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3 O TERCEIRO SETOR: ESPAÇO DE TRANSFORMAÇAO SOCIAL X CAMPO DE PODER

3.1 Os Esforços para Conceituar e Delimitar o Campo

Todavia, construir um objeto científico é, antes de mais nada e, sobretudo, romper com o senso comum, quer dizer, com representações partilhadas por todos, quer se trate dos simples lugares-comuns da existência vulgar, quer se trate das representações oficiais, freqüentemente inscritas nas instituições, logo, ao mesmo tempo na objetividade das organizações sociais e nos cérebros.

Pierre Bourdieu

A delimitação e abrangência do Terceiro Setor servem de palco para discussão em todo o mundo (LEWIS, 2005). No Brasil, as organizações são classificadas, com base em sua natureza, em três categorias: (a) organizações da administração pública; (b) entidades empresariais; e (c) entidades sem fins lucrativos. Nessa última categoria, incluem-se diversos tipos de organizações e, dentre elas, aquelas que integram o Terceiro Setor: as fundações privadas e as associações sem fins lucrativos que se enquadrem nos seguintes critérios, de acordo com a metodologia do Handbook on Nonprofit Institutions in the System of National Accounts, elaborado pelas Nações Unidas em conjunto com o The Johns Hopkins Center for Civil Society Studies (SALAMON; ANHEIER, 1998a): são formalmente organizadas; privadas (separadas do governo); sem fins lucrativos e sem fins de distribuição de lucros aos seus proprietários ou diretores; auto-administráveis (equipadas para controlar suas próprias atividades); e não compulsórias, isto é, voluntárias (envolvem um grau significativo de participação).

A análise elaborada por Salamon e Anheier (1998a), quanto às origens, composição e fontes de recursos das organizações pertencentes ao terceiro setor, é criticada por Ragin31 (1998) quanto ao fato de o estudo daqueles autores considerarem o terceiro setor de forma unitária e generalizada, não dispensando nenhuma atenção à diversidade e heterogeneidade de

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Sociólogo. Departamento de Sociologia da Northwestern University, Evanston, Illinois, Estados Unidos, e do Departamento de Sociologia da Universidade de Oslo, Noruega.

suas diferentes dimensões, sobretudo, em relação às diferenças culturais, sociais, religiosas e históricas entre os países analisados32. Ferris (1998) demonstra a mesma reação de Ragin (1998), quanto à análise de Salamon e Anheier (1998a), ao explorar o papel das organizações sem fins lucrativos, especificamente na sociedade norte-americana, sugerindo que se estabeleça uma agenda de pesquisa em direção ao desenvolvimento de modelos e estruturas que permitam uma melhor compreensão do processo político dessas organizações e suas relações com o governo.

Montaño (2002) discute o conceito ideológico dominante de “terceiro setor”, chamando a atenção para quatro debilidades conceituais que o termo enseja. A primeira debilidade apontada diz respeito ao fato de que ao terceiro setor é atribuída a condição de superar a dicotomia público/privado, haja vista sua promessa de desempenhar papéis do estado (primeiro setor) e do mercado (segundo setor). Nesse caso, conforme os argumentos do autor, a própria origem do terceiro setor está sujeita a questionamentos, visto que, historicamente, a existência de organizações desse tipo data da própria formação da sociedade.

A indefinição quanto ao conjunto de entidades que compõem o terceiro setor constitui-se na segunda debilidade apontada por Montaño (2002), cujo consenso parece não existir entre os diversos autores que discutem o tema (SALAMON; ANHEIER, 1998a; LA VILLE, 2000). A terceira debilidade refere-se à diversidade de interesses, estrutura e tipos de organizações e atividades que estão reunidas em um só espaço, o terceiro setor, visto que tal diversidade não permite um esclarecimento, mas, sim, uma confusão do que seja tal espaço. Finalmente, a quarta debilidade encontra-se no caráter de “não governamental”, “autogovernado” e “não lucrativo” atribuído como característica fundamental do terceiro setor. No entender do autor, todas essas características são inapropriadas para distinguir as organizações que compõe o terceiro setor, como o que ocorre, por exemplo, com as organizações que são encarregadas de atividades terceirizadas pelo Estado, sem licitação pública ou mesmo com as fundações corporativas.

Fernandes (1994) propõe uma classificação paras as iniciativas que constituem o terceiro setor: (a) formas tradicionais de auxílio mútuo (organizações assistencialistas, obras

32 Os autores defendem a definição do The Johns Hopkins Comparative Nonprofit Sector Project

argumentando que não existem razões objetivas para excluir a diversidade de organizações que compõem o Terceiro Setor (SALAMON; ANHEIER, 1998b).

de caridade, doações e atuação social de movimentos religiosos); (b) movimentos sociais (atua na resolução de problemas locais); (c) organizações não governamentais (organizações privadas, sem fins lucrativos, voltadas para o bem público, com atuação dirigida para temas como defesa de minorias sociais, meio ambiente, educação e saúde, dentre outros); e (d) sociedade civil organizada (associações de caráter voluntário, criadas sem o apego territorial e voltadas para finalidades diversas; organizações voltadas à filantropia empresarial). A classificação proposta por Fernandes (1994), embora tenha seus méritos, apenas reforça as contradições, as indefinições e as incertezas quanto à composição e conceito do que seja terceiro setor.

França Filho (2002) discute as diferenças entre terceiro setor, economia social, economia solidária e economia popular a partir da abordagem dominante do terceiro setor, a anglo-saxônica, cujos pressupostos são sustentados pela economia neoclássica e uma visão liberal da economia, considerando-o um espaço intermediário entre o Estado e o mercado. Para esse autor, assim como para La Ville (2000), a existência do terceiro setor, na tradição anglo-saxônica, é justificada pelo papel que desempenha em termos de ação pública, papel fundamental do Estado. Contrastando com essa idéia, a economia solidária e a economia social, conceitos emergidos no contexto europeu e, particularmente, francês, fundamentam-se em experiências de iniciativas da comunidade capazes de gerar formas alternativas de ação pública, não se constituindo nem em uma forma de organização capitalista, nem em uma ação do Estado.

Ao investigar as particularidades da gestão das organizações da economia solidária, Andion (2005) também questiona a denominação de terceiro setor para abarcar organizações que possuem características diferentes em sua forma institucional e que desempenham diferentes papéis. Essa autora apresenta uma classificação das organizações que atuam no campo social em três grupos, conforme sua interface com o Estado, o mercado e a sociedade civil. O primeiro grupo, denominado de economia social, abarca as organizações que têm como função a produção de bens e serviços, como, por exemplo, as cooperativas de trabalho.

No segundo grupo, denominado de financiadores, estão inseridos os institutos, fundações empresariais e políticas, dentre outras que atuam na distribuição de recursos, aproximando-se, dessa forma, do papel do Estado. E, no terceiro grupo, chamado economia solidária, estão inseridas “as organizações criadas a partir da mobilização da sociedade civil e

que não possuem fins lucrativos” (ANDION, 2005, p. 84), tais como, as organizações da economia solidária e as filantrópicas.

Essa tipologia coloca em evidência características relevantes que permitem compreender melhor o funcionamento das organizações que atuam no campo social, como as fundações e institutos vinculados a empresas. Tais organizações caracterizam-se, segundo Andion (2005, p. 84), por “não operacionalizarem diretamente programas e/ou projetos sociais” e “têm como princípio de regulação a redistribuição de recursos, públicos ou privados, visando ao bem comum”, o que leva a autora a considerar que tais organizações são reguladas por uma lógica instrumental.

Valadão Jr (2003), ao pesquisar as bases epistemológicas nas quais se sustenta o modelo de gestão das organizações geradoras de trabalho e renda, confirmou a diversidade dessas organizações, tanto quanto à imprecisão dos seus objetivos bem como sua atuação. O autor evidencia três conjuntos diferentes, dentre as organizações pesquisadas, assim caracterizados: (a) organizações em que se observam o predomínio da razão instrumental; (b) organizações em que se observam ações substantivas, embora prevaleçam os princípios da burocracia; e (c) organizações isonômicas de trabalho e renda que, conforme o autor, a epistemologia de gestão privilegia a razão substantiva, mesmo que algumas ações instrumentais são engendradas no sentido de garantir sua sobrevivência.

Nesse contexto, também destacaram-se as Organizações Não Governamentais - ONGs, cuja história no Brasil iniciou-se no início dos anos 1970 (LANDIM, 1998), mas foi a partir da década de 90 (TEIXEIRA, 2002) que se tornaram alvo de interesse de acadêmicos e da sociedade em geral. Landim (1998) discute o significado de ONG como uma categoria socialmente construída, visto o seu caráter polissêmico e adaptável às relações e dinâmicas sociais.

O termo ONG foi utilizado pela primeira vez nas Organizações das Nações Unidas, ONU, em 1946, para designar os organismos que defendiam interesses independentes e que não tinham qualquer vinculação com o governo. O nascimento das ONGs, assim como o terceiro setor, ensejou impasses e dificuldades quanto a definições e delimitações e, até hoje, o termo abrange uma variedade ampla de definições, grupos e instituições, dividindo opiniões dos autores que o discutem.

A história das ONGs no Brasil é contada por Landim (1998), cujo esforço é notável por incluir no enredo, desde a pré-história e suas trajetórias iniciais, passando pela construção social de uma forma organizacional, e culminando numa instigante questão sobre o futuro dessas organizações. Outra autora que também direciona esforços para descrever o processo histórico da formação das ONGs no Brasil, porém um pouco mais a fundo, e rompendo com a linearidade comum nas análises da atuação das ONGs, é Teixeira (2003, p.23), que chama a atenção para a dificuldade de “lidar com este campo vasto e ainda pouco explorado de experiências associativas.”

O terceiro setor constitui-se de um emaranhado de idéias, conceitos e esforços para consolidação de um campo, atraindo a atenção de governos, instituições e da sociedade em geral. A despeito desses esforços e em função da sua própria dinâmica, alguns mitos emergem e dificultam ainda mais o entendimento do que seja o terceiro setor, é o que alerta Salamon (1994, 2000), quando autor destaca quatro mitos principais: (a) a pura virtude (os seus propósitos são essencialmente públicos, responsáveis pelas camadas necessitadas e obedientes a normas democráticas); (b) a incompetência (pouco esforço para resolver os problemas cruciais que a sociedade enfrenta); (c) o voluntarismo (as únicas formas de ação são o voluntariado e a caridade privada); e (d) a imaculada conceição (a filantropia e o voluntariado são fenômenos novos em quase todo o mundo).

Esses mitos, conforme os argumentos de Salamon (1994), dão ao terceiro setor um caráter ideológico, alimentando a idéia de que as iniciativas sem fins lucrativos não se constituem em caminhos para a solução dos problemas sociais, causando sérias distorções quanto ao significado, os propósitos e a força do setor.

Assim, a falta de consenso sobre a origem, a composição e as características do terceiro setor, em geral, e das ONGs, em particular, expressa o caráter ideológico na historicidade da construção desse conceito que se distancia da realidade que serve como referência para a sociedade. A incorporação de atividades que, em princípio, seriam do Estado, também determina o caráter ideológico da construção desse espaço que denota uma nova postura frente às crises sociais e políticas que fazem parte do contexto contemporâneo.

De modo geral, o retrato que a vasta literatura sobre o terceiro setor desenha revela o caráter multifacetado, dinâmico e, sobretudo, paradoxal dessas organizações. Nos esforços empreendidos nesse campo, percebem-se eixos diferentes, embora muitos partam das mesmas

premissas, o que torna compreensível o fato de que as organizações do terceiro setor transitam entre diferentes propostas de gestão, experiências e modelos (VALADÃO JR, 2003).

Este estudo não tem o propósito de agrupar autores, nem mesmo vertentes que se aproximam ou se distanciam epistemologicamente; mas, sim, propõe-se a apresentar duas perspectivas que serão utilizadas na análise do objeto de estudo, enquanto espaço organizacional, conforme o objetivo inicialmente enunciado. A primeira perspectiva situa as organizações do terceiro setor como espaços emancipatórios, nos quais, por meio do diálogo e da ação comunicativa é possível promover a transformação social, tendo como ponto de partida as idéias defendidas por Habermas (1989). A segunda perspectiva, cuja sustentação são as formulações de Bourdieu (2006), orienta-se em direção ao poder simbólico representado pelo terceiro setor para questionar se, ao contrário da primeira perspectiva, o terceiro setor constitui-se em um campo social ou não.

3.2 O Terceiro Setor como um Espaço Emancipatório: A Construção e a Crítica