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Teoria Terceiro-Mundista/(Pós)Colonialista: ampliando as possibilidades de análise crítica das práticas organizacionais na reprodução das relações de poder

4 GÊNERO: OS LIMITES IMPOSTOS PELOS DISCURSOS DOMINANTES DA REALIDADE SOCIAL

4.3 GÊNERO E SUBJETIVIDADE: O SUJEITO ENTRA EM CENA

4.3.2 Teoria Terceiro-Mundista/(Pós)Colonialista: ampliando as possibilidades de análise crítica das práticas organizacionais na reprodução das relações de poder

baseadas no gênero

E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual,

mesma morte Severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta de emboscada antes dos vinte. de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte Severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida).

João Cabral de Melo Neto

Considerando o pensamento de Kuhn, de que o conhecimento científico é uma construção que segue padrões estabelecidos, por sua vez ancorados em culturas e práticas, crenças sociais e pessoais, admite-se que a sua produção é um processo social. Contudo, não significa abraçar a análise das relações de poder que constituem a sociedade. São os estudos pós-coloniais, assim definidos por Harding (1998), que resgatam as perspectivas dos grupos culturalmente marginalizados, na tentativa de considerar, na produção do saber, os conhecimentos gerados pelo “outro”, ou como Nunes (2002) considera, sistemas de conhecimento alternativos .

O pensamento pós-colonial é visto por muitos autores (SPIVAK, 1994; MENDOZA, 2002) como uma conseqüência de um dos traços do pós-modernismo: a ênfase no emergente/local. Tendo surgido nos anos 1980, como referência ao “Terceiro Mundo”, inicialmente habitou campos diversos como a sociologia, ciência política, teoria literária, antropologia e comunicação, e, um pouco mais tarde, o campos dos estudos organizacionais.

Segundo Goodale (2005), o termo pós-colonialismo refere-se a uma variedade de discursos e políticas. No entanto, o autor emprega-o com o significado de uma estratégia, surgida nos anos 1960, de auto-representação política por colonizados, encorajada por seus colonizadores, já que, na visão do autor, a produção da colonização foi primeiramente discursiva. Nesse mesmo sentido, para Hardt e Negri (2000), a globalização é um império, uma lógica totalizante de comando, na qual todos os envolvidos criam a impressão de uma ordem global unificada; portanto, a colonização ainda é latente, e o pós-colonialismo, assim como o pós-modernismo, representa uma rejeição aos regimes modernos de poder, uma oposição à exploração e subjugação de todos aqueles submetidos ao “Império”.

A colonização é tanto externa quanto interna, com grupos majoritários colonizando outros grupos independentes dentro de uma mesma nação. Jacobson (1989) analisa como as próprias políticas de desenvolvimento tecnológico, negam as tradições culturais locais em prol de um conhecimento científico hegemônico, materializado em artefatos tecnológicos. O autor descreve como o imperialismo na África levou à destruição de sistemas científicos próprios com sua substituição pela ciência ocidental que, mesmo obtendo maiores lucros, inutilizou grandes áreas, o que atualmente impede a população de fazer uso da terra para sustento das famílias locais.

Já Dirlik (1997) considera que a teoria pós-colonial inclui a rejeição ao legado do colonialismo em relação à autoridade, discursos, conhecimento, poder e relações sociais institucionalizados. Mas os questionamentos de Dirlik (1997) direcionam-se aos intelectuais,

profissionais e Estados do Terceiro Mundo que, segundo o autor, são cúmplices da extensão que o capitalismo ganha com o Eurocentrismo e a opressão norte-americana, na medida em que suas críticas focalizam o significado de pós-colonialismo. Porém, a questão principal não é essa, mas, sim, sobre as mudanças que ocorreram, ou melhor, se ocorreram; e, se não houve mudanças quanto ao domínio do Primeiro Mundo sobre o Terceiro Mundo, porque não discutir o colonialismo, a dominação e o capitalismo?

Quando se destaca a relação entre pós-colonialismo e pós-modernismo pretende-se apontar que ambos têm como sustentação a preocupação em dar voz para aqueles que são marginalizados, empurrados do centro para a periferia, freqüentemente identificados como o “outro”. No âmbito dos estudos pós-colonialistas, inicialmente a ênfase foi direcionada aos povos que estavam fora do “Primeiro Mundo”; no entanto, o termo assumiu uma conotação mais ampla, abrangendo todas as populações que vivem em situações nas quais não têm representatividade e, portanto, subordinam-se à lógica dominante, independente do país ou local em que habita (DIRLIK, 1997).

Nessa mesma direção caminham as inquietações de Hall (2006) quanto às reais possibilidades de separar o colonialismo e o pós-colonialismo, assim como o modernismo e o pós-modernismo. Para o autor, o colonialismo, além de um momento histórico específico, é, também, uma forma de “encenar ou narrar a história”. Assim, o pós-colonialismo não passa de um discurso que serve mais ao colonizador do que ao colonizado.

A despeito das controvérsias sobre o pós-colonialismo, Calás e Smircich (1996, p.244-245) apontam as principais contribuições (Quadro 12) do feminismo pós- estruturalista/pós-moderno e do feminismo terceiro mundista/pós-colonialista/mulheres no desenvolvimento, para os estudos organizacionais. Segundo as autoras, as contribuições residem na forma como as abordagens ampliam possibilidades, articulações e engajamentos.

Feminismo pós-estruturalista/pós-moderno Feminismo terceiro mundista/pós-colonialista 1. Focaliza a natureza discursiva da “realidade social”

e da “subjetividade” e na sua natureza não essencial. Ênfase na linguagem como um sistema de diferenças que permite questionar os limites impostos ao “conhecimento” por certos discursos privilegiados.

2. Permite a articulação da “política do conhecimento” como uma forma de relações e poder que tenta neutralizar um sistema de exclusão para certas posições de sujeito (por exemplo, de gênero). 3. Oferece uma visão mais pluralista de engajamentos

políticos, em que “gênero” se torna apenas um argumento entre outros. Oferece visões mais complexas da localização social e as estruturas de opressão.

4. Análise desconstrutivista e genealógica provê uma estratégia importante para demonstrar os limites do discurso organizacional e as estruturas (freqüentemente, baseadas em distinções de gênero) desses limites.

1. Problematiza o conceito de “gênero” como constituído no ocidente, e abre a possibilidade de outras configurações de gênero e de relações mais complexas entre homens e mulheres, no contexto das múltiplas opressões produzidas pelo capitalismo.

2. Estende a crítica ao conhecimento ocidental para além da desconstrução, ao articular outras possibilidades de conceitualização e subjetividades. Produz imagens positivas dos sujeitos terceiro-mundistas capazes de agir e de representação. Fortemente localizada em culturas e histórias específicas, as interseções de gênero/raça/classe/etnia.

3. Demonstra as possibilidades de ação política e de pluralismo político dentro dos limites micropolíticos da vida (organizacional) cotidiana. 4. Ilustra abordagens tradicionais para organizações

fora do âmbito da visão ocidental da “organização”. Essas abordagens são freqüentemente exemplificadas nos movimentos sociais e em novas manifestações de cultura popular, surgindo em diversos países (pós) coloniais.

Quadro 12: Principais contribuições das abordagens postanalytics para os estudos organizacionais Fonte: adaptado de Calás e Smircich (1996, p. 244-245)

Em síntese, a teoria pós-colonialista se propõe a revelar que a produção do conhecimento ocidental como representativa do centro implica na existência de um sujeito universal, na legitimação do imperialismo e do colonialismo. No mesmo sentido, o pós- modernismo rejeita o conhecimento imposto que leva à perpetuação de um sistema de exclusão e sujeição, enquanto focaliza o discurso que emana de um “sujeito descentrado, imóvel, múltiplo, constituído na diferença, como uma posição para representar o conhecimento” (CALÁS e SMIRCICH, 1996, p.239).

As teorizações terceiro-mundistas/(pós-colonialistas) relacionadas ao feminismo, segundo Calás e Smircich (1996), contestam o fato de as imagens e experiências sociais das mulheres ocidentais serem privilegiadas nos estudos de gênero (MENDOZA, 2002), por entenderem que desse fato as mulheres do terceiro mundo tenham sido constituídas como o “outro” em relação às ocidentais de primeiro mundo. A análise pós-moderna e pós- estruturalista insere-se nessas correntes pela ênfase dirigida às culturas periféricas, oferecendo alternativas para a busca de identidades, ao retirar do centro o sujeito racional do humanismo. Assim, os estudos femininos questionam as diversas configurações sociais que a

modernização produz, abrangendo temáticas tais como mulher no desenvolvimento, ou seja, mulheres ocidentais, e a colonização das mulheres do Terceiro Mundo.

A evidência do crescimento dos estudos feministas terceiro mundistas/(pós- colonialistas) como objeto de análise é revelada por Chouliaraki e Fairclough (1999), quando esses sugerem a inclusão dessa temática e suas ramificações na agenda de pesquisa da Análise Crítica de Discurso (ACD), o que pode contribuir para revelar as contradições do discurso na modernidade tardia40, a sua complexidade e ambigüidade, e, também, para abrir diferentes possibilidades de análise de discurso. Entre os temas propostos para compor a agenda da ACD são: colonização/apropriação; globalização/localização; reflexividade/ideologia; identidade/diferença, que, já fazem parte das correntes pós-modernas e pós-estruturalistas.

Os resultados expressos no relatório do Banco Mundial, sobre a questão de gênero, remetem à necessidade de estudos que aprofundem nas questões intragênero, a exemplo das mulheres trabalhadoras rurais, que enfrentam riscos e problemas específicos de saúde mais graves em relação aos seus pares urbanos. No Brasil, a importação dos modelos científicos sob a forma de tecnologia é notório, criando um padrão de desenvolvimento industrial e humano inconciliável com a produção cultural local. Segundo o relatório, as mulheres da zona rural do Nordeste brasileiro trabalham mais horas que os homens, tornando-se mais vulneráveis aos riscos de saúde, pois, além de realizarem atividades na colheita e plantio, tarefas efetuadas tipicamente por mulheres, ainda são responsáveis pelos afazeres domésticos (PENA; PITANGUY, 2003).

Vale trazer à tona, nesse momento, as questões que Mohanty (2002) se propõe a esclarecer, ao revisitar as idéias que disseminou em publicações na década de 1980. As reflexões principais da autora estão associadas ao que ocorreu após a década de 1980 ao início desse século, no que diz respeito às transformações, possibilidades e avanços dos estudos e práticas feministas no contexto intelectual, político e institucional Segundo a autora, seus primeiros trabalhos se apropriaram das idéias pós –modernistas com o objetivo de esclarecer que os estudos feministas cross-cultural devem enfatizar o contexto local e a subjetividade, bem como o contexto dos sistemas e processos político-econômicos em âmbito global.

Mohanty (2002) ressalta a sua determinação, seu compromisso político e pessoal em intervir de modo a criar um espaço em que o Terceiro Mundo (imigrantes e outros marginalizados), pudesse ver, por eles mesmos, a sua exclusão e a falta de representação

dentro das comunidades euro-americanas. Ancorada nas idéias pós-estruturalistas e pós- modernas41, a autora fez estudos, sobre as causas e o modo como as diferenças foram inseridas nas comunidades, que levaram à abertura de novas possibilidades de pesquisa.

Discorrendo sobre os caminhos que seus estudos sobre o feminismo e o Terceiro Mundo trilharam, Mohanty (2002) vê a globalização, como um fenômeno econômico, político e ideológico que controla o mundo e suas várias comunidades conectadas e interdependentes, sob regime material e discursivos. Dessa forma, a autora considera que os estudos feministas baseados no relativismo cultural são, de fato, uma apologia ao exercício do poder, haja vista que resultam em um conhecimento que sustenta o contexto de uma teia mundial que claramente direciona o poder e a dominação.

A partir de então, propõe que os estudos feministas devam considerar que o local e o global são definidos em termos de suas relações e ligações conceituais, materiais, temporais, contextuais, e não reduzidas a uma definição geográfica. Essa perspectiva, que Mohanty (2002) refere-se a um modelo de solidariedade, pressupõe que os pontos de conexão e distância entre as comunidades de mulheres marginalizadas e privilegiadas devem ser ensinados e aprendidos em termos de dimensões locais e globais.

As conclusões da autora, quanto às questões que ensejaram essa volta às origens do seu pensamento, se dirigem para um aspecto principal: “as mulheres são trabalhadoras, mães, ou consumidoras na economia global, mas nós somos também todas essas coisas simultaneamente” (MOHANTY, 2002, P.527). A questão principal é que os movimentos sociais e antiglobalização, nos quais as mulheres estão presentes tanto como líderes e participantes, são, de fato, espaços importantes para a construção do conhecimento, comunidades e identidades. Porém, é necessário ir além: é necessário mudar o entendimento da masculinidade desse trabalho, pois, “A crítica e resistência ao capitalismo global, revelando a naturalização dos seus valores masculinos e raciais, começam a construir uma prática feminista transnacional” (MOHANTY, 2002, p.530).

Nesse contexto, é emblemática a questão das diferenças intragênero, em que se constata uma tendência para o aumento da desigualdade. A desagregação dos ganhos das mulheres de acordo com os níveis educacionais, segundo Pena e Pitanguy (2003), sinaliza para uma tendência rumo a uma maior convergência salarial de homens e mulheres em razão

41 Mohanty (2002) não se declara contra ou a favor do pós-modernismo como um todo; critica os efeitos da

hegemonia do pós-modernismo nos estudos feministas. Esclarece que utiliza metodologias, teorias e insights marxistas, pós-modernistas, realistas, entre outros.

de as mulheres com educação superior terem salários mais altos. Porém, a distribuição de renda é maior entre os homens do que entre as mulheres, com o mesmo nível educacional.

Ainda sobre essa questão, o relatório do Banco Mundial evidencia que “em termos de nível de renda, as mulheres brancas estão mais bem situadas do que as mulheres negras, quando o nível de educação é constante” (PENA; PITANGUY, 2003, p.82), semelhante ao que ocorrem com os homens, ao passo que a situação se agrava quando a etnia é combinada com gênero: homens brancos são claramente privilegiados em termos de renda, comparando- os com homens negros, mulheres brancas e mulheres negras.

Para Calás e Smircich (1996, p.245), o conceito de gênero passa a ser “constituído no ocidente, e abre a possibilidade de outras configurações de gênero e de relações mais complexas entre homens e mulheres, no contexto das múltiplas opressões produzidas pelo capitalismo”. A literatura sobre gênero, nessa corrente, começa a se ampliar a partir do começo desse século, residindo, de forma expressiva, na literatura sobre organizações não governamentais, e também, na ênfase que os organismos mundiais destinam ao assunto, colocando em pauta temas que abordam as diferenças entre as minorias, levando-se em conta a ocidentalização do mundo “globalizado”.