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Mundo vasto mundo: autores, leitores, livreiros, leituras

3 PEREIRA DA SILVA: ENTRE A CRUZ E O MUNDO

3.2 Pereira da Silva: da Cruz ao Mundo

3.2.2 Mundo vasto mundo: autores, leitores, livreiros, leituras

Em publicação do número 2 de cinco de junho de 1922, volume I, o texto introdutório, escrito pelo escritor Graça Aranha sob o título ―Alma Brasileira‖, traz em seu conteúdo uma proposta que vai conduzir todo esse número da revista: o centenário da independência do Brasil, um espírito nacionalista. Chamou-nos a atenção, portanto, a matéria acerca de uma enquete, publicada no Rio Jornal (20/05/1922) intitulada ―Uma enquete entre os livreiros editores‖, também encomendada em virtude do centenário da independência do Brasil. A finalidade deste jornal foi apresentar, com essa enquete, o quanto os leitores brasileiros vêm se interessando pela leitura de obras patrícias, apesar do ainda alto índice de analfabetismo.

O Mundo Literário acrescenta ainda que o Rio Jornal também publicou uma matéria, nesse mesmo número, sob o título ―A grande atenção do público brasileiro pelas obras literárias é um fato‖, matéria esta não transcrita para este periódico. Dessa forma, o mensário literário transcreve, em especial, a enquete que, além de revelar, mais uma vez, o caráter de promoção da Livraria Leite Ribeiro, os discursos existentes nessa reportagem também apontam pistas acerca dos autores, leitores, livreiros e leituras que circulavam nessa época, destacando-se Pereira da Silva entre um dos autores mais lidos.

30 O referido periódico encontra-se disponível no endereço

<http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k201857h/f1.image.r=Mercure%20de%20France.langFR.swf> Acesso: 29 abr, 2015.

O Rio Jornal dirigiu a enquete referida a três Livrarias Cariocas: Livraria Leite Ribeiro, Livraria Alves e a Livraria Schettino. Sobre as livrarias, o ―Rio Jornal‖ tece alguns comentários de apresentação. A respeito da Grande Livraria Leite Ribeiro, o jornal ressalta a disponibilidade dela, apesar de estar sempre com ―intenso movimento em sua casa‖ (O Mundo Literário, 5 jun, 1922, p.263), acrescenta, ainda, que a entrevista foi feita com o ―[...] inteligente editor de O Mundo Literário [...]‖. Esses comentários revelam o grande prestígio que essa editora possuía perante o cenário carioca ou pelo menos a representação que se queria dar sobre ela. Já a Livraria Alves, considerada pelo entrevistador como uma das melhores e mais antigas casas do comércio livreiro, segundo o Rio Jornal, dedicava-se especialmente a obras de cunho didático e tinha como editor o Sr. Paulo Ernesto de Azeredo. Por fim, sobre a Livraria Schettino, o jornal informa ser esta pertencente ao Sr. Francisco Schettino que, por ser o mais moço dos editores entrevistados, é considerado aquele que mais acolhe a mocidade inteligente e debutante.

No que se refere às perguntas que compõem a enquete, elas pretendem identificar que obras e autores são os mais lidos e procurados pelo público leitor, com base na lista dos livros mais vendidos por essas editoras. Entre as perguntas em comum a todos os entrevistados estão: qual o gênero literário mais em voga? Quais os prosadores mais lidos? Entre os poetas, quais são os mais lidos? Qual foi, ultimamente, o ano mais comercial? Quais os escritores de sucesso? Quais são as próximas edições da casa? Dentre os escritores novos, quais os mais procurados? Além dessas questões, outras perguntas foram feitas, em especial à Livraria Schettino: Qual o futuro literário do Brasil após o centenário? Quais os estados do Brasil que mais leem, excetuando São Paulo e Rio de Janeiro?

Figura 28 Enquete entre os livreiros editores em O Mundo Literário (1922)

Fonte: O Mundo Literário, no 2, vol. I, 5 de junho de 1922, p.263.

Segundo consta na matéria transcrita do Rio Jornal (1922), no Brasil, vem crescendo o número de leitores, sendo São Paulo o lugar onde se lê muito mais do que no Rio de Janeiro, tendo como fundamento para isso a informação que o jornal traz acerca do grande número de edições de ―Urupês‖, de Monteiro Lobato, ―cifra até então nunca verificada na história da literatura brasileira‖ (O Mundo Literário, 5 jun 1922, p. 263). Sobre essa constatação acerca do aumento de leitores no Brasil, o ano de 1921 é considerado o marco de vendagem, segundo a Livraria Leite Ribeiro. O editor da Livraria Leite Ribeiro, em resposta à pergunta ―Qual foi

ultimamente o ano mais comercial?‖, acredita que dois fatores são os responsáveis pelo crescente avanço da divulgação e vendagem de obras de autores brasileiros:

[...] o acolhimento que os autores literários hoje conseguem obter dos editores, franco, muito franco, em face da avareza com que outrora eram recebidos e a extensão e multiplicidade dos processos de propaganda dos livros aparecidos, sobretudo pelo interior do país e, se quiserem ser justos, terão de reconhecer que muito e muito devem à nossa casa esses dois fatores (O Mundo Literário, no 2, vol. I, 5 de junho de 1922, p.264).

Acentua, nesse sentido, que o papel da imprensa, por ato patriótico e amor às letras pátrias, é contribuir para a divulgação do que está sendo produzido no Brasil, em especial no interior do país, o que de fato podemos perceber nas páginas da revista. A resposta do editor da Livraria Leite Ribeiro também revela, mais uma vez, o seu caráter de autopromoção, ao se colocar como responsável pela multiplicidade de livros aparecidos em diversos lugares do Brasil. Ao contrário, a esse respeito, o editor da Livraria Alves, apesar de não se julgar tão habilitado para responder ao questionário uma vez que publica basicamente obras didáticas e poucas obras literárias, acrescenta que a maior dificuldade para um crescente mais acelerado da publicação e qualidade de impressão de obras nacionais é o preço elevado do papel e consequente encarecimento dos livros:

Em 1817, esses direitos eram de 10 réis por quilo, em 1918, 200 réis, e em 1922 estamos a pagar 300 réis. Um aumento de 3.000%, o maior que se tem verificado. E feita a conta do ágio do ouro e mais despesas na Alfândega, teremos 022 em 1917; 360 a 400 em 1918 e 1919; 500 a 650 em 1920 e 1921 e 900 em 1922, por quilo de papel importado para a impressão de um romance, devendo-se notar que o livro estrangeiro paga a exatamente a metade desses direitos. Se tivéssemos a tarifa de 1917 ainda em vigor, livro nacional poderia ser vendido 30 a 40% mais barato e a sua divulgação seria muito mais fácil (O Mundo Literário, no 2, vol. I, 5 de junho de 1922, p.266).

Tal depoimento reafirma a importância e a real necessidade da circulação de revistas literárias: dar visibilidade a obras e autores, formar e manter um público leitor, além de inserir-se tanto no mercado da indústria cultural quanto no campo do erudito.

Outro aspecto da enquete diz respeito aos prosadores e poetas considerados por esses editores como os mais lidos e procurados pelo público. Primeiramente, quanto ao gênero mais lido e procurado estão obras emotivas e de humor crítico, em especial as de humor erótico, segundo respostas da Livraria Leite Ribeiro. No entanto, ao mesmo tempo em que esse gênero é o mais procurado, sofre, simultaneamente, bastante censura. Essa censura, porém, é vista

pelo editor como um puritanismo inútil, uma vez que, mesmo a crítica execrando tais leituras, quem escolhe o que lê e quando vai ler é o próprio leitor. Sobre essa crítica puritana, o editor da Leite Ribeiro afirma que:

- Alguns críticos puritanos, raros nesta manifestação, não olham com simpatias os trabalhos de nua verdade ou incandescente humorismo, como soem ser os livros de Humberto de Campos, Théo-Filho, Benjamim Costallatt, etc., (aliás os livros de mais sucesso de nossa casa) mas, francamente, não lhes assiste razão, pois o mal – se mal existe – não está no seu aparecimento e sim em não dependerem do seu contrato aqueles ou aquelas que tais produções devem conhecer[...]‖ (O Mundo Literário, 5 junho, 1922, p.264).

As palavras do editor da Leite Ribeiro revelam uma consciência do que discutimos ao longo do nosso segundo capítulo: o papel da crítica na formação de um campo literário. No campo de produção erudita, recrutada de seu próprio corpo de produtores, torna-se um instrumento singular capaz de fornecer não a apropriação que a obra exige, mas uma ―[...] interpretação criativa para uso dos criadores (grifos do autor)‖ (BOURDIEU, 2009, p.107). O sucesso de vendagem, a independência que essas obras possuíam da aprovação ou não da crítica, seria, portanto, o seu maior defeito, faltando-lhes um instrumento legitimador capaz de manter a produção literária como um bem simbólico duradouro. Assim ocorreu com o diretor de O Mundo Literário, Théo-Filho e o escritor Benjamim Costallatt, foram esquecidos, nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda (1982):

[...] Théo-Filho fazia uns romances que obtinham seu sucesso popular na época. Não era um romancista de classe, mas fazia seu sucesso pela década de 20. Fazia romances para vender e vendia muito. Não sei se algum dia cheguei a ler alguma coisa dele, mas havia quem o admirasse. Depois ninguém mais ouviu falar no seu nome. [...] Era extremamente prolífico e as pessoas graves acusavam-no de explorar temas escabrosos. Talvez sem razão. Dois romancistas populares que não tinham muita cotação no meio intelectual, mas vendiam muito, eram justamente o Théo-Filho e Benjamim Costallat (HOLANDA, 1982, p.174).

Por ser recorde de vendas, a livraria não se omite a publicar tais obras humoristas, apesar de ter também censurado outras. Perguntado acerca dos novos escritores mais procurados, cita o Sr. Enéas Ferraz, aplaudido pela crítica pelo seu último romance, mas que a Editora Leite Ribeiro, apesar de conhecer e admirar o escritor, recusou publicar o seu primeiro romance, por achá-lo escandaloso. Os critérios de aceitação ou não de uma obra

literária, portanto, passam muito mais por motivos de ordem política e subjetiva que necessariamente estética. O que fez a crítica execrar as obras de Théo-Filho e recomendar as obras de Enéas Ferraz? E a Leite Ribeiro? O que de fato é escandaloso e amoral? O que é uma obra de valor literário merecedora de divulgação e aplausos? A aceitação do público leitor? A consagração pela crítica e a academia? São questões que só à luz dos discursos da época podemos compreender.

No que se refere aos poetas, as Livrarias Leite Ribeiro e Schettino colocam Pereira da Silva entre escritores com livros publicados mais procurados ao lado de poetas hoje consagrados pela literatura nacional como Alberto de Oliveira, Raymundo Correia, Olavo Bilac, poetas parnasianos, e Ronald de Carvalho, inserido pela historiografia literária atual como modernista. A Livraria Alves, que publica especificamente obras didáticas e poucas obras literárias, apontou o poeta Olavo Bilac como recordista de vendagens. Interessante destacar que na lista de poetas, indicada pelas livrarias Leite Ribeiro e Schettino, encontram- se muito mais nomes de simbolistas e parnasianos que modernistas, confirmando as palavras de José Geraldo Vieira (1982) acerca das influências dos movimentos de vanguarda europeia no Rio de Janeiro, em que ele constata que no cenário carioca praticamente ninguém conhecia esses movimentos de vanguarda, à exceção de Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e de Ronald de Carvalho, este último

[...] por um fator todo especial: é que o Montalvor, da Editora que tem publicado todo o Fernando Pessoa e Sá Carneiro, pertencia à Diplomacia Portuguesa e estava no Rio de Janeiro. Como Ronald era do Itamarati, dava- se com ele. De maneira que Ronald conhecia esses movimentos havidos em Portugal, em 1917, um ano depois de Dada. Aqui só veio a aparecer em 1922, movimento aliás mais de São Paulo, de Minas e do Nordeste, do que do Rio (VIEIRA 1982, apud CHAVES, 1982, p.172).

Dominava, assim, aqui no Brasil, uma poesia enraizada nas correntes simbolistas e, em especial, parnasianas. A estética em vigor na Europa, mesmo com a semana de 1922, não era uma febre nacional, muito menos conhecida unanimemente, tendo em vista os depoimentos aqui transcritos, além da lista de autores mais lidos com base nas vendas das livrarias entrevistadas pelo periódico Rio Jornal, publicado por O Mundo Literário, em 1922. Nesta perspectiva, o escritor Pereira da Silva é inserido na lista dos poetas mais vendidos tanto pela Leite Ribeiro quanto pela Schettino, um recurso retórico próprio dos jornais, a fim de dar maior visibilidade aos seus pares. Considerado um autor simbolista, pouco expressivo para alguns, muito popular para outros, um poeta de personalidade sombria e pacata, respeitado

por seus pares, sem envolvimento em grandes disputas nem marginalizado pela crítica de seu tempo, alia-se a figuras populares como Théo-Filho, ao mesmo tempo marginalizado pela crítica de seu tempo; dirige um jornal que possuiu um propósito bem definido por 4 anos: uma autopromoção, isto é, uma editora que deseja consagrar-se no mundo cultural, não apenas possuir sucesso econômico. No entanto, Pereira da Silva, tem o mesmo destino de seus companheiros: o anonimato.

4 AS INSTÂNCIAS DE CONSAGRAÇÃO: MANUTENÇÃO E APAGAMENTO DO