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―Vocês sabem o que é estado puerperal?‖ perguntou o promotor de justiça do Caso 1 ao corpo de jurados. ―É um estado peculiar da mulher no pós-parto. Só mulheres dando à luz ou logo em seguida do parto o vivenciam. É um momento peculiar‖, continuou, antes de detalhadamente explicar o Caso 1 e porque considerava que L.S. havia cometido um infanticídio e não um homicídio. O entendimento do que era estado puerperal parecia ser, ali, crucial para convencer e persuadir os jurados e as juradas a aceitarem a tese de que se tratava de um infanticídio.

De acordo com o artigo 123 do Código Penal Brasileiro de 1940, para que seja considerada a ocorrência de um infanticídio, alguns elementos precisam estar presentes. São eles: a parturiente ter causado, de forma dolosa, ou seja, intencional, a morte de seu/sua recém-nascido/a, durante ou logo após o parto, por influência do estado puerperal. Há uma série de controvérsias em torno de cada um desses elementos, por exemplo, o que é estado puerperal e como se atesta sua influência, como medi-la, quanto tempo representa o ―logo após‖, como afirmar ou não a presença de dolo.

Especialmente ―estar sob a influência do estado puerperal‖ é condição analisada de forma bastante distinta por quem produz saber acerca do artigo 123 da lei penal. Não existe, desde a promulgação do CP, há quase oitenta anos, consenso na doutrina penal e médico-legal do que representa o estado puerperal e como este deve ser conceituado e atestado.

Quando entrevistei o promotor do Caso 1, conversamos sobre este e outros casos, bem como sobre seu entendimento acerca do tipo penal infanticídio. Nas minhas anotações, feitas durante a entrevista, escrevi de maneira destacada: ―ele acredita no infanticídio‖. Tempos depois, quando sistematizava e analisava o material trabalhado nesta tese, me deparei com esta anotação e, mais uma vez, confirmei a hipótese que fui delineando de forma cada vez mais clara durante a pesquisa, qual seja, de que o tipo penal infanticídio não é de aceitação unânime entre profissionais do direito, havendo ―adeptos/adeptas‖ e ―não adeptos/não adeptas‖ do tipo.

―Adeptos/adeptas‖ seriam aqueles e aquelas que ―acreditam‖ que o estado puerperal existe e que pode levar uma mulher, sob sua influência, a matar o ―próprio filho‖ durante o parto ou logo após, devendo a pena, nestes casos, ser reduzida em relação à do homicídio ou mesmo não haver punição, justamente por vivenciarem um estado ―peculiar‖. Já ―não adeptos/ não adeptas‖ seriam aqueles e aquelas que ―não acreditam‖ no estado puerperal e,

portanto, não utilizam o tipo penal infanticídio, interpretando os casos a partir de outras chaves explicativas que não aquela permitida pelo artigo 123.

Na medida em que lia os casos e os acórdãos, pude identificar que o estado puerperal aparecia como elemento central para defender, por sua presença, ou rechaçar, por sua ausência, a ocorrência de um infanticídio. O uso de doutrinas penais, jurisprudência dos tribunais e manuais de medicina legal amparava posicionamentos diversos acerca do tipo penal, havendo, na bibliografia e nas decisões dos tribunais, um leque de argumentos que poderia ser usado para sustentar uma ou outra posição. A semelhança entre os casos e a repetição de um padrão, apresentadas no capítulo anterior, parecia passar à margem do debate travado nos autos e na literatura utilizada por personagens processuais para tratar da temática.

Sobre a necessidade de comprovação ou não do estado puerperal para a configuração do infanticídio, vale destacar que os debates acerca do papel do laudo pericial também se fizeram presentes nos documentos jurídicos analisados. Para parte dos personagens judiciais, o laudo comprobatório do estado puerperal era essencial; para outra não era necessário, uma vez que bastava ter dado à luz para constatar a presença de tal estado. Já para outro grupo parecia que a presença de laudo não fazia diferença, pois seu resultado era ignorado, prevalecendo, nesses casos, posicionamentos não embasados nos documentos periciais que compunham os autos. Por fim, havia quem, na ausência dos laudos, se embasava em outras provas para justificar suas decisões e/ou argumentos, não discutindo a necessidade ou não do laudo.

Este capítulo trata justamente dos usos e desusos do estado puerperal e de outros elementos que configuram o tipo penal infanticídio por profissionais que, de algum modo, são autorizados a interpretar e conceituar o que é infanticídio e/ou a se posicionar se casos devem ou não ser enquadrados nessa categoria. Qual o léxico usado por personagens processuais para conceituar infanticídio? Com qual bibliografia dialogam? Que saberes pautam os posicionamentos de quem se manifesta nos autos sobre o tipo penal? Como se dá o diálogo entre a medicina, o direito e a psicologia na definição e constatação do estado puerperal? Há uso da bibliografia específica sobre infanticídio e neonaticídio apresentada no capítulo anterior?

Para responder a essas perguntas, parti da leitura dos autos e acórdãos. A partir desse material, identifiquei como fonte usada para embasar argumentos, especialmente obras nacionais de direito penal – como códigos comentados e doutrinas – bem como de medicina- legal, além de laudos periciais e textos jurisprudenciais. Assim, optei aqui por apresentar essa

polifonia que compõe os autos e acórdãos estudados, privilegiando a análise da maneira como o debate acerca dos elementos que compõem o tipo penal infanticídio aparece nessas fontes.

4.1 O ESTADO PUERPERAL NA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA

A principal controvérsia acerca do infanticídio nos documentos judiciais lidos, bem como nas obras que abordam a temática, diz respeito ao estado puerperal. Novidade trazida pelo CP de 1940, a obrigatoriedade de ―estar sob a influência do estado puerperal‖ para se configurar infanticídio foi aceita de diferentes maneiras pelos autores responsáveis pela hermenêutica legal. A mudança do critério para a caracterização do infanticídio, que antes era por questões relacionadas à necessidade de ocultação da desonra, gerou, como ainda gera, discordância.

A legislação penal atualmente vigente, promulgada em 1940, foi a primeira a tratar o infanticídio como ato proveniente de uma perturbação psíquica com efeitos diretos na capacidade de entendimento ou de auto inibição da parturiente/puérpera. O projeto de lei do código penal suíço, de 1916, que desembocou na legislação de 1937, é tido como aquele que influenciou a lei brasileira184 (MUAKAD, 2001, pp. 82-83; HUNGRIA, 1955, p. 244). De fato, é o texto que apresenta a redação mais semelhante a do artigo 123. Segundo o artigo 166 do Código Criminal Suíço, há infanticídio quando ―(...) a mãe matar sua criança durante o parto ou enquanto estiver sob a influência dos efeitos de dar à luz‖185. Há diferenciação, no entanto, com relação à pena, uma vez que esta não deverá exceder três anos de custódia e poderá ser revertida em pena monetária. No entanto, não se menciona explicitamente estado puerperal.

A especificação do infanticídio como crime praticado pela própria mãe em estado puerperal foi introduzida no CP de 1940, que no item 40 da exposição de motivos da parte especial pontua que:

o infanticídio é considerado um delictum exceptum quando praticado pela parturiente sob a influência do estado puerperal. Esta cláusula, como é óbvio, não quer significar que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica: é preciso que fique averiguado ter esta realmente sobrevindo em consequência daquele, de

184 Muakad menciona que, além de influenciar a legislação brasileira, o projeto de lei suíço, de 1916, também

influenciou as legislações peruana (1924), argentina (1921), dinamarquesa (1930) e polonesa (1932) (MUAKAD, 2001, pp. 82-83).

185 Do original ―If a mother kills her child either during delivery or while she is under the influence of the effects

modo a diminuir a capacidade de entendimento ou de auto inibição da parturiente. Fora daí, não há por que distinguir entre infanticídio e homicídio. Ainda quando ocorra a honoris causa (considerada pela lei vigente como razão de especial abrandamento da pena), a pena aplicável é a de homicídio.

Este texto teve como objetivo elucidar alguns pontos do artigo 123 do CP, traduzindo elementos não tão claros da lei. Um primeiro que merece destaque é o tratamento do crime como um delictum exceptum, ou seja, como uma exceção que permite o abrandamento da pena. Trata-se de crime que prevê a mesma ação do homicídio, ou seja, ―matar‖. No entanto, traz consigo exceções relacionadas à agente que o comete, à situação que a leva ao ato de ―matar‖, à vítima do delito, bem como à pena culminada. Tratá-lo como exceção na Exposição de Motivos é uma forma de, a priori, justificar e reforçar sua existência autônoma em relação ao homicídio.

Em seguida, a exposição de motivos mostra a exigência do nexo de causalidade entre o puerpério e sua influência em eventual perturbação psíquica, evidenciando que não basta estar vivenciando o momento pós-parto, mas que este, para que seja possível a adequação da conduta ao tipo penal excepcional, deve ser responsável pelo estado alterado de consciência vivido no momento do crime. Sobre o estado puerperal há apenas o entendimento que este representa uma alteração psíquica do puerpério. Por fim, o texto afastou a motivação da defesa da honra, que justificava o infanticídio nas legislações penais brasileiras anteriores, deixando claro que tal motivo não seria mais considerado válido para o enquadramento de casos como infanticídio, mas, sim, como homicídio.

No entanto, vale aqui a ressalva de que a causa honoris186 não foi retirada dessa nova legislação. Ao prever a figura do crime de exposição ou abandono de recém-nascido, o artigo 134 manteve o critério da honra, ressaltando que ―expor ou abandonar recém-nascido para ocultar desonra própria‖ é crime punido com pena de detenção de seis meses a dois anos. Se o fato resultar em lesão corporal de natureza grave, a pena passa a ser de detenção, de um a três anos e, se resulta em morte, de detenção de dois a seis anos, se equiparando à do infanticídio. Nesse caso, permitiu-se que o sujeito ativo fosse outro que não apenas a mãe. Trata-se da manutenção da previsão legal do crime por motivação de honra, abrandado tanto para a mãe, quanto para outros que cometerem o delito. A honra foi mantida na lei, apesar de relacionar- se, agora, à ação de exposição e abandono, não à ação de matar, sendo a morte uma possível consequência do ato de abandonar ou expor.

186 Apesar de na exposição de motivos estar escrito honoris causa, na maioria do material pesquisado usa-se