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3 MATAR “O PRÓPRIO FILHO”: DESAFIOS CLASSIFICATÓRIOS EM MEIO A COMPLEXIDADES BIOPSICOSSOCIAIS

3.7 O MULTIFACETADO FENÔMENO DO NEONATICÍDIO

No final de outubro de 2017, quando já tinha terminado de ler e sistematizar os acórdãos e autos processuais com os quais trabalhei, estava bastante intrigada com a semelhança entre os casos e com a ausência de homogeneidade na forma como eram tratados pelo Sistema de Justiça Criminal brasileiro. Até então, já havia lido parte da bibliografia

181 Tradução livre de entrevista em inglês: [there are cases] where people are in very restrict cultural

environments. The argument goes [..] that despite the fact that we live in a society with access to contraception, abortion and sex out of marriage which does not seem to be a big deal, there are some people in religious communities for instance, very religious families, where they can really be in the same kind of circumstances […] of moral and social disaster that would be in a hundred years ago. In that sense, the sympathy we have for them is because of the social ostracism that would occur if they reveal they have had a child.

estrangeira sobre filicídio e compreendido que a maioria dos casos que, no Judiciário brasileiro, é, em algum momento, considerada infanticídio – seja pela acusação, defesa ou por quem julga – se encaixava no padrão do neonaticídio e muito dialogava com a bibliografia especializada na temática. No entanto, por mais que desde a década de 1960 se produza conhecimento específico sobre o tema, não há quase referência a estes estudos nos autos e acórdãos pesquisados.

Tratados de forma isolada, os casos são vistos como duplamente atípicos: tanto enquanto crime, considerado raro; como enquanto o ato social de uma ―mãe‖ matar ―o/a próprio/a filho/a‖. Sujeitas às expectativas sociais de um dever ser materno, pautado em noções sociais de instinto e cuidado, as rés, nos processos judiciais e acórdãos estudados, foram julgadas sem terem seus casos sido considerados parte de um conjunto mais amplo, capaz de deslocar o fenômeno de modelos pré-estabelecidos do que se entende por processo gestacional e criação natural de laços entre ―mães‖ e ―filhos/as‖. Tratar os casos a partir do padrão do neonaticídio é uma forma de torná-los menos atípicos e compreendê-los enquanto fenômeno.

O tipo penal infanticídio, ao estabelecer uma noção de maternidade e filiação que não corresponde aos casos que abrange, está desencaixado com relação à prática, o que acaba por permitir narrativas e interpretações múltiplas e distanciadas do padrão que melhor explica os casos. Ao se olhar para os elementos que compõem a categoria neonaticídio, percebe-se a repetição de padrões que não se encaixam nas expectativas comuns sobre gestação, parto, maternidade e cuidados.

Assim, não é possível tratar o neonaticídio de forma fragmentada e individualizada quando há, ao se olhar para o conjunto de casos tanto no âmbito nacional quanto internacional, um padrão de repetição de elementos semelhantes. Não apenas é necessário olhar para os casos de neonaticídio em conjunto, como também refletir sobre as múltiplas dimensões que compõem o padrão e dão pistas da totalidade do fenômeno. Há elementos inegáveis de ordem física, psíquica e social que o compõem e perder de vista essas dimensões é deixar de tratá-lo em sua complexidade.

Os debates travados no campo das ciências sociais acerca da gestação, parto e maternidade, apresentados neste capítulo, permitiram trabalhar como o social molda o biológico, atrelando ao corpo e às suas funções significados socialmente construídos. A maternidade, por exemplo, não está apenas no corpo físico, mas, principalmente , no corpo social e na maneira como este atribui à gestação uma série de sentidos. Nesse contexto, a

imediata associação legal entre gestação e relação de filiação no caso do infanticídio está descompassada com o que se passa na maioria dos casos.

Ao propor tratar o neonaticídio como uma síndrome, as autoras mencionadas neste capítulo chamam a atenção para suas características biopsicossociais. Há sintomas, físicos ou não, que se repetem nos casos, e isso deve ser considerado sob pena de se negligenciar fatores relevantes para a sua compreensão. Quando comecei a ler sobre a síndrome do neonaticídio tive dúvidas razoáveis se tratar o fenômeno nessa chave não seria recorrer ao corpo feminino patologizado e sujeito às intempéries de seu destino reprodutor do qual os estudos feministas tanto tentaram fugir, a partir especialmente dos anos 1960. No entanto, identifiquei que as autoras de forma alguma retornavam ao corpo como única explicação para o neonaticídio, mas, pelo contrário, partiam de um fenômeno psicossocial – o medo da revelação da gestação – como central no desencadeamento dos demais sintomas da síndrome. O corpo aparece como parte relevante do processo, mas, jamais, como única explicação.

Foi nessa época em que estava intrigada com a semelhança entre os casos, que entrevistei o Prof. Dr. William Watson, professor do departamento de criminologia da Universidade de Toronto, no Canadá, autor de alguns artigos sobre infanticídio. O questionei sobre as semelhanças dos casos bem como sobre a síndrome do neonaticídio e os perigos de patologização do corpo feminino que tratá-lo nessa chave poderia significar. Sobre este último ponto Watson me respondeu:

Do meu ponto de vista, parte do que faz isso [a síndrome] tão importante é que estamos em um tempo de pensar, argumentar e refinar ideias sobre a relação entre o status social da mulher na sociedade e seus corpos. E acho que por um tempo, nos anos 1960 e 1970, muitos sentiam que era necessário argumentar que o único jeito de garantir igualdade de gênero era não olhar para o corpo. E assim que todos começaram a falar sobre os corpos e diferenças corporais, particularmente se não fosse parte de um reconhecido discurso feminista, seria abrir a porta para argumentos de que as mulheres eram essencialmente inferiores, por que isso é o que sempre foi feito. Em muitos aspectos essa não é a mesma situação na qual estamos e eu acho que muitas mulhres se encontram em uma situação na qual elas querem poder falar sobre seus corpos em relação ao ambiente de trabalho. Certo? Então, elas querem poder falar sobre licença maternidade, da dispensa paternidade e das qualidades especiais do corpo em relação a isso. E essa é uma das partes mais importantes do desenvolvimento cultural. Você pode imaginar um mundo de equidade de gênero, no qual o corpo não precisa ser silenciado?182

182 Da transcrição original em inglês: From my point of view, part of what makes this so important is that we are

in the time of thinking through, arguing through and refining ideas about the relationship between women status in society and women bodies. And I think for a while, in the sixties and seventies, it was felt necessary by many to argue that the only way to pursue gender equality was to pay no attention to bodies. And as soon as everyone started to talk about bodies and bodily differences, particularly if it wasn‘t part of a distinctive feminist discourse, it was opening the door to arguments that women were inferior essentially, because that‘s the way

Esta fala de Watson, juntamente com conversas com minha co-orientadora da área da saúde coletiva, Professora Ana Flávia Pires Lucas D‘Oliveira, me encorajaram a não ―ter medo‖ de voltar ao corpo, pois isso não significava, de forma alguma, essencializar a mulher e colocá-la como o ser histérico e sujeito aos humores e hormônios traçado a partir de meados do século XIX. Ao contrário: tematizar a base material do corpo, juntamente com uma perspectiva psicossocial do neonaticídio, auxilia a compreender melhor como o corpo feminino, em última análise, é entrecruzado por valores, ações e sofrimentos decorrentes de profundas bases culturais e sociais que moldam expectativas e corpos.

Mas não basta o corpo e, como já repetido, não é possível olhar apenas para este. Uma vez que tratar o infanticídio apenas a partir daquela que deu à luz e é acusada da morte de seu/sua recém-nascido/a é também reduzí-lo em sua complexidade. Oberman e Meyer (2001, pp. 66-67) ao refletirem sobre respostas e prevenção a casos de neonaticídio chamam a atenção para a necessidade de se considerar o entorno para que se tenha um panorama mais completo acerca do fenômeno. Por exemplo, não considerar os papéis de presença ou ausência dos parceiros e das pessoas mais próximas à mulher é onerá-la como única responsável por um acontecimento que tem claras dimensões sociais. Encarar o neonaticídio envolve, portanto, segundo as autoras, parar de olhar apenas para as mulheres ou, como diria a saúde coletiva brasileira, ter um olhar integral para as mulheres, que considere a desigualdade de gênero, raça e classe suas situações singulares concretas.183

Ao abandonar o critério social da honra, dando espaço a uma categoria ligada ao corpo reprodutivo, a lei penal brasileira de 1940 buscou trazer uma racionalidade científica ao tipo penal, ―emprestada da medicina". No entanto, na prática, os casos mostram o quão relevante são elementos de ordem social para o desencadeamento dos processos de ocultação e negação da gestação, sendo o medo da revelação da gravidez central nestes. Apesar de ser raro o uso da palavra honra nos documentos jurídicos e na bibliografia internacional sobre a temática, não se pode deixar de mencionar que o medo/pavor da revelação da gestação caminha

thinks have been done. In many respects that is not the situation we are in and I think many women find themselves in situation where they which to be able to talk about their bodies in relation to the workplace. Right? So, they which to be able to talk about maternity leave, their partners leave and the special qualities of the body in relation to that. And this is one of the most important parts of cultural development. Can you imagine a world of gender equity in which people‘s bodies don‘t have to be silenced?

183 Vale notar que a noção de integralidade, um dos princípios do SUS, é pressuposto do PAISM - Programa

Integral de Saúde da Mulher. Já em 1983, o PAISM propunha justamente ver a mulher como sujeito integral, tendo suas demandas também integralmente atendidas. Lutava contra o materno infantilismo e a reduçao da mulher à mãe.

paripasso com a noção de honra. O corpo feminino, por ser o locus da gestação, evidencia na gravidez o exercício da sexualidade e a ruptura com eventuais tabus e proibições desse exercício. O medo da desonra, do escrutínio público, da revelação do segredo da sexualidade proibida e de seu fruto compõem o fenômeno estudado.

No entanto, a partir do momento em que a honra foi retirada da lei penal perdeu-se uma dimensão importante do fenômeno, uma vez que, ao menos formalmente, a dimensão social do ato de uma mulher acusada da morte de seu/sua recém-nascido/a deixou de ser um critério legal para a configuração do infanticídio. Por sua vez, o elemento que, na própria lei, permite ―explicar‖ as razões dessas mulheres desviarem do padrão esperado e matarem seus próprios filhos/filhas, qual seja, o estado puerperal, é tão controverso quanto questionado. Fruto de uma visão de corpo feminino patologizado, herdeiro da concepção de mulher do início do século XX, o estado puerperal é categoria-chave para se compreender como o tipo penal infanticídio é tratado hoje no Brasil. É justamente sobre isso o próximo capítulo.