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Mutações nas organizações: de centradas no produto para centradas no cliente

2. REVISÃO DA LITERATURA

2.3 Servitização e suas implicações organizacionais

2.3.2 Mutações nas organizações: de centradas no produto para centradas no cliente

Os entendimentos sobre o que é “serviço” e como trabalhar sob a lógica de serviço, vistos há pouco, remetem ao seguinte questionamento: em que organizações essas interações prestador-cliente ocorrem? Historicamente, estudos mostram que os modelos das empresas de produção industrial, que carregam consigo sua lógica inerente, têm sido aplicados às empresas do setor de serviços (CHASE; GARVIN, 1989; VOSS, 1992). O desafio, portanto, é a “construção de um modelo de produção alternativo ao taylorista clássico que dê conta da noção de serviço (sentido de relação de serviço), que seja tanto internamente consistente quanto progressista, e adequado do ponto de vista social” (SALERNO, 2001, p. 21).

De maneira complementar, como exposto na subseção 2.2.1, Zarifian (2001a) apresenta o conceito de produção industrial de serviço, que é o processo que transforma as condições de existência de um destinatário. A indústria realiza essa transformação indiretamente: pelos bens tangíveis que fornece, quando eles conseguem “prestar um serviço”. Já o setor de serviços mantém uma relação mais direta com essa transformação, uma vez que dela se encarrega. E a produção industrial de um bem ou serviço é composta de três grandes universos:

a) Da concepção das novas tecnologias e dos novos produtos ou serviços;

b) Dos sistemas técnicos que asseguram a produção material desses produtos ou serviços (as fábricas na indústria, as unidades técnicas nos serviços); e

c) Da relação direta com os clientes ou usuários, que permite estruturar o contato com estes últimos (as agências comerciais e as redes comerciais).

Fig. 11: Os três universos da produção. Fonte: Zarifian (2001a). Sistema

Técnico Desenvolvimento Concepção e

Contato com o Público

Embora esses universos permaneçam distintos, a eficiência da organização depende da qualidade da interação e cooperação entre eles. Afinal, deve haver algum grau de complementaridade entre os seus objetivos, para que trabalhem e se organizem em harmonia. Comparando com o Modelo Estrela de Galbraith (1995), pode-se dizer que Zarifian (2001a) se concentra na dimensão organizacional Estrutura: ele a olhará com um “zoom”, usando para isso a “lupa” da produção de serviço.

Em um trabalho prévio, Veltz e Zarifian (1993) usam o termo “modelo” num sentido amplo, próximo ao conceito de paradigma, utilizado por Kuhn (KUHN, 1977 apud VELTZ; ZARIFIAN, 1993) na teoria da ciência. Ainda que um modelo seja um produto e reproduzido pelos atores sociais, ele também se impõe aos mesmos atores como um quadro de referência. A idéia de modelo de organização (da produção) repousa sobre a tese de que um modelo é aquele que articula as dimensões técnicas, sociais e econômicas de um universo de produção, e isso dentro da própria construção das normas e regras que definem essas dimensões. A técnica é construída com as formas sociais. Mas a economia não é mais a vantagem natural e universal sobre as outras dimensões.

Assim, para Veltz e Zarifian (1993) o modelo da organização é fundamentalmente o que reúne as dimensões sociais e as dimensões cognitivas do universo da produção. Ao curso de uma longa história, os engenheiros, os organizadores, os gestores, gastaram considerável energia intelectual para enfrentar os problemas práticos desde sempre abertos ligados à eficiência, para elaborar os esquemas típicos de compreensão e resolução desses problemas, que terminam por se constituir no referencial sobre o assunto, em uma dada época e contexto.

Paralelamente, Galbraith dedica um artigo e livro sobre essa transição de modelos organizacionais. Em seu artigo Organizing to deliver solutions (GALBRAITH, 2002) e no livro Designing the customer-centric organization: A guide to strategy, structure and process (GALBRAITH, 2005), o renomado pesquisador detalha, sob uma perspectiva organizacional, justamente o que fazer para conseguir prestar o “serviço” descrito por Zarifian (2001a), ao pôr no centro das atenções o cliente e sua necessidade por soluções. Ecoando Neu e Brown (2005), Galbraith (2005) diz que as organizações que se concentram na satisfação das necessidades de seus clientes não só experimentarão crescimento em sua carteira de clientes, mas também melhor desempenho financeiro. Seus estudos provêem informações e conceitos para realizar uma implantação centrada no cliente, incluindo o cálculo da lucratividade por cliente e o desenvolvimento de uma segmentação de clientes baseada no comportamento, para gerenciar melhor a carteira.

Para Galbraith (2005), uma abordagem para crescimento centrada no cliente varia em relação à tradicional, centrada no produto. Algumas das diferenças mais importantes estão apresentadas na tabela 8 a seguir. Galbraith (2005) afirma que as empresas precisam criar um modelo organizacional “front/back”, onde a frente é focalizada nos segmentos de mercado, e a retaguarda em produtos e tecnologias.

Tab. 8 – Companhias centradas no produto vs. centradas no cliente. Adaptado de Galbraith (2005).

Dimensão Conceito Centrada no produto Centrada no cliente Meta Melhor produto para o cliente Melhor solução para o cliente Principal

oferecimento Novos produtos Pacotes personalizados de produtos, serviços, suporte, treinamento, consultoria Rota para a

criação de valor Produtos de ponta, características úteis, novas aplicações

Customização para obter a melhor solução total

Cliente mais

importante Cliente mais avançado Cliente mais lucrativo e leal Base para gerar

prioridades Portfolio de produtos Portfolio de clientes — lucratividade por cliente Estratégia

Precificação Preços de mercado Preços de acordo com o valor e risco Estrutura Conceito

organizacional Centros de lucro de produtos, revisões de produtos, equipes de produtos

Segmentos de clientes, equipes para clientes, P&Ls por cliente

Processos Processo mais

importante Desenvolvimento de novos produtos Clientes: gestão do relacionamento e desenvolvimento de soluções Recompensas Medidas -Quant de novos produtos

-% da receita com produtos de menos de 2 anos -“Market share”

-“Customer share” dos clientes mais valiosos

-Satisfação do cliente -Valor vitalício de um cliente -Retenção de cliente Processo mental Pensamento divergente:

quantos possíveis usos para o produto?

Pensamento convergente: que

combinação de produtos é a melhor para o cliente?

Abordagem às

pessoas Poder para pessoas que criam produtos: -Maior recompensa é trabalhar no próximo produto mais desafiador

-Gerenciar pessoas criativas em desafios e prazos fatais

Poder para pessoas com profundo conhecimento do negócio do cliente: -Maiores recompensas para gerentes de relacionamento que salvam o negócio do cliente

Viés da equipe de

vendas Para o lado do vendedor numa transação Para o lado do comprador numa transação Pessoas

Cultura Aberta a novas idéias de

produtos, experimentação Cultura da gestão do relacionamento: busca por mais necessidades do cliente a satisfazer

Com uma mindset centrada no produto tão imbuída nas empresas, não é surpresa que tantas achem tão difícil realizar a mudança para se tornarem centradas no cliente. Em alinhamento com Zarifian (2001a), Galbraith (2005) afirma também que, para criar a melhor solução para um cliente, é preciso se concentrar na identificação e satisfação de suas necessidades, ao invés da simples venda de seus produtos. E isso começa por

preparar a organização, de modo a capacitá-la a entender quem são os clientes, e se relacionar com eles a partir desse novo entendimento.

Somente então a empresa conseguirá entregar uma efetiva solução ao cliente (GALBRAITH, 2005). Como mencionado previamente, na medida em que for desenvolvido o relacionamento com o cliente, mais ele tenderá a comprar as soluções oferecidas, o que resultará em maiores receitas. Ademais, a organização se beneficiará de menores custos de aquisição, dado que seu marketing se concentrará nos potenciais clientes mais inclinados a responder positivamente. Por fim, a empresa terá um cliente de relacionamento duradouro, pois o objetivo agora é satisfazer suas necessidades, em vez de simplesmente lhe vender um produto.

Ressalte-se que as características da tabela 8 são ideais, e que na realidade as empresas se situam numa zona que abriga situações intermediárias. Há contrastes similares em torno de processos, medidas de desempenho, políticas de recursos humanos e mindsets gerenciais. Talvez a característica mais diferente é que uma unidade centrada no cliente está do lado do cliente numa transação (ver primeiro contraste, na dimensão Estratégia). Galbraith (2005) dá um exemplo extremo, dizendo que um vendedor de servidores da IBM está do lado do vendedor: o negócio product-centric de servidores. Entretanto, o pessoal de terceirização e consultoria da IBM irá sugerir um servidor HP se isso fizer mais sentido para o cliente. A fim de manter credibilidade perante o cliente, o pessoal do negócio customer-centric Serviços Globais não deve favorecer os equipamentos da própria IBM. Eles devem estar do lado do cliente, nessa transação comprador-vendedor.

Por certo, não é comum se deparar com esses extremos na tensão entre unidades de negócio product-centric e customer-centric. Este é apenas um exemplo teórico, e que encontra paralelo na tensão lógica industrial x lógica de serviço, de Zarifian (2001a).