• Nenhum resultado encontrado

O direito do trabalho é um ramo especializado do direito e, tradicionalmente, regula a relação de emprego e os conflitos dela decorrentes. Busca a proteção da parte hipossuficiente - o trabalhador - que cede sua força de trabalho em troca de verba alimentar. Assim as normas trabalhistas carregam em si o nobre objetivo de distribuição de renda e justiça social.

Mas esse ramo institucionalizado não nasceu assim. Trata-se de uma especialidade construída pouco a pouco e em consequência inicial e direta da união dos trabalhadores oprimidos nas grandes indústrias e por influência dos ideais iluministas.

De fato, esses dois fatores são considerados principais para o surgimento de uma rala normatividade trabalhista. Rala porque visava primordialmente conter os abusos perpetrados contra crianças e mulheres nas grandes fábricas e humanizar essas relações de trabalho. As ideias do iluminismo corriam nos corredores das fábricas e permeavam as conversas dos trabalhadores aglutinados (dentre eles, crianças e mulheres, inclusive grávidas) fazendo surgir um sentimento de classe.

Com a Revolução Industrial a máquina reduz o esforço humano despendido na produção e possibilita a utilização “das meias-forças dóceis”, generalizando o emprego de mulheres e menores e suprimindo o trabalho dos homens. Essas “meias-forças dóceis“ não estavam aptas a reivindicar e eram submetidas a salários miseráveis, jornadas desgastantes e ambientes insalubres. Nesse contexto, a doutrina marxista também permitiu o despertar da consciência coletiva dos operários e a percepção de sua força. A questão social, em momento posterior, passa a ser preocupação do Poder Público, pressionado pela massa trabalhadora que

agia com violência e também pela Igreja (Encíclica Rerum Novarum de Leão XIII, dentre outras)67.

A industrialização pode ser compreendida como modificações sofridas na sociedade pela entrada da máquina no processo produtivo econômico. Suas consequencias foram a

produção em larga escala e a concentração do elemento humano68 na grande estrutura empresarial até então dispersa nos núcleos artesanais.

Essa reunião dos operários propiciou a vivência de experiências comuns, tais como exploração, extenuação, péssimas condições de trabalho e baixas retribuições. Como dito, nasce o sentimento de classe entre os operários e consequentemente ações organizadas em oposição aos patrões.

Não há dúvida de que as normas incipientes do trabalho surgem como resposta do próprio capitalismo às reivindicações dos trabalhadores. Mas, antes de tudo, tais normas consistem em estratégia pensada pelos e vantajosa para os próprios capitalistas, como manutenção do sistema econômico que se consolidava: o capitalismo.

As normas trabalhistas são produto do capitalismo e se desenvolveram atadas à evolução histórica desse sistema. Porém, o direito do trabalho também serve ao capitalismo na medida em que retifica suas distorções econômico-sociais. Ademais, civiliza as relações civis, especialmente a relação de trabalho, ao fixar barreiras às formas mais perversas de utilização da mão-de-obra pela economia69.

Jorge Luiz Souto Maior destaca o surgimento do direito do trabalho do seio da Revolução Industrial e sua importância para o capitalismo.

Dessas reações advêm algumas leis de cunho trabalhista [...] Mas mais importante do que enumerar as diversas leis trabalhistas que surgiram nesse

67 BARROS, Alice Monteiro. Curso de direito do trabalho. 2.ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 60.

68 PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de direito individual do trabalho. 5.ed. São Paulo: LTr, 2003, p. 24. 69 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 7.ed. São Paulo: LTr, 2008, p. 81.

momento, é acentuar que a reação dos trabalhadores somente foi possível por causa de uma elevada produção intelectual, de cunho socialista, que os conclamou a se unirem e a lutar por um mundo melhor – fato inédito na história da humanidade-, sendo de ressaltar, por outro lado, que várias construções doutrinárias sustentavam o capitalismo e as regras livres de seu jogo. O direito do trabalho surge, portanto, mais como fruto de uma luta de ideias do que de uma reação instintiva dos trabalhadores pela sobrevivência, podendo-se destacar, também, que o resultado dessa luta, ou seja, a regulação das relações de trabalho, em certa medida, foi uma conquista, mas, em outra, uma reação do próprio capital como tática de sobrevivência. Nesse sentido, o Estado-Providência foi uma criação do próprio capitalismo70.

Ressalte-se que, como enfatizado, com a Revolução Francesa há a quebra do antigo regime absolutista e a permissão para o surgimento do capitalismo. Forma-se entre os pensadores os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, desencadeando uma nova ordem política e social71.

Javillier descreve o rompimento propiciado pela Revolução Francesa de 1789 com o antigo regime e a inauguração de uma nova fase:

A Revolução de 1789 veio romper com a ordem antiga. A liberdade do trabalho, do comércio e da indústria é proclamada. Doravante, a faculdade de trabalhar tornar-se um dos primeiros direitos do homem, <a primeira propriedade, a mais sagrada, a mais imprescritível>. As corporações são riscadas da carta institucional. É assim o primado do individual e o reino do liberalismo econômico72.

A aceleração do desmoronamento do regime anterior se dá com o Edito de Turgot, de 1776, que extingue quase todas as corporações (restando apenas algumas pelo forte poder de pressão que exerciam), e pela Lei Chapelier, de 1971, que as extingue definitivamente.

70 MAIOR, Jorge Luiz Souto. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTr, 2000, p. 59-60.

71 MAIOR, op.cit., p. 46.

Para Alice Monteiro de Barros, essas leis apresentam duplo aspecto: um positivo de propiciarem a liberdade de trabalho; outro negativo por vedarem as associações ao impedir a existência de qualquer órgão entre indivíduo e Estado73.

Assiste razão, sendo confirmado por Javillier:

O individualismo jurídico foi formulado pela lei de 14-17 de junho de 1791 (A lei Chapelier): é a <aniquilação de todas as espécies de corporações do mesmo termo ou profissão> a negação de um interesse profissional entre cidadãos de uma mesma profissão (art.2)74.

Ao mesmo tempo em que o capitalismo permite o surgimento da classe operária, a organização e proteção do trabalho permitem o desenvolvimento do capitalismo. O fenômeno econômico não caminha sem o social e vice-versa, eles desenvolvem uma relação recíproca de causa e efeito.

O ramo trabalhista do direito surge pela insurgência contra os princípios liberais na busca de modificação de seus alicerces, mas o intervencionismo estatal também se encontra na tentativa de acalmar essa massa reivindicatória dos trabalhadores, propiciada pelo surgimento da consciência coletiva e pelo sentimento de solidariedade entre os operários.

No que atine ao Brasil, a centelha propiciadora do surgimento do direito do trabalho se encontra em 1888 quando da extinção da escravidão pela Lei Áurea. Antes desse momento havia de forma predominante o trabalho escravo e lavradores.

Nesse período ainda não há um direito do trabalho propriamente dito, mas os trabalhadores já começam a tomar consciência das suas frágeis condições de trabalho, a

73 BARROS, Alice Monteiro. Curso de direito do trabalho. 2.ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 57.

74 JAVILLIER, Jean-Claude. Manuel Droit du Travail. 5.ed. Paris: L.G.D.J, 1996, p. 20. (Tradução livre nossa: L’individualisme juridique est formulé par la loi dês 14-17 juin 1791 (Le Chapelier): c’est <l’anéantissement de toutes espèces de corporations de même état ou profession> la négation d’un intérêt professionel entre citoyens d’une même profession (art. 2.)).

exemplo e em consequencia do desenvolvimento de normas de proteção do trabalho no Ocidente.

A política vigente do liberalismo e a ideologia do individualismo exercem a hegemonia na sociedade capitalista desse período. Permitiam pouca penetração ou a quase abstenção estatal no que se refere à elaboração de leis ou intervenção no mercado de trabalho.

As poucas normas trabalhistas buscaram no direito privado a fundamentação das relações entre o trabalhador e o empregador. Utilizavam o contrato como instrumento jurídico e o inseriam numa operação econômica pela qual a figura do trabalhador só tinha relevância na sua qualidade de sujeito titular dotado de valor econômico75.

Nesse contexto a relação de emprego só se apresenta de forma relevante no segmento agrícola cafeeiro avançado de São Paulo e na emergente industrialização na capital paulista e no Rio de Janeiro. Ainda que o movimento dos trabalhadores não tivesse forte expressão e capacidade de reivindicação, surgem alguns diplomas normativos voltados primordialmente para esses setores em desenvolvimento76.

Portanto, percebe-se que no Brasil, a exemplo dos países ocidentais, as normas trabalhistas surgem em resposta às espaçadas reivindicações da massa de trabalhadores, mas também como mecanismo de sustentação da sociedade industrial que germinava.

No que se refere à prestação do trabalho, esta também seguindo a tendência da conjuntura histórica da sociedade naquele período era acordada por contratos que refletiam a nítida matriz teórica liberalista.

De fato, a um contrato concebido sob os cânones do liberalismo não importava a idéia de justiça, bastando que se adequasse “às regras de funcionamento da economia e do

75 GEDIEL, José Antônio Peres. A irrenunciabilidade a direitos da personalidade pelo trabalhador. In: COUTINHO, Adalcy Rachid. et al. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Ingo Wolfgang Sarlet (Org.). 2.ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006, p. 155.

mercado”. A idéia de “justo preço” tão cara ao período medieval parecia inconcebível para o “pensamento liberal”. Ainda que a injustiça substantiva fosse flagrante, se o contrato estivesse em conformidade com as regras do “jogo formal” (jogo liberal) seria válido77.