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O Terceiro Setor como um Espaço Emancipatório: A Construção e a Crítica do Discurso

3 O TERCEIRO SETOR: ESPAÇO DE TRANSFORMAÇAO SOCIAL X CAMPO DE PODER

3.2 O Terceiro Setor como um Espaço Emancipatório: A Construção e a Crítica do Discurso

O resto de utopia que consegui manter é simplesmente a idéia de que a democracia – e a disputa livre por suas melhores formas – é capaz de cortar o nó górdio dos problemas simplesmente insolúveis. Eu não pretendo afirmar que iremos ser bem-sucedidos nesse empreendimento (...) devemos ao menos tentar (...)

Jürgen Habermas

Dentre as críticas às organizações que atuam no campo social, talvez, a questão mais importante, na visão de Corrêa, Pimenta e Saraiva (2006), esteja relacionada ao fato de o Terceiro Setor ser visto pelos atores da sociedade civil como um espaço social privilegiado para o exercício da cidadania. Ainda, segundo esses autores, o Terceiro Setor seria visto como a sustentação para um “novo” modelo de articulação sociopolítica, no qual o trabalho voluntário, de um lado, e a responsabilidade social empresarial, no outro, conjugariam a “(re) construção de um espaço político” pela sociedade civil para além do Estado e do mercado. Dessa forma, estaria se concretizando uma alternativa às desigualdades sociais provocadas pelo sistema capitalista vigente.

Essa perspectiva do Terceiro Setor ensejou uma “promessa”, nas palavras de Falconer (1999, p.3), fundamentada por argumentos frágeis, de que o terceiro setor seria uma terceira via para a “renovação do espaço público, o resgate da solidariedade e da cidadania, a humanização do capitalismo e, se possível, a superação da pobreza”. Para que tal promessa se concretize, na visão do autor, vários desafios devem ser enfrentados, dentre os quais, aponta: accountability, qualidade de serviço, sustentabilidade e capacidade de articulação institucional. Vencer tais desafios significa, para o autor, capacidade de “relacionar com a sociedade civil e suas instituições, prover bens de efetivo valor à sociedade, conciliar autonomia com mobilização de recursos e de fazer frente a problemas públicos” (FALCONER, 1999, p.22).

Corrêa e Pimenta (2006, p.3), abordando de forma crítica essa “promessa”, preconizam uma construção discursiva do Terceiro Setor como um espaço, distante tanto do Estado como do mercado, que, ao acenar para uma nova possibilidade de regulação social, cristaliza uma imagem sedutora de um “compromisso possível da sociedade civil diante da diminuição da responsabilidade estatal e do espaço inquestionável do mercado” no processo de descentralização do Estado.

Essa “nova” postura, em oposição ao primeiro e segundo setores, pretende enfatizar, entre outros aspectos, os valores humanos e a independência de gestão, representando “uma mudança de orientação profunda e inédita no Brasil no que diz respeito ao papel do Estado e do Mercado” (FALCONER, 1999, p. 2).

Enfim, parece haver um consenso, tanto na literatura quanto na sociedade, de que as organizações que atuam no campo social têm uma dinâmica diferente do setor público ou privado, visto que fundamentam-se, prioritariamente, em valores humanos. Entretanto, Teodosio e Alves (2006, p.13) recorrem à Teoria Crítica para discutir os discursos que marcam a emergência do Terceiro Setor no Brasil, revelando que tais discursos incorporam não só “possibilidades de novas sociabilidades”, mas também “novos mecanismos de dominação”. Esse retrato foi constituído ao longo do tempo, revelando-se um campo complexo e cheio de contradições, provocando polêmicas e controvérsias sobre as ações e motivações que ocorrem no terceiro setor.

Mas é Montaño (2002) quem desenvolve, com maior profundidade, uma crítica ao debate dominante sobre o conceito do terceiro setor, com a finalidade precípua de descortinar

“o curso real deste fenômeno e o uso ideológico e político de tal conceito” (MONTAÑO, 2002, p. 52). Nas palavras do autor, o conceito hegemônico do terceiro setor é uma “construção ideológica” que encoberta, ao contrário do que se propõe, o não-resgate da miséria humana e a exclusão, reforçando, assim, a indigência.

As críticas de Montaño (2002) têm sustentação em uma substancial literatura de autores clássicos da política, da sociedade e da economia. O autor distingue, entre os estudos do terceiro setor, duas tendências principais: regressiva e progressista, ambas calcadas na idéia de que ao Estado não cabe o papel de interventor, mas, sim, aos atores sociais.

A primeira, a tendência regressiva, como explica Montaño (2002), constitui-se de idéias que rejeitam o Estado Providência e, portanto, defendem a diminuição do poder de intervenção do Estado e atribuem ao mercado o papel de regulador e promotor da liberdade que a tirania do Estado cerceia. Dessa forma, os indivíduos, ou a sociedade civil, devem proporcionar o seu próprio bem-estar social por meio de esforços que o Estado, por ineficiência ou comodismo, não tem competência para empreender.

A segunda, a tendência progressista, no dizer de Montaño (2002), trata-se na verdade de uma intenção de avançar contra o poder interventor do Estado, centrando-se na possibilidade de a sociedade civil organizar-se para, autonomamente, enfrentar e resolver os problemas que afetam o estado de bem-estar social. Trata-se de uma intenção, visto que não avança, mas apenas reafirma e legitima a primeira tendência. Para tecer explicações sobre o caráter mascarado dessa tendência, o autor recorre, entre outros estudos clássicos33, à idéia de “mundo da vida” de Habermas (1989) que, em oposição às idéias pós-modernas, propõe uma forma alternativa para completar o projeto da modernidade, caracterizada por Montaño (2002, p.89) como uma “nova utopia”.

Para prosseguir com a discussão de Montaño (2002), sobre a tendência progressista focalizada no trabalho de Habermas (1989), toma-se aqui, como ponto de partida, a definição de ação social, formulada por Weber (1999), que classifica as ações sociais em racional (referentes a fins ou referentes a valores); afetiva e tradicional. A ação racional, como Weber

33 Montaño (2002), ao explicar as tendências regressistas e progressistas, aprofunda-se nos trabalhos de Aléxis

de Tocqueville, Friedrich August von Hayek, Jürgen Habermas, Pierre Rosanvallon e Antonio Gramsci, lançando mão de diálogos interessantes com outros clássicos. Porém, nesse trabalho, focalizam-se apenas as idéias de Habermas (1989) para ilustrar a construção do discurso do terceiro setor como a constituição de um espaço público em que é possível, pela ação comunicativa entre os atores sociais, alcançar a emancipação da sociedade.

(1999) define, é a elaboração consciente e planejada da ação, seja com relação aos fins pretendidos, seja com relação aos valores que a orientam. A ação social afetiva é determinada pelos sentimentos; e a ação social tradicional é aquela orientada pelos costumes.

Ramos (1989, p.23) discute a razão no interior das organizações, “como o conceito básico de qualquer ciência da sociedade e das organizações”; o que determina o modo como os seres humanos decidem sobre sua vida pessoal e social. Se no sentido antigo a razão era entendida como “força ativa na psique humana que habilita o indivíduo a distinguir entre o bem e o mal, entre o conhecimento falso e o verdadeiro e, assim, a ordenar sua vida pessoal e social”, na sociedade moderna houve uma distorção, segundo o autor, e esse conceito tornou- se incompatível com a sua estrutura normativa que é, essencialmente, centrada no mercado e não no indivíduo. Ramos (1989, p. 46) descreve a racionalidade instrumental como a ação “sistemática, consciente, calculada, atenta ao imperativo de adequar condições e meios aos fins deliberadamente elegidos” distinta da racionalidade substantiva, orientada por valores intrínsecos. Esta última, nas palavras do autor, “capacita os seres humanos a compreenderem as variedades históricas da condição humana”.

Woods (2001) esboça e discute a ação racional values-intuitive como uma espécie de combinação entre os tipos de ação social da teoria weberiana. Esse tipo de ação é definido pelo autor como uma ação determinada pela consciência, composta pela racionalidade instrumental e orientada por um impulso intuitivo de valores. Para Woods (2001), a ação values-intuitive refere-se não a um impulso emocional do ator, mas a uma faculdade que surge de um senso de conhecimento e compreensão ou insight, distinta, portanto, da ação afetiva weberiana que envolve um compromisso com valores.

A perspectiva de Habermas (1989) sobre a sociedade divide-a de acordo com duas diferentes concepções de razão. A racionalidade é discutida nos trabalhos de Habermas (1987; 1986) como um distintivo entre ação instrumental e a ação comunicativa, com o propósito de superar o conceito de racionalidade instrumental, na medida em que amplia o conceito de razão de forma, a conter, em si, as possibilidades de reconciliação, que é a razão comunicativa. Se Weber (1999) mostra o quanto a operacionalidade da razão se fundamenta como instrumento da sociedade moderna em todos os seus aspectos, Habermas (1987) busca constituir uma forma de reflexão crítica sobre a instrumentalidade racional como forma de emancipação social.

Habermas (1987) propõe a concepção de esfera pública a partir de duas dimensões existentes na sociedade moderna: o mundo dos sistemas e o mundo da vida. O primeiro é conformado por uma esfera privada, representado pelo mercado e pelo Estado, construído a partir de um determinado paradigma dominante em determinada época. Constitui-se dos aspectos da realidade social em que a razão instrumental e técnica têm prevalência. Já o mundo da vida é representado por uma esfera privada (família) e por uma esfera pública, na qual os indivíduos iniciam e discutem suas interpretações. O mundo da vida é, então, representado pelas associações e instituições que garantem a reprodução cultural de uma sociedade.

Para Habermas (1986; 1987), o modelo ideal de ação comunicativa é aquele em que as pessoas interagem e, por meio da utilização da linguagem, organizam-se socialmente, buscando o consenso de uma forma livre de qualquer imposição externa ou interna. A partir de Habermas (1987), pode-se pensar as sociedades complexas como compostas por várias esferas, entre as quais, existem espaços de comunicação que criam a possibilidade, para o indivíduo, por meio da linguagem, de transformação das configurações sociais e políticas de sua vida cotidiana que lhe é apresentada no início de sua vida.

Dessa forma, o mundo da vida é o espaço no qual se constrói a ação comunicativa e, para que a interação entre os indivíduos aconteça, é necessário que alguns pressupostos iniciais que fazem parte de sua vida privada sejam negociados, o que não acontece, segundo Habermas (1987), no mundo do sistema, visto que este exclui o diálogo. Portanto, é no mundo da vida, formado por associações e organizações livres, não estatais e não econômicas (como o terceiro setor), que se cristaliza um espaço de participação e argumentação que assegura, para os diversos atores da sociedade, a busca do entendimento e do consenso compartilhado.

Conforme Serva (1997, p.22), tanto Ramos quanto Habermas tem “como ponto de partida a emancipação do ser humano face aos constrangimentos da auto-realização impostos pela sociedade contemporânea”. Para Habermas (1987), o que a ação comunicativa busca explorar é uma sociologia do mundo da relação dos sujeitos, na qual o universo subjetivo, a ação política e a racionalidade dos indivíduos se constituem em elementos estruturados de formação e revitalização da esfera pública na busca da emancipação social. O que se aproxima da teoria substantiva da vida humana associada de Ramos (1989, p.46), cujos pressupostos fundamentais “são derivados no exercício de um senso de realidade comum a todos os indivíduos, em todos os tempos e em todos os lugares”.

Montaño (2002, p.104) reage à idéia habermasiana, argumentando que se trata não de emancipação, mas sim de uma “perpétua confirmação da dominação. [...] a naturalização do sistema (a constante re-produção do mesmo)”. Para esse autor, a teoria de Habermas (1989) tem servido aos argumentos dos teóricos de tendência progressista do terceiro setor, tratando-se, de fato, de uma renúncia “à utopia de uma sociedade emancipada centrada no trabalho” (MONTAÑO, 2002, p.105), quando transfere a centralidade do trabalhador como ser social para a interação comunicativa.

O mundo da vida é o pano de fundo em que ocorre a ação comunicativa, uma interação simbolicamente mediada entre os atores, segundo Habermas (1989; 1986). As estruturas básicas do mundo da vida são as tradições culturais, os ordenamentos sociais, as normas intersubjetivamente vigentes e as estruturas de personalidade. Nessa direção, a perspectiva de Einsenberg (2000) sobre o terceiro setor coloca que esse, historicamente, tem servido para dar expressão e voz para as minorias, além de contribuir para o debate das políticas públicas e para o desenvolvimento do engajamento de cidadãos em atividades que promovam o bem comum.

As teses de Toro (2000, p.39) sobre o papel do terceiro setor em sociedades de baixa participação são ilustrativas para a idéia habermasiana de “mundo da vida”. Os argumentos do autor giram em torno da idéia de que a função do Terceiro Setor deve estar orientada para o “exercício dos direitos humanos, para cuidar e proteger a vida”, contribuindo para a construção do projeto de nação, para o fortalecimento da democracia, para a reinstitucionalização do âmbito público para aumentar a igualdade e favorecer a governabilidade e, por fim, para criar condições para tornar possível a democracia cultural.

Desse modo, a idéia de que o terceiro setor é o espaço que possibilita o enfrentamento dos problemas sociais com base na razão substantiva, e não instrumental é uma prática discursiva dos teóricos que o defendem como a via para a emancipação do ser humano na sociedade, na medida em que a esse é, supostamente, permitido agir de forma a assegurar o bem-estar da sociedade, sem a razão instrumental presente no mercado e no Estado.