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Não se conhece sociedade humana sem mito, e é duvidoso que pudesse alguma vez existir (FINLEY, 1972, p.22).

Iniciamos esse capítulo com uma afirmação de Moses Finley para destacar a valorização que a historiografia atribuiu ao mito no estudo das sociedades. Neste capítulo nos propomos abordar sua significação na literatura e história greco-romana para mergulhar no universo do espaço literário da Eneida, principalmente nas memórias de Eneias sobre sua experiência como exilado descrita no Livro III dessa epopeia. Para tratar dessas questões nos apoiaremos nos autores antigos, Aristóteles e Cícero, tendo também como referencial as análises historiográficas modernas, que nos deram a dimensão do alcance do

mythos, da mimesis e da memória como formulações teóricas. Jean Pierre Vernant (2006,

p.2-11) ao analisar a concepção de mito para os gregos procura desvinculá-la do pensamento cristão, pois acredita que cristianizar o politeísmo é o mesmo que desqualificá- lo, visto que essas duas religiões são totalmente diferentes. “As religiões antigas não são nem menos ricas espiritualmente, nem menos complexas e organizadas intelectualmente do que as de hoje. Elas são outras” (VERNANT, 2006, p.3). No mundo grego mito e mitologia não eram concebidos como narrativas absurdas, inferiores ou como pura ficção. Pelo

contrário o mito era considerado relato, fonte de pensamento, preceitos morais, princípios linguísticos e servia de inspiração para o aparato religioso, representado nas imagens de vasos e estátuas, por exemplo, que traduzem as suas regras rituais. Mito é entendido, então, como sinônimo de tradição, um fator social.

Vernant (2009, p.230) concebe o mythos como relato, distanciando-o da noção de ficção empregada pela historiografia moderna. Em uma sociedade cuja religião não possuía um conjunto de dogmas descritos em um livro, um corpo sacerdotal ou uma igreja, por exemplo, a difusão das tradições se dava através da oralidade e da escrita. Essa tarefa ficou a cargo das pessoas que se dedicavam a escrever textos como a poesia, a lírica, a tragédia e a comédia, por meio do quais as sociedades da Antiguidade se reconheciam. Ou seja, todas as formas de escrita associada aos poetas. “A teologia antiga também é, assim, essencialmente uma poesia, o discurso sobre seus deuses também é uma narrativa mítica” (VERNANT, 2009, p.230). Foi através desses relatos que conhecemos a história da religião grega, assim como a romana. Marcel Detiene (1992, p.91-93) defende a ideia de que o

mythos geralmente aparecia vinculado à poesia épica, logo:

A narrativa épica não faz mais do que falar e tornar a falar sobre os valores e as práticas essenciais de uma sociedade que abandona à sua memória única a tarefa de cantá-los para todos, com a ajuda dos ritmos e das técnicas formulares confiados apenas àqueles que sabem cultivar suas riquezas (DETIENE, 1992, p.57).

A épica pode ser encarada como um espelho de uma época, um tipo de literatura que traduz as tradições de um dado momento, de modo que seu estudo pode nos levar a compreensão de traços sociais, religiosos e políticos de uma determinada sociedade. A epopeia pode então ser concebida como um conjunto de metáforas dos acontecimentos de um determinado momento histórico.

Ao nos voltarmos para a questão do mythos no mundo grego, podemos destacar como esse conceito apareceu na obra daquele que ficou conhecido como o “pai da história”, Heródoto. Ele se dedicou a realizar uma análise sobre o conflito envolvendo helenos e bárbaros, a partir do que ouviu e viu. Nas suas Histórias o termo mythos aparece em duas ocasiões. A primeira vez quando discute sobre as cheias do Nilo (Histórias, II, 20-23), buscando nos próprios egípcios as respostas sobre esse fenômeno, porém não as encontrando recorre aos gregos, os quais lhe fornecem três explicações que não o

convencem: uma associada aos ventos estivais; a outra às inundações vindas do oceano; e ao derretimento da neve. Essas versões pareciam enganosas aos olhos de Heródoto por recorrem a uma fábula (mythos) e por esse motivo não mereciam ser discutidas com profundidade.

Heródoto descreveu os egípcios como os homens mais escrupulosos religiosamente, caracterizados essencialmente pelo ideal de pureza, tanto dos sacerdotes, como também dos cidadãos comuns (Histórias, II, 37-38). Ao se referir pela segunda vez ao termo ao mythos o apresenta novamente como sinônimo de fábula. Trata-se de um episódio contado pelos gregos, segundo o qual Héracles haveria participado de uma cerimônia de sacrifício e pouco antes de sua concretização teria matado todos os participantes. Heródoto acreditava que essa história não passava de uma “fábula”, um mythos, uma injúria cometida pelos gregos, que demonstravam com essa história não saberem muita coisa sobre a cultura egípcia, visto que nessa sociedade só era permitido o sacrifício de bois, bezerros e porcos (Histórias, II, 45). Como podemos perceber o mythos estava associado ao que não podia ser comprovado, por esse motivo o descrédito do historiador grego quanto a essas explicações, que pode ser entendido como fruto da sua metodologia historiográfica, pautada na investigação e crítica dos fatos.

Ao analisar o episódio descrito acima (Histórias, II, 45), Finley (1972, p.20-21) afirma que apesar de Heródoto contestar a veracidade dos fatos contados pelos gregos sobre a estadia de Héracles no Egito, em nenhum momento ele negou a existência desse personagem. Pelo contrário, buscou separar a verdade da lenda e chegou à conclusão de que haviam existido dois personagens com o mesmo nome, um deus egípcio e um herói. Da mesma forma Platão defendeu a história de Homero sobre a Guerra de Troia, embora criticasse a filosofia, as concepções de justiça, dos deuses, de bem e mal presentes na

Ilíada.

Finley (1972, p.21) defende a teoria de que o fato de Heródoto considerar falsos os testemunhos dos gregos era fruto de um fenômeno de reinvenção dos mitos. Tanto a existência de Héracles, como da Guerra de Troia não foram contestadas, mas reinventadas e relidas pelos poetas. Uma das explicações para a diversificação do mito no mundo grego se daria por essa civilização em nenhum momento da sua história ter se constituído como uma nação, com um território nacional único chamado Grécia. Muito pelo contrário, na idade

arcaica, por volta do século VIII a. C., as colônias gregas se encontravam distribuídas entre os territórios da atual Grécia, do litoral do Mar Negro, na atual Turquia, na Itália e no sul da Sicília oriental, na costa do Norte da África e no litoral mediterrâneo da França, divididas em comunidades de culturas diversificadas. Além disso, no caso de outros povos, como os egípcios, por exemplo, a variação dos mythos dependia de lugar para lugar.

Nesse cenário a construção de uma mitologia nacional uniforme era impossível, pois conforme uma nova tribo surgia ou se desencadeavam mudanças políticas e sociais ocorriam alterações também nos mitos, na genealogia dos heróis, nos desfechos das guerras ou na relação entre homens e deuses. Com isso, os mitos possuíam uma roupagem diferente em cada pequena parte do território ocupado pelos gregos. Essa situação perdurou até o momento em que Heródoto se dedicou ao estudo da mitologia, tornando necessária a remodelagem das narrativas, o exame de sua coerência de modo a facilitar a sua conservação enquanto testemunhos históricos. A elaboração de uma mitologia grega era uma atividade de extrema importância nessa sociedade, por esse motivo ela não pode ser reduzida ao mero devaneio de um poeta ou de um aedo. Era uma atividade solene e dentro desse contexto Heródoto se sobressaiu, não só como um poeta, mas também como um contador de lendas e mitos31.

Partindo da mesma premissa de Finley, Hartog (2003, p.37-38) afirma que Heródoto igualava o logos (narrativa) ao mythos como uma forma de classificar este como algo duvidoso, uma fábula, que geralmente se encontrava associada à poesia. Por outro lado, Detiene (1992, p.91-94) defende a ideia de que esse termo abrangia uma multiplicidade de significados, negando a existência de uma concepção de mythos bem definida na idade arcaica grega. Acreditamos que o mythos era concebido como uma narrativa que não podia ser comprovada, como veremos nas próximas linhas. Sua distinção do termo logos não se apresenta como o alvo de nossa pesquisa, portanto não nos dedicaremos a aprofundar essa discussão.

Nos voltamos agora para a análise de um importante autor da Antiguidade que tratou não apenas do mythos, mas também da estruturação da poesia, Aristóteles. Em sua

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Sobre as contradições dos mitos gregos devido a falta de unidade territorial dos gregos (FINLEY, 1972, p.21-24).

Poética (Poética, 1455b – 5-25), ele tinha como objetivo discutir sobre a “arte poética”32, as suas especificidades e o modo como deviam se estruturar. O enredo nessa obra aparece representado pelo termo mythos, definido como uma trama, a história principal ao redor da qual os episódios, acontecimentos de pequena duração, girarão em torno e servirão de complemento. Tendo a Odisséia como exemplo ele afirma que seu enredo seria a história de um homem que passa muitos anos como errante nos quais luta várias batalhas, perseguido por Poseidon. Como é ao redor desse fato que a história se desenvolverá o poeta o teria esboçado antes dos acontecimentos que ocorreram analogamente.

O costume de compor enredos teria nascido na Sicília e depois se espalhado por Atenas e outras localidades (Poética, 1449b – 5). Cabia ao poeta criar enredos simples, sem pontas soltas, nos quais o caráter maravilhoso deveria figurar, pois era mais válida a narrativa do impossível que convencesse que do possível que não convencesse33. Nesse quadro, as artes, como a poesia e a pintura, por exemplo, eram consideradas imitações,

mimesis, das ações humanas, que se diferenciavam por fazerem isso de meios, objetos e

modos diferentes (Poética, 1447a – 10-15).

Na contemporaneidade, Paul Ricoeur (1994, p. 88-116) inspirado na Poética de Aristóteles se propôs a discutir sobre a concepção de mythos e mimesis. Este ultimo conceito foi concebido como um processo tríplice. Em linhas gerais essas fases seriam: a

mimese I, entendida como o mundo prático, ainda não explorado pela atividade poética, ou

seja, aquilo que ainda não foi narrado; a mimesis II, composta pelo mundo prático da

mimese I impregnado de uma pré-narratividade que serve de referência para o ato de

construção poética ou configuração; e a mimese III, a atividade de leitura, um ato de reconfiguração do texto, pois o leitor a partir das suas próprias experiências entende o texto de uma determinada maneira. Assim, há um percurso que parte do mundo vivido, o ainda não narrado (pré-narrado), passa pela configuração da trama pelo poeta e se encerra no mundo da vida do leitor.

Segundo Ricoeur (1994, p. 58-60) é fundamental que tenhamos em mente que

mimese e mythos são processos ou operações, artes de produzir ou representar, por esse

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Termo utilizado pelo próprio Aristóteles para tratar do ato de produzir poesia, mais especificamente a tragédia e a epopéia, discutidas ao longo do livro: (1447a 1); (1453a 20); (1456b 15); (1460b 15); (1460b 20); (1460b 30).

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Os detalhes sobre a estruturação do enredo se encontram nas seguintes passagens: (Poética 1452b 30); (1453a 10); (1453b 5); (1461b 10).

motivo estão em constante movimento. Esse teórico mantém uma linha tênue entre a definição desses dois termos e isso se dá por defender que na Poética predomina a ideia de

mimese como produção de representações. Apesar disso, não podemos conceituar a mimese

como uma simples cópia da realidade, pois no ato de imitar existe uma atividade produtora da representação e é isso que a torna tão complexa. Sendo assim há um entrelaçamento entre a concepção de mythos e mimese que determina a sua interdependência. Assim:

Está excluída de início, por essa equivalência, toda interpretação da mimese de Aristóteles em termos de cópia, de réplica do idêntico. A imitação ou a representação é uma atividade mimética enquanto produz algo, a saber, precisamente a disposição dos fatos pela tessitura da intriga. [...] a mimese de Aristóteles tem só um espaço de desenvolvimento: o fazer humano, as artes de composição. (RICOEUR, 1994, p.60)

A tessitura da trama, mythos e a atividade mimética são compreendidas como empreendimentos humanos, como um fazer que mesmo quando imita produz algo. Por esse motivo os conceitos são interdependentes. A mimese pode ser compreendida como uma atividade produtora, pois ao compor uma história estamos automaticamente criando algo, mesmo se ele for baseado em um evento já ocorrido. Apesar disso, Ricoeur (1994, p.76) atenta para fato de que se nos detivermos a definir a mimese como imitação devemos falar de imitação criadora e se a classificarmos como uma representação devemos entendê-la como uma brecha à ficção. Partindo desse pressuposto esse teórico acredita que o poeta não inventa coisas, mas “quase-coisas”, pois ele se baseia em algo para compor sua obra e esse processo é uma ação criadora baseada no mundo real. A mimese proporciona uma ligação entre o mundo ainda não figurado na intriga e a construção poética nele inspirada. Esse duplo pertencimento faz com que a mimese possua uma função de ruptura, visto que ela não é uma simples cópia do real, mas uma ligação em razão de sua função de “transposição metafórica” do campo prático para o mythos. O momento final dessa relação não se esgota na tessitura da intriga, mas no leitor considerado o ponto de chegada34.

A relação mimese/mythos designa a tessitura da intriga, a disposição dos fatos e é isso que interessa a Ricouer ao analisar o processo de criação de um texto literário, ele procura estudar o processo de imitação ou representação de uma ação. Esse processo recria imagens do mundo fora do texto e por esse motivo o leitor se reconhece dentro do mundo

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Sobre a função de mediação da mimesis entre o texto e o leitor, ver sobre a fase III desse processo em Ricoeur (1994, p. 76-84).

do texto. “Se é verdade que a intriga é uma imitação da ação é exigida uma competência preliminar: a capacidade de identificar a ação em geral por seus traços estruturais” (RICOEUR, 1994, p.88).

Ao criar uma intriga o poeta cria também imagens metamorfoseadas de uma referência do mundo real e para compreendê-la é necessário entender os episódios sucessivos que conduziram ao seu desfecho, porém mais que previsível deve ser aceitável, deve fazer parte de um conjunto de eventos que se desencadeiam:

Longe de só produzir imagens enfraquecidas da realidade, [...] as obras de ficção só pintam a realidade aumentando-a com todos os significados que elas próprias devem às suas virtudes de abreviações, de saturação e de culminação, espantosamente ilustradas pela tessitura da intriga (RICOEUR, 1994, p.123).

Partindo dessa ideia poderíamos afirmar que se a atividade poética produz metáforas da realidade, esses relatos funcionariam como uma espécie de memória escrita de eventos que não se deseja esquecer, como as guerras descritas nas epopeias ou mesmo os feitos dos heróis, presentes na literatura greco-romana. Ao nos voltarmos para a Eneida podemos afirmar que ela se apresenta como uma narrativa sobre uma dada memória, que se pretendia tornar-se coletiva. Ela descreve a história da gênese do povo romano e do império que se consolidava no século I a. C., uma memória que ultrapassava as páginas do livro de Virgílio e que fora transformada em monumentos arquitetônicos disponíveis à visão dos cidadãos romanos. Esses dispositivos mnemônicos visavam à consolidação de uma memória comum para essa sociedade. Diante do fato da Eneida se tratar de uma obra na qual a carga memorativa está implícita intimamente, em cada uma de suas linhas, se mostra bastante relevante nos debruçarmos sobre a questão da memória. É importante levarmos em consideração dois pontos: o Livro III da epopeia diz respeito ao relato das memórias de Eneias no exílio; e a obra como um todo pode ser encarada como um conjunto de imagens que deveriam ser disseminadas entre indivíduos de um mesmo grupo.

Ricoeur (2007, p.73) estabelece uma diferenciação entre memoração e rememoração. A primeira está relacionada às maneiras de apreender saberes e habilidades, de tal modo que elas permaneçam fixadas na memória do indivíduo a fim de esse possa acessar esses conhecimentos sem fazer esforço, beirando a espontaneidade. “O processo de

memorização é especificado pelo caráter construído das maneiras de aprender visando a uma efetuação fácil, forma privilegiada da memória feliz” (RICOEUR, 2007, p.73). Já a segunda, corresponde ao retorno à consciência de um determinado acontecimento ocorrido em um tempo passado àquele que o individuo afirma ter percebido ou sentido. “A marca temporal do antes constitui, assim, o traço distintivo da recordação, sob a dupla forma da evocação simples e do reconhecimento que conclui o processo de recordação” (RICOEUR, 2007, p.73).

Essa perspectiva (RICOEUR, 2007, p.74-76) é desenvolvida a partir do olhar sobre a ars memoriae, disciplina que visa à execução de exercícios que permitem ao aluno se tornar seu próprio mestre. Esse modelo clássico de educação é pautado na repetição de lições decoradas. Ricouer desenvolve sua teoria, a partir do mythos considerado o fundador da mnemotécnica, a arte da memória, que geralmente é atribuído aos romanos por Cícero ter se referido a ele, no entanto, sua origem se encontra na Grécia. A história é sobre o poeta Simônides, que sobrevive a um desmoronamento, durante um banquete, no qual fora convocado para cantar as vitórias de um atleta famoso e quando chamado para fora da sala onde a festa acontecia, pelos semideuses Castor e Pólux, o teto desaba e todos morrem. Na versão latina foi acrescentada uma conclusão a esse episódio, provavelmente com a finalidade de exaltar a sua cultura da eloquência. Após a catástrofe, Simônides, graças a suas técnicas de memorização, é capaz de identificar os corpos dos indivíduos que estavam presentes no jantar do atleta, por lembrar-se do local que cada um deles ocupava. Essa técnica consistia em associar imagens a lugares, de maneira sistematizada.

Ao se debruçar sobre essa história Cícero (De Oratore, II, 351-353) afirma que a mnemotécnica seria o processo pelo qual a mente é transformada em um espaço de armazenamento de memórias ordenadamente, que serviriam como representação das coisas, dos acontecimentos.

Assim aqueles que exercitam esta parte da sua natureza devem pegar lugares e forjar, em sua mente, aquilo que querem guardar na memória e colocá-lo em tais lugares; assim ocorrerá que a ordem dos lugares conservará a ordem das coisas, enquanto a representação das coisas marcará as próprias coisas e usaremos os lugares como a cerca, os simulacros, como as letras (De Oratore, II, 354).

Segundo Cícero (De Oratore, II, 358), o grande trunfo de Simônides foi perceber que aquilo que nos é transmitido pelos sentidos, principalmente pela visão, é mais fácil de ser assimilado. Diante disso para que a mnemotécnica pudesse se desenvolver era necessário àqueles que se dedicassem a ela que procurassem lugares bem iluminados para serem suas salas de aula, bem como imagens notáveis, pois assim elas penetrariam com mais rapidez em suas mentes. Na contemporaneidade, a historiadora Aleida Assmann (2011, p.31-32) ao dedicar-se ao estudo da mnemotécnica afirma que este foi um procedimento utilizado pela primeira vez espontaneamente e que em seguida foi transformado em uma técnica de aprendizado consciente. A partir dela desenvolveu-se uma espécie de escritura mental, baseada na lembrança de locais e imagens, que forneciam subsídios para guardar memórias. Com essa técnica, que mudou da audição para a visão, ou seja, conhecimentos e textos deveriam ser fixados na cabeça de maneira tão confiável como se estivesse escrevendo em uma folha de papiro. Para os romanos a mnemotécnica foi concebida como um procedimento utilizável para vários fins, que objetivava primordialmente o armazenamento e a recuperação de informações tal como elas haviam sido guardadas.

Na Eneida, especificamente no Livro III, a memória é uma das principais ferramentas que Eneias faz uso. Cabe a ele narrar suas aventuras desde a saída de Troia até Cartago para a rainha Dido e os demais participantes do banquete em homenagem aos troianos, ele recorda acontecimentos traumatizantes, como a destruição da sua pátria, não esquecendo sequer as falas dos personagens. Nos propomos a realizar uma análise sobre as memórias de Eneias, apresentadas por Virgílio no Livro III da Eneida, quando esse personagem relata sua viagem junto com seus companheiros de Troia até a ilha de Cartago.