abstenção do Poder Público em vários aspectos. No direito também se espelha essa dicotomia: O direito público para disciplinar o Estado, sua organização e seu funcionamento; o direito privado para regrar relações contratuais e econômicas entre os indivíduos da sociedade civil sempre sob os signos da plena liberdade e

46 Dicotomia para Bobbio: duas subclasses, reciprocamente excludentes e conjuntamente exaustivas.

47 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de: Daniela Beccaccia Versiani; revisão técnica de Orlando Seixas Bechara, Renata Nagamine. São Paulo: Manole, 2007, p. 143.

da propriedade absoluta. E esses signos estavam estruturados em todos os códigos civis que surgem no primeiro ciclo das codificações48.

Trata-se de um Estado alheio aos problemas sociais e com traços típicos de um Estado liberal de direito. A evolução desse relacionamento até os nossos dias é importante para analisarmos a caracterização atual do Estado e definirmos o papel do magistrado na efetivação dos direitos trabalhistas, o que será desenvolvido no último capítulo.

Nesse sentido, quando a burguesia chega ao poder ela rompe com a ordem anterior e impõe modificações em todos os aspectos, sejam sociais, políticos ou econômicos e também jurídicos. Portanto, o direito como ora se apresenta é afinado com o momento histórico em que está inserido, mas irá se modificar com o decorrer inexorável do avanço da humanidade.

Nesse novo momento os códigos civis são elaborados com a pretensão de regular todo o espaço jurídico e recusam o intenso pluralismo jurídico que imperava no período histórico anterior. O “direito Privado passa a espelhar a ideologia, os anseios e as necessidades da classe socioeconômica recém-chegada ao poder”49.

Para Fábio Konder Comparato, a Revolução Francesa teve seus méritos ao exterminar com as classes estamentais e com as corporações de ofício, mas por outro lado acabou reduzindo a sociedade civil a um conjunto de indivíduos abstratos e egoístas. Ao mesmo tempo em que a filosofia iluminista transformava o império da tradição em liberdade por meio da razão, criava-se a liberdade individual fincada na razão e tornava a política mero instrumento de conservação de uma sociedade dominada pela burguesia50.

Segundo Eugênio Facchini Neto, a liberdade dos burgueses se contrapunha à liberdade dos antigos, pois esta franqueava aos cidadãos a intervenção no espaço público:

48 NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: COUTINHO, Adalcy Rachid. et al. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Ingo Wolfgang Sarlet (Org.). 2.ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006, p. 18-19.

49 NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: COUTINHO, op.cit., p. 18-19.

50 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 127- 128.

A liberdade dos modernos consistia na possibilidade do indivíduo decidir livremente, sem qualquer intervenção estatal, todos os assuntos que lhe dizem respeito, ou seja, de tomar soberanamente todas as decisões concernentes à sua vida privada. Daí o endeusamento da autonomia privada e do seu consectário, no campo negocial, a liberdade contratual51.

A história e o seu contexto econômico, político e social têm o poder de determinar o direito. Numa sociedade liberal as forças de mercado e o interesse dos burgueses servem de guia para as ações individuais, para as decisões políticas e logicamente para a atividade judicial.

A ideologia burguesa cria uma armadilha que retira também do legislador qualquer responsabilidade num contexto de Estado liberal de direito, sob a alegação de que a elaboração das regras não é direcionada a casos particulares. Ou seja, cria a idéia de que não há a pretensão de prejudicar quem quer que seja, já que legisla para sujeitos abstratos e desconhecidos.

Esse modelo de relacionamento entre o público e o privado, típico do Estado liberal de direito, é concebido também como “modelo da incomunicabilidade”, na medida em que a Constituição e o Código Civil se encontravam apenas no aspecto formal e caminhavam paralelamente: A Constituição regrando o Estado e o homem político; o Código Civil como império da sociedade civil e do sujeito proprietário e cidadão52.

Mas o Código Civil, baseando-se na igualdade formal, impunha deveres de omissão ao Estado e consagrava liberdades negativas. Ou seja, o Estado (público) não deveria intervir na esfera privada. Na verdade o Código Civil desempenhava o papel de Constituição e estava sempre a favor do valor fundamental do liberalismo: o sujeito livre e igual.

51 NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: COUTINHO, Adalcy Rachid. et al. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Ingo Wolfgang Sarlet (Org.). 2.ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006, p. 21.

52 COSTA, Judith Martins. Os direitos fundamentais e a opção culturalista do novo Código Civil. In: COUTINHO, Adalcy Rachid. et al. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Ingo Wolfgang Sarlet (Org.). 2.ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006, p. 67.

Não obstante, é questionável a neutralidade em um âmbito necessariamente político. O que faz a contratualidade clássica é separar o espaço público da esfera privada e projetar para o Estado uma função supostamente ‘imparcial’ de garantidor do ato negocial53.

Também nesse contexto ficam bem delineadas as liberdades públicas caracterizadoras dos direitos fundamentais de primeira geração, que passaremos a estudar a seguir. É no exame dessas liberdades que se revela a distinção dos espaços público e privado, uma vez que é precisamente na constituição dos direitos subjetivos que se estabelecerão os limites de atuação do Estado54.

Bonavides afirma que o estudo da classificação dos direitos “ressalta na ordem dos valores políticos a nítida separação entre a Sociedade e o Estado, o que permite aquilatar o verdadeiro caráter antiestatal dos direitos da liberdade”55.

Enfim, ao estudar os direitos de primeira geração continuaremos nessa evolução do Estado, da economia, da política e do direito. Em cada período, continuaremos demonstrando como era a atuação da esfera pública, o seu relacionamento com a esfera privada, o viés dos relacionamentos entre os indivíduos e, principalmente, qual era o papel do magistrado para a efetivação dos direitos trabalhistas.