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Eneias é um herói romano. Seus feitos heroicos se destacam no desenrolar da

que cabiam aos cidadãos romanos cultivarem, principalmente no que tange às práticas religiosas públicas. Ao tratar de “religião romana” devemos estar atentos que seu uso sem uma prévia explicação pode tender a uma visão simplista desse complexo sistema de crenças. Não estamos lidando com uma religião que possuía um conjunto de dogmas bem estruturados reunidos em um livro, como a Bíblia dos cristãos, ou de uma forma única de vida religiosa compartilhada por todos aqueles que se identificavam como romanos. Rosa (2008, p.77-78) reitera que um dos maiores problemas no estudo de crenças religiosas do passado é reconhecer que nossas ideias e atitudes são históricas e culturalmente determinadas, e não um dado natural. “Diferentes religiões têm diferentes modos de expressão e princípios, e o nosso próprio enquadramento religioso jamais é objetivo, muito menos neutro” (ROSA, 2008, p.78).

A “religião romana” corresponde a uma abrangência espaço-temporal significativa e não deve ser tratada de forma homogênea82. Isso exige que nós tenhamos bem definidos os aspectos, o lugar e o tempo que pretendemos direcionar nossa análise. Concentraremos nosso estudo na cidade de Roma, século I a. C., no período de governo de Otávio Augusto e da publicação da Eneida. Levando em consideração a mensagem da epopeia de Virgílio sobre o nascimento de uma cidade cuja “fama há de aos astros chegar83” (Eneida, I, 287),

tendo suas bases fundadas por um sobrevivente da Guerra de Troia, procuraremos perceber como as características desse personagem podem ser entendidas enquanto elementos relacionados aos cultos públicos da cidade de Roma, aos princípios da moral que regia a vida cívica dessa cidade.

No século I a. C. o autor romano Varrão84 afirmou existirem três formas de teologia, ciência dos deuses: a mítica; a física ou natural; e a civil (Civ. Dei VI, V, 1). A primeira corresponderia aos jogos de palavras e ficções criadas pelos poetas, cuja função era de causar deleite e divertir o público, mas representavam também um atentado à moralidade e à natureza dos deuses, pois nela se atribuíam aos deuses as mais terríveis injúrias, como roubo, assassinato e o adultério. A segunda estava ligada à atividade filosófica, muito elogiada pelo autor romano. Ela se dedicava ao estudo da essência dos deuses, suas

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Sobre a complexidade do termo “religião romana” ver Bondioli (2012, p. 31-44). 83 Fama qui terminet astris (Eneida, I, vv.287).

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A obra de Varrão não chegou até nós, temos conhecimento sobre suas assertivas através das extensas citações de Agostinho de Hipona, autor do século IV d.C., em sua obra Cidade de Deus.

funções, qualidades, se eram eternos ou não, mas apesar do seu rico conteúdo encontrava-se limitada aos muros das escolas, ao contrário da teologia mítica, considerada mais “mentirosa”, no entanto, mantida livre nas ruas das cidades. A terceira dizia respeito ao que os cidadãos e principalmente os sacerdotes deveriam conhecer e pôr em prática no cotidiano das cidades. Estava ligada aos cultos públicos, rituais e sacrifícios que todos os cidadãos eram obrigados a conhecerem.

Jörg Rüpke (2007, p.125-130), ao analisar as três esferas de compreensão do divino de Varrão, afirma que elas eram autônomas e, embora não fosse uma regra, podiam interagir. Todas elas eram consideradas visões legítimas sobre o sagrado. Além disso, não havia uniformidade nas formas como os romanos cultuavam seus deuses, embora algumas fossem mais aceitas que outras. No entanto, isso não significa que não existia um conjunto de práticas religiosas características do culto público. John Scheid (2003, p.117-118) destaca que quando nos referimos aos cultos públicos (sacra publica), de Roma durante o governo de Augusto, devemos ter em mente que eles se estendiam ao princeps e à sua família. A “religião da pólis” estava ligada á estrutura sócio-política, seus cultos eram presididos por uma elite cívica, que possuía autoridade sobre as práticas religiosas e os cidadãos. A sacra publica romana era “política e politizada”. Isso se explica pelo fato de que seus sacerdotes eram eleitos através de votação, assim como os magistrados. A diferença é que os cargos religiosos eram vitalícios. O colégio pontifical e o augural eram ferramentas do Senado, só entravam em ação quando solicitados. Essa situação perdurou até Otávio Augusto assumir o governo de Roma, visto que ele reuniu em sua pessoa o poder de várias magistraturas, dentre elas a de pontífice máximo, membro do colégio augural e chefe militar, que até então era vetado a qualquer cidadão.

Tito Lívio, autor romano do século I a. C., discutindo sobre seu tempo articulou a questão da tradição e da prosperidade alertando para a ameaça da degeneração moral dos cidadãos. Do seu ponto de vista conforme Roma expandiu seu território declinou a moral dos cidadãos fazendo com que cada vez mais houvesse um distanciamento das tradições ancestrais, o que representava um risco à cidade (História de Roma, Prefácio, 9). Temos de levar em consideração no argumento de Lívio que ele escreveu em um momento conturbado da história romana, logo após as guerras civis que deixaram o Estado em uma situação caótica. Encontramos também na literatura essa preocupação com o afastamento

do povo romano das tradições ancestrais. A Eneida apresenta uma narrativa sobre Eneias, um troiano que se tornou ancestral dos romanos graças à vontade dos deuses e por ter sempre lhes prestado culto. Essa obra pode ser entendida como uma poesia alicerçada em questões políticas e religiosas que ligava acontecimentos contemporâneos da época na qual foi escrita a acontecimentos passados, sobretudo, relacionados à importância dos ancestrais romanos para a fundação de Roma e à manutenção da pax deorum.

Na epopeia virgiliana as “profecias” são uma constante, avisos sobre o futuro de Roma apontam para a grandiosidade do império alcançada durante o governo de Augusto. No entanto, não se trata apenas de destacar o papel desse governante, mas também de colocar em evidência a importância dos ancestrais romanos, bem como suas qualidades, principalmente a pietas, a fim de que os homens do presente valorizassem e adotassem para si as tradições e qualidades dos homens do passado. Como aponta Rüpke (2010, p.230- 232), apesar de fazer parte da propaganda política do princeps ele ser apresentado como o restaurador das “tradições romanas”, mos maiorum, esse apelo só foi possível devido à presença permanente dos antepassados no cotidiano do cidadão romano, através de estátuas, rituais e da literatura, por exemplo.

Coleman (2009, p.145) destaca que a missão de Eneias era levar os deuses domésticos, os Penates, da sua pátria para o Lácio. Mas isso não quer dizer que o Lácio não possuía suas próprias divindades. Vários deles são mencionados na epopeia virgiliana, todos ainda adorados na época de Virgílio. Fauno aparece na Eneida como um deus local da Itália, ele é o pai de Latino (Eneida,VII, 81); e é para esse deus que Turno reza pedindo que o ajude a vencer Eneias (Eneida, XII, 766-779). Além disso, cerimônia de abrir e fechar o portão de Jano já se encontrava estabelecido no Lácio antes da chegada dos troianos (Eneida, VII, 610) e é para essa divindade, juntamente à Diana e Apolo que Latino dirige orações no Livro XII (198). Os troianos também têm as suas próprias divindades na

Eneida. Cibele é a deusa frígia85 que no Livro IX (80-110) intervêm, juntamente com Júpiter, para salvar os navios troianos de um incêndio causado por Turno, transformando-os em Nereidas, ninfas do mar. Muito mais importantes são Vesta e os Lares e Penates, pois estes são os deuses que Eneias trouxe com ele de Troia para o Lácio. Vesta aparece pela primeira vez junto com Fides na profecia de Júpiter sobre o futuro de Roma (Eneida, I,

292), mas sua origem troiana é explicitada no Livro II (293-296), quando ela e os Penates são confiados a Eneias pelo fantasma de Heitor.

Coleman (2009, p.146-147) observa que a presença dos Penates é frequente na epopeia de Virgílio. Eles possuíam um lugar de honra ao lado do grande altar no palácio de Príamo (Eneida, II, 514) antes da destruição de Troia e, uma vez confiados a Eneias por Heitor, passam a ter o estatuto de talismã para lembrar o herói da sua missão e garantir a sua segurança na realização desta. Essas divindades aparecem para Eneias, em uma visão, durante a praga em Creta (Eneida, III, 148-171) para avisá-lo de que seu Destino se concretizaria na Hespéria (Itália). Essa é a sua única intervenção direta no poema e também a única em que são equiparados a outros deuses, visto que são reconhecidos por Eneias pelas suas feições (Eneida, III, 174-175). Esses deuses formariam a religião da nova cidade que seria fundada no Lácio, alicerçada na pietas do herói troiano e dos seus companheiros exilados.

Paulo Martins (2011, p.16-17) ao analisar a pietas na sociedade romana da época augustana afirmou que esse conceito significava a valoração das coisas, principalmente o amor pela pátria e pelos ancestrais (Manes, Lares, Penates), associando-se ao domínio político por ser uma das bases da política de Otávio. Vinculava-se diretamente ao termo

uirtus que designava as qualidades que um homem romano deveria possuir, como o gosto

pela prática do “bem” e da “retidão”. É um conceito bastante complexo, mas que tinha grande importância, pois foi representado em diversos monumentos, além de ser um objeto de culto associado a honor. Vale ressaltar ainda que em Roma não existia distinção entre moralidade e política, pois elas se encontravam entrelaçadas nas práticas dos cidadãos.

A honor e a gloria eram termos que estavam ligados a virtus, todos eles entendidos como conceitos políticos. Se distinguiam pelo primeiro ser um pressuposto de todo vir

honestus (homem honrado, nobre, distinto) e o segundo do vir magnus (homem de elevado

status social e político). Era digno de glória aquele que fosse amado pela multidão, pois ele inspirava a fides, obtida pela realização de boas ações e prestação de serviços a res publica. Isso explica a importância da divulgação da imagem das ações dos homens que promoveram bens notáveis à sociedade romana, seja na arquitetura ou na literatura (MARTINS, 2011, p.18). No caso da literatura romana, por exemplo, Cícero, autor do século I a. C., escreveu sobre a pietas no seu tempo e nela encontrou a explicação para o

sucesso romano, no seu De haruspicum responso86, afirma que o fator militar não foi o

responsável pelo domínio romano sobre o mundo, mas sim o fato de fazerem um bom uso da pietas e da religio87, características próprias desse povo. Além disso, nesse texto encontramos articulada a questão da tradição religiosa romana no cenário político do final da República, que nos permite ter conhecimento sobre as práticas religiosas na sociedade romana desse período. O respeito às tradições e aos cultos dos deuses são reconhecidos por esse autor como valores que norteavam a vida dos cidadãos romanos88.

Martins (2011, p.154-155) destaca que o culto dos antepassados ocupava um lugar privilegiado na sociedade romana da época augustana. No ambiente da domus junto aos

manes, os ancestrais eram cultuados. Quando um cidadão notável romano morria era feita

uma máscara de cera, para que a partir dela fossem feitas outras imagens mais duradouras, de materiais como mármore ou bronze, ou simplesmente para ser colocada junto às imagens dos ancestrais da sua gens. Esse ritual visava preencher o vazio deixado pela ausência física do morto no seu ambiente mais íntimo, sua casa. A máscara de cera era um objeto de preservação da memória. A história da gens se amplificava com o acúmulo de imagens daqueles que fizeram parte do seu passado. Esse tipo de representatio não se restringia apenas ao espaço privado, mas podia extrapolar a domus a fazer parte da esfera pública. O direito de cultuar imagens era resguardado aos patrícios, somente eles podiam realizar os

gentilica funera, rituais funerários públicos, se tornando a “efetiva extrapolação da imagem

privada ao âmbito público” (MARTINS, 2011, p.156).

Rosa (2009, p.78-85) ao discutir sobre a relevância da religio na sociedade romana da época de Augusto, afirma que as estátuas e outras imagens de divindades eram, mesmo para os mais céticos, símbolos do seu poder. Elas podiam ser encontradas em vários lugares: as casas, domus, possuíam pequenos altares dedicados ás divindades domésticas; no campo existiam santuários dedicados a divindades locais; nas cidades havia templos modestos e bem adornados, os quais eram residência terrena dos deuses e locais de cultos.

86 Nesse discurso Cícero lamenta o exílio por tê-lo obrigado a se afastar da sua casa, que para ele era o símbolo de tudo o que o cidadão romano significa, em decorrência do seu banimento de Roma decretado por Clódio, um funcionário de César incumbido de cuidar dos interesses do ditador na cidade quando decidiu se juntar às legiões na Gália, no ano de 58 a.C.

87 É importante destacar que na época de Cícero o termo religio não possuía a mesma conotação que na modernidade, significava um tipo de gratidão do homem para com os deuses (FINNIS, 2011, p. 1-14). 88

Para uma discussão aprofundada sobre o De haruspicum responso, de Cícero ver Carpinetti & Corrêa (2013, p.08-22).

Quando falamos de "religião romana" nos referimos a uma categoria bastante complexa, que compreende um grande número de divindades, práticas, instituições e crenças. A

religio estava entrelaçada à vida do cidadão romano, disseminada pelas domus e na urbs,

encontrava-se relacionada ao respeito e cultos das divindades, assim como aos antepassados. A casa era considerada um santuário, lar dos Lares e Penates, onde a função de sacerdote era exercida pelo pater familiae. Em um altar (ara) de pedra, que ficava próximo à lareira, eram realizados sacrifícios que visavam homenagear as divindades e os antepassados. O símbolo que melhor representava a união dos membros das gens era a lareira, ela era o coração da domus, onde ardia o fogo sagrado, emblema de estabilidade, imutabilidade e permanência. De modo análogo, no centro da urbs havia uma lareira circular que abrigava o fogo sagrado de Vesta, que nunca devia ser apagado, pois enraizava a morada dos seres humanos na terra e simbolizava a perpetuidade da res publica. A defesa das lareiras familiares e da ara dos deuses, em muitos momentos, levou os romanos a empunharem suas armas e marcharem para a guerra.

A “religião romana” estava diretamente ligada à cidade, se baseava na exaltação da liberdade dos seus cidadãos, principalmente no que tange à relação com o plano divino. Os deuses romanos não exigiam dos seus adoradores uma submissão radical a uma autoridade religiosa. Podemos dizer que a cidade preconizava a libertas89 do cidadão, pois estava aberta a várias formas de religiosidades. “O único "artigo de fé" da religião romana é a

libertas. A racionalidade cívica era a garantia da liberdade e da dignidade dos membros da urbs, humanos e divinos” (ROSA, 2009, p.86). Na epopeia virgiliana encontramos

descritos alguns dos preceitos morais e das condutas religiosas que os cidadãos de Roma deveriam possuir. Não pautamos nossa análise somente em uma visão positiva do herói da

Eneida, mas elencamos também o pesar que esse personagem sentia por ter de abandonar

tudo ao que se prendia antes e durante o exílio. Percebemos que a epopeia de Virgílio não se trata apenas de uma obra que elogia a figura do princeps, apesar de ter sido escrita a seu pedido, mas da relação de gratidão que os cidadãos romanos mantinham para com seus deuses, desde antes da fundação da sua cidade. Ela mostra os sacrifícios que os

89 O princípio fundamental pelo qual a “religião romana”, pelo menos no período clássico, se baseava era a

racionalidade, que garantia aos cidadãos a liberdade e a dignidade. Logo verifica-se em todo o Império a existência não de apenas um tipo de religiosidade, mas sim de vários, resultado, principalmente, da expansão do seu território. Ver Rosa (2008. p.85-86).

antepassados dos romanos, os troianos, tiveram de realizar para alcançar a glória e a harmonia com seus deuses.

O fundador de Roma, Rômulo, descendia da gens cuja história estava marcada pela fúria das divindades. A destruição de Troia foi resultado do desrespeito do seu primeiro rei a Zeus, talvez para mostrar que mesmo a soberania de um monarca não era párea para a força das deidades. Os deuses salvaram da destruição da cidade o descendente do filho mais estimado de Zeus, Dárdano, por ter sempre honrado a pietas. Porém, foi necessário que esse homem atravessasse mares e terras em busca de um lugar distante e desconhecido, não profanado pela desonra aos deuses, a Itália. Nesse local os deuses troianos foram bem recebidos pelas divindades nativas, garantindo o sucesso da nova cidade que seria fundada, livre de tudo o que levou Troia à destruição.

Podemos dizer que o exílio aparece na Eneida como sinônimo de liberdade e de purificação daqueles que enfrentaram os anos de desterro. Mesmo descendendo do filho preferido de Zeus, os sobreviventes da Guerra de Troia tiveram de fazer por merecer a salvação encontrada na Itália, enfrentando várias provações, que serviram como aprendizado ao longo da sua viagem. A experiência do exílio, principalmente nos primeiros anos quando vagaram pelos mares à procura de um espaço para se fixar, levaram os troianos a passarem por situações que o transformaram em um povo piedoso, virtuoso e glorioso. Eles cumpriram suas obrigações religiosas, civis e militares, realizando sacríficos aos deuses, fundando cidades, mesmo que elas não tenham prosperado, e indo à guerra, conforme a descrição do próprio Eneias, no Livro III. Para nós, todos esses acontecimentos funcionaram como exemplos caros aos personagens no desenrolar da epopeia, pois toda a experiência adquirida foi necessária para enfrentar os novos desafios que surgiram, até a última batalha, no Livro XII, contra Turno. Na Itália os troianos tiveram de brigar para se estabelecer na sua nova terra. A Eneida revela assim a importância do solo, da patriae e da vida cívica para os romanos.