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APRESENTAÇÃO 21 1 INTRODUÇÃO

1.2 OPÇÕES TEXTUAIS

Escrever não é um ato neutro. Desde a escolha das palavras à estrutura do texto, a todo o tempo quem escreve se coloca no papel. A linguagem, por sua vez, também não é neutra, pois traz consigo heranças e disputas ideológicas, sociais e políticas. Ciente disso, logo no início da escrita da tese, refleti sobre algumas escolhas textuais, dentre elas uma que considerei fundamental para este trabalho, que é o uso dos gêneros gramaticas feminino e masculino em detrimento do masculino genérico. Oras! Trata-se de uma tese escrita por uma mulher, sobre como um crime que só pode ser cometido por mulheres é visto, interpretado e mobilizado no cotidiano do Sistema de Justiça Criminal. Garantir uma linguagem inclusiva de gênero no texto é, no mínimo, ser coerente com o meu ―lugar de escrita‖ e a temática do trabalho. Como bem ressaltado pela antropóloga Débora Diniz ―por uma coerência textual à minha existência, escrevo no feminino‖ (DINIZ, 2012, p. 9).

O uso do masculino genérico invisibiliza as mulheres no texto. Ao se flexionar o plural sempre no masculino para se referir a homens e mulheres, se escamoteia a presença de mulheres no que se escreve. Daí a escolha por trazê-las ao texto. Tal opção é trabalhosa, mas necessária. Trabalhosa, uma vez que demanda atenção, sendo preciso a todo o tempo, lembrar-se da inclusão do feminino na escrita, bem como tentar sair das armadilhas que o masculino genérico nos impõe. O texto, por vezes, parece menos fluido quando se usa os dois gêneros, tendo sido incômoda, em um primeiro momento, a leitura do que havia escrito. No entanto insisti na relevância política de escrever nos dois gêneros34.

Também optei por colocar o nome completo de autoras e autores na primeira vez que são citadas/os no texto. Isto garante que seja possível, ao citar em outro momento apenas o sobrenome, saber quem escreveu. Esta é uma forma de dar visibilidade às autoras referenciadas ao longo do texto, uma vez que o uso apenas do sobrenome desde o início não permite identificar quem escreve.

Ainda, vale ressaltar que o uso da expressão ―seu/sua recém-nascido/a‖ para me referir às vítimas dos casos com os quais trabalhei foi uma escolha difícil, porém necessária para garantir uma padronização no texto. Isso porque achei importante evitar o uso de palavras como ―bebê‖ ou ―criança‖, por terem uma dimensão de afeto e personalização que não está presente nos casos. O uso da palavra ―vítima‖, reforçaria a linguagem do processo penal, não dando conta da complexidade dos casos que ultrapassam o binarismo legal ―agressora/vítima‖. Por sua vez, a expressão legal ―o próprio filho‖ carrega consigo a noção social de filiação, ausente na percepção de grande parte das mulheres acusadas35

. Para garantir a dimensão de que são casos de mortes daquele ou daquela a quem a mulher acusada do crime estava dando ou acabara de dar à luz, optei por usar a expressão ―seu/sua recém-nascido/a‖, sendo o uso do pronome possessivo ―seu/sua‖ para marcar tal relação. Quando não foi possível identificar pelo documento lido se se tratava de recém-nascido do sexo masculino ou feminino, usei a forma ―seu/sua recém-nascido/a‖.

34 Na pesquisa Dar à luz na sombra condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade

por mulheres em situação de prisão (BRAGA; ANGOTTI, 2015, pp. 19-20), bem como no capítulo Grupo Focal na Prisão (BRAGA; ANGOTTI, 2017, pp. 166-167) Ana Gabriela Mendes Braga e eu refletimos sobre a

escolha política de escrever no feminino, bem como de usar os dois gêneros para tratar de profissionais do direito, uma vez que ―ao falar de operadores e operadoras do sistema de justiça, achamos que o uso do plural feminino poderia ter o efeito reverso da visibilidade, funcionando como blindagem para alguns. Por exemplo, criticar o posicionamento de ‗juízas‘ poderia transparecer que não havia crítica ao comportamento dos ‗juízes‘ homens. Desse modo, optamos pelo uso do masculino e feminino nessas situações‖ (BRAGA; ANGOTTI, 2015, pp. 20).

Ainda sobre a linguagem, optei por fazer um glossário traduzindo os termos jurídicos utilizados no texto, com o objetivo de não ―poluir‖ a escrita com explicações sobre cada termo, garantindo, no entanto, sua compreensão por quem não é da área. Em cada termo jurídico que considerei necessário explicar, coloquei uma nota de rodapé remetendo ao glossário, que se encontra no apêndice A da tese.

***

A leitura de um paper no qual Theophilos Rifiotis e Patrícia Marcondes Amaral Cunha (2016) discutem, dentre outros, as implicações éticas do uso de documentos jurídicos em pesquisas antropológicas, ajudou-me a lidar com um desconforto que me acompanhava desde o início da pesquisa, qual seja, como trabalhar com os documentos jurídicos, sem expor, no texto, especialmente as mulheres rés e suas histórias. Perguntava-me o tempo todo como referenciaria os documentos com os quais trabalhei, se colocaria ou não o número dos autos judiciais ao me referir a eles, bem como se mencionaria o nome das rés e de outros atores e atrizes processuais ao longo do texto.

Explico: apesar de os autos processuais e acórdãos com os quais trabalhei serem documentos públicos que não tramitam em segredo de justiça, a circulação destes documentos costuma ocorrer apenas no Sistema de Justiça, não havendo publicização dos nomes e casos fora dessa esfera, salvo exceções midiáticas. Ao agrupar tais documentos e trazê-los à tona em um texto acadêmico, estaria, em alguma medida, agrupando em um único documento aproximadamente 180 mulheres que foram acusadas e, em seguida, condenadas ou absolvidas pelas mortes ou tentativa de morte de seu/sua recém-nascido/a. Estaria, em nome do rigor do formalismo de referenciamento de fontes em trabalhos acadêmicos, contribuindo, em alguma medida, para a exposição dessas pessoas, bem como facilitando o acesso a seus nomes e aos seus casos.

Como trabalhado nesta tese, a vivência do processo penal representa por si só uma pena. Temia que trazer nomes e dados aos autos seria uma forma de, em alguma medida, reforçar essa pena. Apesar de Rifiotis e Cunha terem trabalhado com processos que tramitavam em segredo de justiça, o que torna a publicização dos dados ainda mais gravosa, suas reflexões dialogam diretamente com meus dilemas. Isso porque existe uma dimensão da pesquisa documental judicial que é a impossibilidade ou imensa dificuldade de contato com personagens que compõem os autos, seja para conseguir sua autorização para a publicização de dados, seja para dar um retorno com relação aos resultados da pesquisa. Afinal, como bem se perguntam os autores ―como e com quem negociar, por exemplo, o que publicar ou não sobre os processos? Quais as implicações de não ter em vista, enquanto mais uma etapa

inerente à etnografia, o retorno e o feedback para as populações estudadas?‖ (RIFIOTIS; CUNHA, 2016, p. 4).

Luna Borges Pereira Santos, em sua dissertação de mestrado sobre um caso que envolve a condenação de uma mulher pela morte de seu recém-nascido, discute algumas questões éticas acerca da pesquisa em documentos jurídicos36. Dentre elas, vale ressaltar que a

autora também optou pelo anonimato da ré, por considerar:

(...) que o arquivo está longe de ser ou permitir uma biografia sobre aquelas que não escrevem a sua própria história: o caso da mulher do arquivo [modo como se refere à ré] foi o de uma existência tirada do esquecimento apenas para ser punida com a maior pena possível como infanticida-homicida (SANTOS, 2017, p. 15).

Assim como Santos, o que narro sobre essas mulheres é algo pontual, que remete a um episódio e seu entorno, escrito principalmente por outras pessoas sobre elas. Não seria justo escrever seus nomes de modo a identificá-las apenas com uma história sobre elas, história esta que, muito provavelmente, envolve parte de suas biografias que não desejam narrar, ou que, ao menos, gostariam de narrar a partir de suas perspectivas37.

Sendo assim, optei por usar as iniciais de seus nomes e de algum dos sobrenomes para me referir a elas. Tal escolha preservou suas identidades, ao mesmo tempo em que não tornou confuso o processo de sistematização dos dados e escrita sobre os casos, uma vez que, por saber seus nomes, o uso de iniciais me remetia imediatamente aos documentos lidos (tanto por ter me familiarizado com alguns, quanto por facilitar a busca no programa38 que usei para

sistematizar os dados).

Além das mulheres rés, também optei por preservar as identidades dos demais personagens processuais, com o intuito especialmente de despersonalizar suas atitudes e falas, que compõem padrões de comportamentos, posicionamentos e moralidades que ultrapassam sujeitos concretos. Dessa forma, não cito nominalmente promotores, promotoras, defensores, defensoras, juízes, juízas, advogadas, advogados, testemunhas e outros personagens. Também, por essa mesma lógica, não nomeei as pessoas entrevistadas. Optei por me referir a elas segundo a profissão e alguma característica para diferenciá-las das demais entrevistadas,

36

Um dos pontos trabalhados pela autora diz respeito à publicização, nos autos processuais, de prontuários e laudos médicos da ré/paciente. A autora levanta questionamentos pertinentes sobre a violação do sigilo médico, pelo judiciário, ao anexar aos autos processuais esses documentos, sem a autorização das partes envolvidas (SANTOS, 2017, pp. 27-36).

37

Como fez L.S., mulher condenada por infanticídio, que me concedeu longa entrevista narrando o episódio a partir de sua vivência e percepções.

usando, por exemplo, identificações como ―o promotor aposentado‖ ou ―a defensora do Caso 1‖. Considerando o universo restrito do Tribunal do Júri da Comarca de São Paulo – local de onde vem a maioria das personagens jurídicas entrevistadas – utilizar iniciais seria quase o mesmo que nomeá-las. Por isso a escolha exemplificada anteriormente.

De acordo com Rifiotis e Cunha, ―a discussão sobre o direito à intimidade dos sujeitos de pesquisa aparece de forma tímida nas etnografias com documentos, principalmente em documentos produzidos no âmbito do judiciário (...)‖ (RIFIOTIS; CUNHA, 2016, p. 14). Trata-se de questão importante a ser enfrentada pela área. Por um lado, há a necessidade acadêmica de comprovação das fontes e da fidelidade em seu uso; por outro, há os direitos fundamentais de quem está representado/a nos documentos judiciais e a impossibilidade, muitas das vezes, de obter seu consentimento para a publicização de partes dos autos (RIFIOTIS; CUNHA, 2016, p. 4). Diante de dilemas desse tipo, é preciso fazer escolhas. A minha nesta tese foi, portanto, como já argumentado, pelo anonimato de todos os personagens citados, bem como a não identificação do número dos autos39.