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Política, vida cívica e religião: uma análise das memórias de Eneias no livro III da Eneida de Virgílio (séc. I a.C.)

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Academic year: 2021

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(1)2. POLÍTICA, VIDA CÍVICA E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE ENEIAS NO LIVRO III DA ENEIDA DE VIRGÍLIO (SÉC. I A. C.). ANA PAULA SANTANA FILGUEIRA. NATAL/2016.

(2) 3. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA: CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS. POLÍTICA, VIDA CÍVICA E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE ENEIAS NO LIVRO III DA ENEIDA DE VIRGÍLIO (SÉC. I A. C.). ANA PAULA SANTANA FILGUEIRA. NATAL/2016.

(3) 1. Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA. Filgueira, Ana Paula Santana. Política, vida cívica e religião : uma análise das memórias de Eneias no livro III da Eneida de Virgílio (séc. I a.C.) / Ana Paula Santana Filgueira. - 2016. 118 f.: il. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lyvia Vasconcelos Baptista. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de PósGraduação em História, 2016 1. Virgílio - Eneida. 2. Heróis. 3. Civilização clássica. 4. Mito. I. Baptista, Lyvia Vasconcelos. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA. CDU 94(37).

(4) 4. ANA PAULA SANTANA FILGUEIRA. POLÍTICA, VIDA CÍVICA E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE ENEIAS NO LIVRO III DA ENEIDA DE VIRGÍLIO (SÉC. I A. C.). Qualificação apresentada como requisito para obtenção do grau de Mestre no Programa de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa II: Cultura, Poder e Representações Espaciais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do(a) Prof(a). Dr(a). Lyvia Vasconcelos Baptista.. NATAL/ 2016.

(5) 5 ANA PAULA SANTANA FILGUEIRA. POLÍTICA, VIDA CÍVICA E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE ENEIAS NO LIVRO III DA ENEIDA DE VIRGÍLIO (SÉC. I A. C.). Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores:. Prof. Drª. Lyvia Vasconcelos Baptista (UFRN). Prof. Dr. Rafael Scopacasa (UFMG). Prof. Drª. Marcia Severina Vasques (UFRN). Prof. Drª. Silvia Marcia Alves Siqueira (UECE) - Suplente. Natal, _________de__________________de____________.

(6) 6 AGRADECIMENTOS. Tenho muito a agradecer as pessoas que fizeram parte da minha trajetória de construção desse trabalho. Amigos e familiares que fizeram a diferença nos momentos mais difíceis, fosse com um café, palavras de incentivo ou um abraço. A todos que estavam e estão ao meu lado eu dedico essa dissertação. Agradeço primeiramente ao homem mais importante da minha vida, que nunca me desamparou e me incentivou a chegar até aqui, o meu pai. Por todos os momentos que passamos juntos, tanto os bons como ruins, pela fé que depositou em mim e, sobretudo, por ser o maior exemplo de persistência e busca de dias melhores que eu possuo. Obrigada meu velho, por tudo. Agradeço ao professor Almir Bueno por ter me incentivado a mergulhar no mundo da pesquisa e no programa de pós-graduação. Lembro-me da graduação, quando me tornei sua monitora de História Antiga, por meio dela conheci Virgílio, a Eneida e o prazer de trocar conhecimentos com meus colegas nas reuniões e eventos. Foi durante essa experiência que me interessei pelo estudo de História Antiga e onde comecei a dar os primeiros passos em direção ao mestrado. Agradeço também ao professor Joel Andrade pela paciência e cordialidade com os quais me recebeu todas as vezes que o procurei pedindo ajuda e por ter me incentivado a trilhar o caminho acadêmico, mostrando os resultados maravilhosos que essa árdua caminhada tem a nos oferecer. Agradeço aos professores do Programa de Pós-Graduação da UFRN. As aulas de Durval Muniz, Renato Amado, Alessandro Dozena, Eugênia Maria, Santigo Jr. e Raimundo Arrais, foram muito importantes para a concretização desse trabalho, pois fui apresentada a várias perspectivas de estudo, que me inspiraram nos momentos de escrita. As discussões sobre espaço foram muito enriquecedoras e me permitiram ir além do que eu pretendia fazer quando entrei pela primeira vez no setor II para assistir a primeira aula do mestrado. Obrigada a todos vocês por terem sido ótimos professores e pelas contribuições que fizeram a este trabalho. Agradeço aos meus dois orientadores do mestrado. Ao professor Raimundo Arrais o meu muito obrigada por ter assumido a tutoria dessa pesquisa nos primeiros semestres. A experiência de suas orientações foram desafiadores e enriquecedoras, tive contato com.

(7) 7 várias perspectivas sobre o meu objeto de estudo e a oportunidade de me questionar diversas vezes sobre minha metodologia de pesquisa. À minha segunda orientadora também tenho muito agradecer, Lyvia Vasconcelos obrigada por ter assumido a orientação dessa dissertação já no meio do curso, pelo carinho com o qual me recebeu, pelas conversas não somente sobre a dissertação, mas sobre as coisas da vida. Obrigada por ter sempre me recebido de braços abertos na sua sala em todas as nossas reuniões, pelos desafios que me apresentou no estudo do Mundo Antigo e conselhos sobre o mundo acadêmico. Agradeço aos amigos que conquistei no CERES e que me apoiaram em vários momentos, principalmente no mestrado – Ariane, Avohanne, Arthur, Gerlânia, Matheus (Mohammed) e Antonio – a amizade de vocês é muito importante para mim. Obrigada pelas resenhas no Facebook e no Watsapp, as palavras de apoio, os encontros sempre animados nos eventos e por serem ótimos amigos. Aos amigos que conquistei fora da faculdade também tenho muito a agradecer – Raul, Luanny e Felipe – o apoio de vocês foi essencial nos momentos em que duvidei se conseguiria concluir a dissertação, o carinho e as risadas que arrancaram de mim tornaram nossos encontros muito animados. Acredito que família não é apenas aquela com a qual compartilhamos os mesmos laços sanguíneos, mas aquela que conquistamos ao longo da vida e está ao nosso lado nos momentos bons e ruins. Agradeço a família Ramos, Jorgeane (Tia Jô), Diogo e Zé. Nos conhecemos em Caicó, quando comecei a graduação em História e Di era meu colega de curso, de lá para cá vocês se tornaram uma família para mim, sempre preocupados e atenciosos. Tenho um carinho imenso por vocês. Obrigada pelo companheirismo e por terem aberto sua casa e seu coração para mim. Serei eternamente grata. O curso de pós-graduação não teria sido tão alegre sem os meus amigos da “Comuna’s House” – André, Vanessa, Ruan, Ilka, Romário, Kalidiany, Isabella e Rafael – com os quais compartilhei alguns dos momentos mais difíceis do mestrado, a distância de casa, o estresse pelo acúmulo de trabalho, o pavor da louça suja, mas também alguns dos melhores momentos, as cervejas pós-aula, as festas, o companheirismo e a amizade que consolidamos e que pretendo levar pelo resto da vida. Dedico um espaço especial aqui para André Nascimento, meu amigo desde o Ensino Médio, pois foi ele o primeiro a me dar a notícia da aprovação no mestrado, com palavras que até hoje me recordo: “Ana, você.

(8) 8 acredita no poder de Vênus? Pois é, nós passamos no mestrado”. Muito obrigada “branquelo” por tudo. O mestrado me deu muitos presentes e o melhor deles foram às amizades que conquistei e que pretendo cultivar para além desses dois anos e meio. Agradeço especialmente aos frequentadores mais assíduos do “Principado Independente da 812”, Adriel (Dridri), João Paulo, Paulo Vitor, Fagner, Keidy, Luan, Abimael e Patrícia, pelas conversas descontraídas para aliviar os momentos de tensão da escrita, pelo debate que promovemos sobre nossos trabalhos, os jogos e as risadas, que tornaram os últimos meses de escrita da dissertação muito mais leves. Agradeço a João Vinicius, que conheci quando entrei no mestrado, pelo material de pesquisa que compartilhou comigo e pelos e-mails de incentivo à pesquisa. O meu muito obrigado às servidoras, Erica e Edleide, pelo cafezinho da tarde e as conversas na copa do CCHLA. Com vocês essa caminhada se tornou muito mais divertida e agradável. Sou grata também aos meus colegas da Residência de Pós-Graduação, principalmente Ivana, Dezwith, Dona Conceição, Jorge e Karina, pelo modo gentil com o qual me trataram e pelas conversas amigáveis. Obrigada por tudo que compartilhamos. Desejo muita sorte e luz no caminho de todos vocês. Agradeço imensamente a família Rangel – Roseane e Charles – pela atenção e o carinho com os quais me tratam, por terem participado de alguns dos momentos mais felizes da minha vida, como a formatura e a aprovação no mestrado, e terem me adotado como membro da família. Ao meu namorado, Marcos Filho, tenho muito a agradecer, sua paciência e dedicação a nós foram importantíssimas para mim ao longo desses dois anos e meio. Obrigada por cada lágrima de alegria e tristeza que compartilhou comigo, por ter estado ao meu lado todo tempo me incentivando a continuar esse trabalho, pelos chocolates e pizzas nos momentos de tensão e a companhia nos almoços no nosso restaurante preferido, o RU. Foi nos pequenos gestos que nos aproximamos e através deles que nos unidos um dia após o outro. Agradeço ao meu irmão, Júlio César, que conheci a pouco mais de três anos. Embora não tenhamos crescido juntos, aos poucos descobrimos que possuímos muitas coisas em comum, principalmente o desejo de ir enfrente com a carreira acadêmica. Desejo muito sucesso a você, força para vencer as batalhas que a vida nos impõe e saiba que estarei.

(9) 9 sempre aqui para o que precisar. Muito obrigada pelas visitas e as gargalhadas que demos juntos. Agradeço aos amigos que desde a adolescência fazem parte da minha vida e alguns que fiz há pouco tempo em Currais Novos, Francis, Iane, Vanderlúcia, Ronie, Pablo, Rosy, Peterson, Manel, Thays, Daniel, Mercinho, Joel, Marcelo, Allan, Karina e Ana Lúcia pelas brincadeiras, festas, choros, brigas e conselhos. Todos vocês ocupam um lugar especial no meu coração e foram muito importantes para a realização desse trabalho..

(10) 10. RESUMO: A Eneida, poema épico escrito por Publio Vergilius Maro, é datada de 19 a. C. Esta epopeia narra o trajeto percorrido pelos sobreviventes da Guerra de Troia, liderados pelo herói Eneias, em busca de uma terra prometida pelos deuses, para fundar uma nova cidade. Nesta pesquisa, tomamos como objeto de estudo o Livro III da Eneida, no qual o personagem Eneias narra como se deu o decorrer dos seus primeiros anos de exílio, sempre chegando e partindo de espaços onde ele passou por experiências que moldaram sua personalidade como líder político, militar e religioso, bem como influenciaram seus companheiros de viagem. Realizamos uma reflexão sobre como essas características agregadas à figura de Eneias podem nos auxiliar na reflexão sobre política, vida cívica e religião da cidade de Roma, durante o período em que a epopeia virgiliana foi produzida, abarcando o governo de Otávio Augusto, entre 14 a. C. e 27 d. C. Promovemos uma análise sobre mythos, memória e espaço, identificando como os troianos exilados na Eneida se reconheciam e interagiam com os espaços nos quais aportaram, nomeadamente, Trácia, Delos, Creta, ilhas Estrofádas, Butroto, Itália e Drepáno, visando demonstrar como uma fonte literária pode sugerir elementos culturais sobre a sociedade que a produziu. Palavras-chave: Eneida. Herói. Memória. Espaço. Mythos.

(11) 11. ABSTRACT:. The Aeneid, an epic poem written by Publius Vergilius Maro, is dated 19 a. C. This epic tells the route taken by survivors of the Trojan War, led by Aeneas hero, in search of a promised land of the gods, to found a new city. In this research, we take as an object of study Book III of the Aeneid in which Aeneas character tells how was the course of his first years of exile, always arriving and departing spaces where he went through experiences that shaped his personality as political leader, military and religious, and influenced their travel companions. We carry out a reflection on how these characteristics aggregated to Aeneas figure can help us in thinking about politics, civic life and religion of Rome, during the period in which the epic Virgilian was produced, covering the government of Octavian Augustus, 14 to . C. and 27 d. C. promote an analysis of mythos, memory and space, identifying how the Trojans exiles in Aeneid is recognized and interact with the spaces in which landed in particular Thrace, Delos, Crete, Estrofádas islands, Buthrotum, Italy and Drepano, aiming to demonstrate how a literary source may suggest cultural elements of the society that produced it.. Keywords: Aeneid. Hero. Memory. Space. Mythos.

(12) 12 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – Mapa da Via Flaminia.....................................................................................30 FIGURA 2 – Painel da entrada principal da Ara Pacis Augustae........................................31 FIGURA 3 – O Lupercal......................................................................................................32 FIGURA 4 – A deusa Tellus................................................................................................33 FIGURA 5 – A deusa Roma................................................................................................33 FIGURA 6 – Procissão imperial da Ara Pacis Augustae.....................................................34 FIGURA 7 – Mapa da viagem de Eneias.............................................................................61.

(13) 13 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................................14 1.CAPÍTULO I – A ENEIDA EM TEXTO E CONTEXTO................................................22 1.1 Virgílio: os resquícios de uma biografia........................................................................23 1.2 Da política do Augustus aos primeiros passos de um poema.........................................26 1.3 A discussão sobre as influências retóricas na epopeia de Virgílio.................................44 2.CAPÍTULO II- MITO E MEMÓRIA: A VIAGEM MARÍTIMA DE ENEIAS..............49 2.1 Mythos e mimesis na literatura e história greco-romana.................................................49 2.2 A viagem de Eneias e seus sociis em busca da Itália.....................................................58 2.2.1 A partida de Troia e a chegada à Trácia...................................................................62 2.2.2 De Delos à Creta: a busca pela antiquam matrem...................................................65 2.2.3 A ilha das Harpias....................................................................................................66 2.2.4 Epiro: a réplica de Troia...........................................................................................68 2.2.5 Do primeiro encontro com a Itália à Drepano..........................................................69 2.3 Memória e espaço na Eneida.........................................................................................72 3.CAPÍTULO III- REALIZAÇÕES HEROICAS, FUNDAÇÕES E PROFECIAS NO LIVRO III DA ENEIDA.......................................................................................................80 3.1 Para além da narrativa virgiliana: a res gestae de Eneias...............................................81 3.2 Pietas, virtus e religio: da Eneida aos cultos públicos de Roma....................................92 3.3 Religião e cidade em Roma e na Eneida.........................................................................99 Considerações finais............................................................................................................106 REFERÊNCIAS.................................................................................................................109.

(14) 14 INTRODUÇÃO. Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao amanhecer, começa a subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma pantera, um leão e uma loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece para tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o guiará ao Paraíso. Dante segue (ALIGHIERI, I, I).. Na Divina Comédia Virgílio foi o guia de Dante ao longo sua viagem pelo Inferno e pelo Purgatório, ele o conduziu por caminhos desconhecidos aos vivos. Neste trabalho, o poeta da Antiguidade Romana nos mostrará o caminho a ser percorrido na análise do seu poema épico, a Eneida, que narra as errâncias do herói Eneias e de alguns compatriotas, sobreviventes de uma guerra que destruiu sua pátria e fundadores das bases de um império. Nosso objetivo é apresentar a literatura como uma fonte capaz de sugerir elementos culturais da sociedade que a produziu. Para isso, fizemos um recorte da épica virgiliana, tendo em vista a sua complexidade e extensão. Utilizamos como fonte principal de nossa pesquisa o Livro III desse poema, buscando identificar como questões relacionadas à vida cívica, à política da cidade de Roma e à religião se encontravam interligadas nessa sociedade. No total, a Eneida é composta por 9.826 versos, divididos em 12 Livros1, e narra a história do herói troiano, Eneias, filho da deusa Vênus e do mortal Anquises, que após à Guerra de Troia, juntamente com alguns compatriotas, se lança ao exílio. Eles são guiados pelas profecias dos deuses: Júpiter, Vênus e Apolo, que lhes prometem uma nova terra, onde fundariam as bases do Império Romano. Em meio as suas andanças passam por intensas provações, são seduzidos a fixarem-se em algumas das ilhas onde aportam, mas não cedem e continuam a viagem até o seu destino, a Itália. Ao chegarem nesta região enfrentam os povos latinos, liderados pelo rei Turno, em uma guerra que causa significativas perdas de ambos os lados, mas no final os troianos saem vitoriosos. 1. Para a realização da dissertação utilizamos uma edição bilíngue da Eneida, em latim e português, traduzida por Carlos Alberto Nunes e publicada em 2014. Esse tradutor publicou a primeira versão da tradução em 1981, pela A Montanha Edições. O material foi republicado em 1983, pela Editora da Universidade de Brasília. A edição por nós utilizada foi organizada por João Ângelo Oliva Neto e publicada pela Editora34. O texto em latim adotado foi organizado por Frédéric Plessis e Paul Lejay para a editora Hechette, no ano de 1919, tendo sofrido algumas modificações pelo tradutor da versão em português..

(15) 15 Nosso estudo se encontra direcionado ao Livro III dessa epopeia, que consiste em um relato dos primeiros anos de exílio na voz do personagem Eneias. Encontramos nessa seção a descrição de como um grupo de sobreviventes de uma guerra carregou em suas naus uma cidade que não existia mais no plano físico, somente na memória de cada um. Eles transportaram sua cidade pelos mares da Sicília até Cartago e de lá até o destino profetizado pelos deuses, a Itália, onde fundam as bases de Roma. Apesar de se tratar de um texto sobre o nascimento de Roma a Eneida, e mais precisamente o Livro III, não apresenta uma descrição literal de como se deu o processo de fundação dessa cidade, mas de Lavínio, fundada por Eneias em homenagem à filha do rei Latino, Lavínia, com quem se casa no final da epopeia. Além disso, encontramos nessa seção do poema a ênfase na dissolução das estruturas materiais que amparavam a atividade cívica, espaços hostis onde Eneias e seus companheiros encontraram a peste, maus presságios, morte e guerras. Essas referências literárias se relacionavam com o próprio período no qual essa obra foi escrita, século I a. C., que não foi menos tumultuado. Após o assassinato de Júlio César, seu sucessor, Otávio Augusto, promoveu a transformação gradual de uma sociedade republicana em um principado, marcado pelo fim de um período conturbado de guerras civis responsáveis por causar fortes impactos sobre essa sociedade. Foi nesse cenário complexo que a Eneida foi produzida e de maneira também complexa em cada um dos seus versos foram refletidos esses momentos de tensão. Virgílio não fala de Roma no seu sentido físico, das heterogeneidades étnicas que a habitavam no século I a. C., nem do modo de vida dos seus cidadãos ou do comércio. O autor se pautou na descrição de uma cidade ideológica e valorativa, que vivia a era da pax romana, na qual se desenvolveu um projeto de incorporação de novos territórios e que pretendia criar um sistema de valores universal. A cidade na Eneida foi construída em cima da ideia de tentativa e erro e pela harmonia com os deuses, isso significa pensar que Roma não havia surgido pelo simples desejo e necessidade dos homens, mas pela determinação divina, que desde suas raízes mais remotas garantiram seu sucesso como império (TEIXEIRA, 2012, p.11-12). No Livro III Eneias narra como se deram suas aventuras pelas terras que ele e seus companheiros encontraram ao longo do exílio e como suas tentativas de fundar uma cidade para abrigar o seu povo falharam até o momento em que recebeu um sinal divino que indicou ser a Itália o local prometido pelos deuses. Não foi por mero acaso.

(16) 16 que na Trácia e em Creta Eneias tentou fundar cidades e fracassou, mas pelo desejo dos deuses de o levarem ao local ideal2. A Eneida sintetiza uma tradição literária romana com influências helenísticas, uma epopeia completa e estilizada que inaugura um novo lugar para a épica na história. Sua importância é ressaltada por autores que refletem sobre as bases da literatura ocidental, como Dante Alighieri, por exemplo. Mas, além disso, como documento histórico a obra de Virgílio se destaca ao fundamentar um corpo de considerações sobre diversos aspectos da cultura e sociedade latina. A epopeia virgiliana foi, ao longo do tempo, alvo de inúmeros estudos que desenvolveram distintas críticas e possibilidades de interpretação. Cecilia Ames e Guillermo De Santis (2011), por exemplo, ao discutirem sobre o lugar das etnias italianas no século I a. C., afirmaram que a política de expansão romana3 propiciada por Augusto, baseada no ideal de uma Tota Italia, foi o vetor que atravessou a maioria das produções literárias e historiográficas que de algum modo trataram do tema das etnias italianas, aderindo ou se opondo a argumentação do avanço romano. A epopeia de Virgílio seriam uma representante importante desse contexto, veiculando o ponto de vista romano a respeito das etnias italianas4. Atualmente, a academia brasileira tem produzido uma gama de materiais referentes ao estudo da Eneida5 e ferramentas que facilitam a análise da obra virgiliana, como O Dicionário da Eneida, elaborado pelo professor Milton Marques Júnior (2007), que transformou em verbetes os Livros da epopeia virgiliana. Esse trabalho tem muita. 2. No capítulo II, quando apresentamos uma análise sobre os acontecimentos do Livro III, essas questões serão discutidas. 3 Clifford Ando (2002, p.123-142) discutiu sobre a etnografia e a política do século I a. C., afirmando que na Antiguidade não havia um conceito bem definido de “unidade italiana”. Segundo a sua concepção não devemos pensar que existia uma entidade política e superior nesse período, pois nem o grego, nem o latim possuem um termo que resuma a comunidade vasta que conhecemos hoje como nação. Tampouco era óbvio que se poderia unificar toda a população da península itálica, pois nem a língua, nem os costumes, nem a cultura de cada um dos povos que habitavam essa região ou mesmo a cidadania romana era concebida como um todo tradicional. 4 Mas, isso não significa que os povos italianos foram passivos frente à dominação romana ou que os autores da época augustana desconsiderassem sua existência e relações com Roma. Ver Ames & Santis (2011, p.391408) 5 Dentre alguns estudos produzidos pela academia brasileira sobre a Eneida, podemos destacar: ALMEIDA, Felipe dos Santos. O augúrio no Livro II da Eneida: a destruição de Troia e o Destino de Eneias. Dissertação de Mestrado em Letras da UFPB. João Pessoa, 2011; ALBERTIN, Alcione Lucena de. Catábase de Eneias: um ato piedoso. Dissertação de Mestrado em Letras da UFPB. João Pessoa, 2008; MOTA, Thiago Eustáquio Araújo. Do Descensus à Consecratio: analisando os funerais heroicos na Eneida de Virgílio (I a.C.). Dissertação de Mestrado em História da Universidade Federal de Goiás. Goiás, 2011.

(17) 17 importância, pois fornece uma explicação minuciosa do poema e apresenta um conjunto de imagens dos locais mencionados na narrativa. Outro ponto positivo desse esforço foi que sua elaboração partiu da leitura da Eneida em sua língua original e não de uma tradução já realizada. Como podemos perceber, através dos exemplos citados, a Eneida coloca ao nosso dispor um amplo leque de informações e possibilidades de estudos. Ao fazer um recorte da epopeia virgiliana, bem como da história de Roma procuraremos abordar questões referentes à política implementada por Otávio Augusto, à vida cívica da cidade, ao myhto, à memória e à religião romana, na tentativa de demonstrar como essas questões se encontravam entrelaçadas na construção da personalidade heroica de Eneias, lapidada nas provações pelas quais passou durante o exílio de Troia a Cartago, conforme descrito no Livro III da Eneida. Na epopeia virgiliana o discurso religioso se faz bastante presente, principalmente pelo fato da observância religiosa caracterizar o personagem principal, que ao longo da trama recebe o epiteto pio para designar essa característica. Isso implica tecermos algumas considerações sobre como se constituía a religião do Império Romano no século I a. C., a fim de entender melhor sobre quais princípios Virgílio sustentou o perfil do herói do seu poema. Para endossar essa discussão abordaremos ainda como o discurso religioso aparece na literatura greco-latina relacionada à personagem Eneias vinculado a um discurso religioso sobre o mythos do herói sobrevivente da Guerra de Troia e fundador das bases de Roma6. De acordo com a perspectiva de Jörg Rüpke (2007, p.3) a Itália, sobretudo nas suas regiões costeiras, já era parte de um intercâmbio cultural em uma fase pré-histórica. Sinais e práticas religiosas estavam presentes nessa região a partir do antigo Oriente Próximo, via cultura fenícia, pelo menos indiretamente, através de Cartago, e via a Grécia e etruscos. Esses grupos partilharam um “conhecimento” religioso na forma de nomes ou instituições rudimentares na área de práticas culturais que chamamos religião e o intercâmbio cultural não ficou restrito às fases fundadoras. É difícil estimar a difusão de práticas religiosas entre os latinos, úmbrios e etruscos, por exemplo. Podemos apenas supor que muitas características dos deuses, o fascínio da estatuária e representação antropomórfica, foram. 6. Essas questões serão debatidas no Capítulo III..

(18) 18 compartilhadas. Além disso, a presença contínua de escritores gregos influenciou o destaque frequente da profundidade com a qual sua cultura foi recebida pelos romanos. Estes processos tiveram consequências diretas na religião de Roma. Rituais públicos eram liderados por magistrados, posições sacerdotais eram preenchidas por membros da elite romana, e cada vez mais essas medidas se tornaram parte também da capital do Império. Ao mesmo tempo, a religião permaneceu independente em um sentido peculiar, como por exemplo, deuses podiam ser convidados a se deslocarem para outros lugares e a transferência da propriedade pública a deuses importados passou a ser objeto de decisões políticas, mas os seus rituais não eram. A religião ofereceu uma poderosa fonte para legitimar decisões políticas. O modelo dominante para a religião romana não era expansionista, foi bastante absorvente. Numerosos "deuses" na forma de estátuas, imagens ou meros nomes, foram importados, assim como as histórias sobre esses deuses, suas práticas de culto e a construção de templos. As práticas religiosas faziam parte de quase todos os domínios da vida cotidiana, banquetes, construção uma casa ou início uma viagem, geralmente, implicava a realização de pequenos sacrifícios e orações, assim como as reuniões do Senado, desfiles, ou guerras. Assim, a religião não se limitou a templos e festivais (RÜPKE, 2007b, p.4-6). Denis Feeney (2007, p.129-130) se dedicou ao estudo das formas literárias da historiografia e da épica que surgiram no final do século III a. C. e afirmou que elas incluíam a religião como um componente vital. De acordo com sua perspectiva as obras de história e os épicos romanos são fontes fundamentais para explorar a relação entre deuses e homens. Ao nos debruçarmos sobre esses textos com interesse na sua dimensão religiosa devemos ter em mente o fato de que são tipos específicos de literatura e que estão interagindo com outros discursos religiosos em suas próprias e distintas formas. Os primeiros épicos em língua latina a serem preservados e transmitidos foram escritos por homens que não eram falantes nativos da língua. Um grego de Tarento chamado Andrônico tornou-se um cidadão romano com o nome de Lúcio Lívio Andrônico e, em algum momento na segunda metade do século III a. C., traduziu a Odisséia de Homero. Perto do final do mesmo século um campônio chamado Gnaeus Naevius escreveu o Bellum.

(19) 19 Punicum7, um épico sobre a primeira guerra entre Roma e Cartago (264-241 a. C.). Cerca de trinta anos mais tarde Quinto Ênio deu o passo decisivo de usar os hexâmetros de Homero, pela primeira vez em sua composição dos Annales, um poema que descrevia a história de Roma desde a queda de Tróia até os anos que lhe eram contemporâneos. Isso nos revela uma tradição literária, que se baseava nos textos homéricos e no relato das raízes troianas do povo romano, perpetuada por poetas e historiadores, como Tito Lívio e Virgílio (FEENEY, 2007, p. 130-132). Cenas divinas dos poemas de Homero se reproduzem nos poemas épicos posteriores, conselhos e intervenções divinas, deuses falando com os seres humanos e assim por diante. Esses poemas mostram os deuses e deusas da tradição homérica em ação com uma roupagem romana. Estas perspectivas ressoaram ao público romano associando seu sucesso na guerra como consequência da manutenção de boas relações com os deuses. Ainda segundo Feeney, a épica romana tem a sua própria contribuição a dar para a forma como os romanos configuraram o seu papel no seu processo de expansão. O alcance do poder religioso da épica romana reflete o envolvimento da sociedade com os sistemas religiosos e culturais de muitos povos vizinhos e distantes, os romanos eram agora herdeiros das preocupações gregas no leste, por exemplo. A Eneida de Virgílio entra nesse cenário levando questões relacionadas à dominação dos romanos muito mais longe. Na época em que Virgílio viveu (70-10 a. C.) o Império romano havia se expandido por todo o Mediterrâneo e era governado por Otávio Augusto (63 a. C.- 14 d. C.), que reivindicou sua descendência ligada à gens de Eneias, reiterada na Eneida. A ambição dessa epopeia também incluía o projeto de mostrar como Roma teria assumido o papel de nova herdeira do patrimônio cultural mais antigo oriundo da Grécia (FEENEY, 2007, p.131-136). Diante de tais proposições sobre a religião romana, que estavam inseridas na Eneida, nos dedicaremos a tecer uma análise centrada no personagem Eneias e em como ele reunia em si características caras ao entendimento de como se organizava a vida cívica e religiosa da Roma augustana. Ao fazer um recorte tanto da história de Roma como da 7. Esse épico tem como tema principal Primeira Guerra Púnica, abordando as causas mitológicas desse eventos, e as aventuras de Eneias, a partir da sua fuga de Troia. Aos dias atuais chegaram apenas fragmentos desse poema, por esse motivo optamos por não fazermos uma análise sobre ela. Ver mais em: NAEVIUS, Gnaeus. Bellum Punicum Trad. Eric Hebert Warmington. London: William Heinemann LTD, 1936. Disponível em < https://archive.org/stream /remainsofoldlati02warmuoft#page/52/mode/2up > Acesso em 16 jun 2016.

(20) 20 epopeia virgiliana levaremos em consideração as proposta sobre o estudo do texto e do contexto elaborada por Dominick Lacapra (1983, p. 52-60). De acordo com sua perspectiva, todo texto, ou seja, todo vestígio do passado, possui dois pontos complementares: um dito documental, que diz respeito ao mundo empírico e transmite informações sobre ele; e um operante, que excede e transfigura qualquer referente empírico ao recriá-lo através de usos não convencionais da linguagem. Diante dessas questões o autor não se limita a tentativa de reconstruir o passado tal como aconteceu e não coloca em segundo plano o aspecto documental, ele reconhece e respeita o documento como um limite imposto à interpretação. Ao partir dessa perspectiva admite-se a historicidade do intérprete, o que torna inevitável a inserção do seu ponto de vista particular na definição das questões relevantes a interpretação dos fatos. Rejeita-se então a ideia da existência de uma história “verdadeira”, que pode ser recuperada a qualquer momento, como também não posiciona a história como invenção narrativa. Lacapra (1983, p.60-65) defende que textos e discursos possuem estruturas típicas, códigos e regras que se constituem como expressão do real empírico. Para que as conexões entre os significados textuais e a experiência de vida ou as “condições históricas” não sejam reduzidas a um esquema de relações mecânicas é preciso identificá-las no texto. No campo textual, nas articulações dos conceitos, imagens, argumentos e referenciais, é possível apreender os sentidos que permitem a interpretação histórica. Essa abordagem se dedica aos processos de ressignificação que inscrevem o contexto no texto. Nosso. estudo. se. concentra na seção terceira da Eneida no qual o personagem principal, Eneias, narra suas errâncias durante o exílio, descrevendo os episódios que vivenciou, junto com seus companheiros, nas terras onde aportavam e eram levados a abandonar. Nesses espaços vivenciou experiências que moldaram sua personalidade como herói digno de fundar uma nova cidade para os troianos sobreviventes da guerra que devastou o seu lar. Tendo essa questão como norte, nos pautaremos em analisar como a experiência do heroi troiano nesses espaços, fundando cidades, participando de batalhas ou fugindo de pestes, permite a articulação entre política, vida cívica e religião. Ou seja, os três elementos da sociedade romana que pretendemos discutir a partir da narrativa de Virgílio. Esse trabalho se encontra dividido em três capítulos. No capítulo I abordaremos as características gerais da Eneida, a época na qual foi escrita, as temáticas que a compõem e.

(21) 21 como se estrutura sua narrativa. Em seguida, apresentaremos algumas considerações sobre a biografia de Virgílio, que consideramos importantes para o entendimento das circunstâncias nas quais esse poeta deu início à composição do seu poema épico. Por esse motivo daremos atenção também a alguns eventos políticos que marcaram a capital do Império Romano durante esse período, século I a. C., quando Otávio Augusto deu início ao seu principado. Esse capítulo se conclui com uma discussão sobre as influências retóricas da épica virgiliana, na qual destacaremos questões relacionadas às contribuições da poesia grega à literatura latina e como podemos encontrar essas evidências na Eneida. No capítulo II realizaremos uma análise sobre o mythos e a mimesis, tendo em vista que na Eneida a referência à mitologia grega e o emprego do modelo de épica, bem como de personagens e acontecimentos, ligados aos poemas homéricos, principalmente, é frequente. Para isso nos apoiaremos no que os autores antigos, Aristóteles e Cícero, discutiram sobre esses conceitos nos apoiando no que a historiografia moderna abordou sobre eles. Em seguida, apresentaremos um resumo do Livro III da epopeia virgiliana elencando os acontecimentos que marcaram a chegada e a saída dos troianos exilados das terras onde aportaram na sua viagem de Troia à Cartago. Concluiremos essa seção com um debate sobre como o espaço e a memória aparecem articulados na narrativa de Virgílio. Iniciaremos o capítulo III discutindo sobre como o mythos de Eneias foi escrito na literatura greco-latina, a fim de destacar como, apesar de ter se dedicado a produzir uma epopeia sobre um personagem que já existia e pertencia a uma tradição literária, Virgílio construiu um heroi e problematizou em sua personalidade questões especificamente romanas. A partir disso analisaremos as características mais marcantes do perfil do herói da Eneida, destacadas no Livro III, e como elas se relacionavam aos valores éticos que deveriam ser cultivados dentro dos muros de Roma, no século I a. C., referentes à religião, a política e a vida cívica..

(22) 22 1. A ENEIDA EM TEXTO E CONTEXTO A escrita da Eneida, datada de 19 a. C., teria sido encomendada por Otávio Augusto, porém não chegou a ser concluída por ocasião da morte do seu autor. Mesmo assim, foi publicada. Composta por doze Livros, sua narrativa pode ser dividida em dois blocos: o primeiro (do Livro I ao VIII) possui uma estrutura semelhante à Odisseia, trata das errâncias do herói troiano Eneias, que juntamente com alguns compatriotas, percorre os mares em busca de uma nova pátria e ao longo da sua viagem passa por ilhas, nas quais se depara com várias provações; o segundo (do Livro IX ao XII) segue os moldes da Ilíada, sua trama ocorre no cenário terrestre e aborda a temática de uma guerra motivada por uma mulher, no poema de Homero, Helena, e no de Virgílio, Lavínia, a filha do rei Latino. Mas, isso não significa que Virgílio se inspirou apenas nos poemas homéricos, mas que este foi um dos seus subsídios durante a composição do seu poema. Ao olharmos mais profundamente percebemos que o poeta romano se apoiou em várias scholia de pensamento da sua época, como veremos no decorrer desse trabalho. De maneira geral, a epopeia de Virgílio narra a história dos sobreviventes da Guerra de Troia que, liderados pelo herói Eneias, se lançam ao exílio no mar em busca de uma terra prometida pelos deuses na Itália onde fundariam uma cidade, Lavínio, base de um futuro império. Estes homens levam consigo seus deuses domésticos, garantindo assim a existência da sua cidade, mesmo após a sua destruição física. Ao longo da sua viagem, os troianos passam por intensas provações. Uma delas se dá quando Eneias e seus companheiros aportam em Cartago e o herói é convidado pela rainha, Dido, a narrar suas aventuras nos primeiros anos de exílio. Nesse evento, Vênus induz a rainha e se apaixonar pelo líder dos troianos, o que se revela como mais uma provação, visto que ele é obrigado a deixar sua amada para dar prosseguimento a sua viagem, pois recebe um alerta divino. Por esse motivo, ele parte, deixando Dido, que acaba se suicidando por ter sido abandonada. Os troianos aportam na Sicília, onde realizam jogos fúnebres em homenagem a Anquises, morto durante a viagem. Após esse evento seguem para Cumas, onde encontram a sacerdotisa de Apolo, Sibila. Ela e Eneias partem para uma viagem ao mundo dos mortos para encontrarem o pai do herói. Em seguida, os troianos se reúnem e se dirigem á Itália, onde são recebidos amistosamente pelo rei Latino, de cuja filha, Lavínia, Eneias se torna pretendente a casamento. Em meio a isso, os povos dessa região, liderados por Turno,.

(23) 23 antigo pretendente da filha do rei, instigados pela deusa Juno, declaram guerra aos recémchegados à sua terra. Após um intenso combate os troianos saem vitoriosos e o líder perdedor é assassinado pelo líder vencedor. Virgílio valorizou muitos aspectos da cultura greco-romana na sua epopeia, como mitos e fatos relevantes da história, e construiu personagens dotados de um sentimento de devoção aos deuses, principalmente no que diz respeito a Eneias, o herói piedoso8. No século I a. C. a epopeia romana abrangia vários gêneros. Ela reunia os elementos considerados característicos da tragédia, da comédia e da sátira, por exemplo. Seu relato referia-se a um momento de mudança no mundo: o nascimento dos deuses; o fim de uma grande civilização; um exemplo de moralidade; a formação do mundo, dentre outras temáticas. Pierre Grimal realiza uma análise sobre o período e afirma que “uma epopeia será o poema das origens” (GRIMAL, 1992, p. 187). Virgílio narrou à gênese do povo romano na Eneida. Nas próximas páginas apresentaremos detalhes sobre como e quando esse poema foi composto, partindo da descrição da sua estrutura em direção às influências do seu autor. 1.1. Virgílio: os resquícios de uma biografia As informações sobre a vida de Virgílio são bastante escassas. Os dados de que dispomos sobre a vida do poeta advêm do De Poetis Vita Vergilii, texto que faz parte da obra De Poetis, escrita por Suetônio, na qual ele apresenta uma série de biografias de alguns personagens importantes da poesia romana: Terêncio, Virgílio, Horácio, Lucano, Tíbulo e Persio. Este é um dos principais documentos sobre a vida desses poetas, que chegou aos dias atuais. Não sabemos precisamente a data de sua composição, apenas que no século IV d. C. o gramático Elio Donato reproduziu o texto de Suetônio no seu Comentarium ad Vergilium9·. Segundo Suetônio (A vida de Virgílio, 1-5), Públio Virgílio Maro nasceu em Mântua, em 70 a.C., época do primeiro consulado de Marco Licínio Crasso e Gneu 8. Nas primeiras linhas da Eneida (I, 3) Eneias é apresentado como um guerreiro dotado de pietas, entendida como respeito e devoção aos deuses, característica que se mostra como a principal desse personagem ao longo do poema. Essa questão será discutida no tópico Pietas, virtus e religio: da Eneida aos cultos públicos de Roma, no capítulo III. 9 Utilizamos um texto bilíngue, latim e espanhol, traduzido por Martha Elena Montemayor, publicado em 2009, no México. Isso nos leva a ter um pensamento crítico ao utilizar informações dessa fonte, mas apesar disso não deve ser descartada, pois é o registro mais detalhado que temos em mãos sobre a vida de Virgílio..

(24) 24 Pompeu. Ele fazia parte da gens Vergilius, a família de seu pai era de origem etrusca nascida em Mântua e sua mãe de origem romana. Não há informações sobre a profissão que seu pai desempenhava, para alguns ele era um oleiro e para outros um arrendatário de terras. O biógrafo (A vida de Virgílio, 4-5) procura destacar detalhes sobre a vida privada do poeta romano, assim como fizera também com Otávio Augusto em A vida dos Doze Césares, dando ênfase às previsões divinas que teriam acompanhado seu nascimento. De acordo com uma dessas anedotas pouco antes de dar à luz a mãe de Virgílio teria sonhado que paria um loureiro cujos ramos chegavam ao céu, uma árvore frondosa e cheia de frutos e ao nascer, ele não teria chorado, revelando um presságio de nobreza e “predileção divina” no futuro poeta. Certo tempo depois, foi plantado um choupo no local de seu nascimento, onde as gestantes pediam por proteção durante o parto. As primeiras poesias que Virgílio compôs datam de sua adolescência, por volta dos dezesseis anos, Suetônio nomeia algumas delas: Cantalepton, Priapea, Epigramas, Dirae, Ciris e Culex. Sobre a Eneida esse biógrafo afirma que inicialmente o poeta romano pretendia escrever sobre a história de Roma, porém desistiu por se considerar incapaz de empreender um projeto de tal magnitude e se deteve na composição das Bucólicas, dedicada a Asínio Polião em agradecimento por ele ter salvado as poucas terras da sua família do confisco a mando dos triúnviros, após a vitória na batalha de Philipos10, que seriam doadas aos soldados que participaram dessa guerra. Em seguida, escreveu as Geórgicas, cuja composição durou sete anos, em homenagem a Mecenas por tê-lo auxiliado em novos conflitos fundiários com os veteranos de guerra, para só então dar início à composição da sua épica (A vida de Virgílio, 19). O autor da Eneida teria iniciado sua carreira em Cremona, por volta de 53 a. C., mas posteriormente se mudou para Roma. Antes da poesia dedicou-se ao estudo da Matemática, Medicina e da Retórica, tendo uma curta e frustrada carreira no campo do Direito. O poeta mantuano é apresentado por Suetônio como uma figura que não gostava de aparecer em público, mesmo depois de ter alcançado certa fama, preferia ficar em retiro no campo. Virgílio sentia gosto pelas coisas relacionadas ao espírito: o estudo das leis que governavam o universo, busca da serenidade interior e a poesia, arte a que irá se dedicar 10. Batalha que ocorreu na cidade de Phillipos, localizada na Grécia, no ano 42 a.C., entre Marco Antônio, Otávio e Lépido, membros do segundo triunvirato, e Marco Júnio Bruto e Caio Cássio Longino, principais envolvidos no assassinato de César..

(25) 25 pelo resto da sua vida (A vida de Virgílio, 6-15). Alguns autores da modernidade, como Grimal (1992, p.30-39), afirmam que apesar de Virgílio ter seguido os princípios epicuristas11, pregados por seu mestre Sirão, não escondeu seu gosto pela poesia, visto que durante algum tempo essa arte foi condenada pelo epicurismo como causa do temor da morte, nutrir paixões e dar exemplos de cólera. Logo, era concebida como um perigo à calma interior, a essência do Bem. Apesar disso, os epicuristas encontraram um ramo da poesia que os atraíram, pois ela podia agir sobre a alma como um calmante e fazia adormecer as angústias, uma vez que apresentava imagens que davam alegria ao espírito, como por exemplo, a harmonia entre homem e natureza, a poesia pastoril. As Bucólicas de Virgílio foram um exemplo dessa poesia, ela exalta a vida simples do campo (GRIMAL, 1992, p. 60-79). É importante destacar que o epicurismo foi a primeira das escolas gregas cujas ideias foram apresentadas em latim. Além disso, o autor da Eneida foi familiarizado com o De rerum natura, de Lucrécio, a mais antiga, existente, articulação do epicurismo em latim. Virgílio também fez parte do mesmo círculo de estudos que Ário Dídimo, um filósofo estóico que foi professor de Augusto. Estudos, como o de Susanna Morton Braund (1997, p.205-221), apontam que Virgílio não era membro doutrinário de nenhuma escola de pensamento, mas que ele utilizou ideias diferentes para propósitos e contextos também diferentes. Muitas das suas ideias foram influenciadas por Homero e Hesíodo, autores que formaram a base da educação antiga. Virgílio explorou questões e dilemas centrais para as escolas filosóficas helenísticas, mas isso converge com as preocupações ideológicas e éticas da elite republicana romana. Toda esta questão de interpretação desse poeta como um aderente ou mesmo um advogado de determinados pontos de vista filosóficos ou religiosos está intimamente ligada com a recepção dos seus poemas em diferentes épocas e lugares. No que diz respeito ao texto antigo sobre Virgílio, o biógrafo Suetônio (A vida de Virgílio, 2009, 13, p.216-217) afirma que apesar de ter dedicado boa parte da sua vida ao recolhimento o autor da Eneida fazia parte do círculo de Mecenas e através dele se 11. O epicurismo teria se consolidado em Atenas, por volta de 306 a.C., quando Epicuro funda a sua Escola do Jardim. Em linhas gerais essa doutrina pregava a reconciliação do homem com a natureza, tentava também explicar o mundo através de uma lógica que levava à ética. Baseava-se na moralidade e ensinava o homem a buscar a sabedoria e a felicidade individual. Não se sabe com exatidão como essa doutrina chegou aos romanos, apenas que foi bem assimilada. No século I a.C. o epicurismo já era bem difundido em Nápoles, onde Sirão, mestre de Virgílio, conseguiu difundir essa filosofia (SILVA, 1985, p.10-17)..

(26) 26 aproximou de Otávio Augusto, que após o período de guerras civis deu início ao projeto de revitalização do império e à propagação da imagem da família imperial e para isso contratou os melhores artistas e arquitetos, a fim não só de realizar obras públicas, mas também de resgatar as tradições e escrever sobre a gênese do povo romano. A pedido do princeps (A vida de Virgílio, 35-37, p.225-227), Virgílio começou a escrever a Eneida em 29 a. C., pouco depois da vitória na Batalha do Ácio, quando Cleópatra e Marco Antônio foram derrotados. Durante a fase de conclusão da epopeia, aos 52 anos de idade, o poeta realizou uma série de viagens entre a Grécia e a Ásia, a fim de conhecer os lugares onde se passavam os acontecimentos do seu poema, mas acabou adoecendo antes de concluí-la. Faleceu em 19 a. C., na cidade de Bríndisi. Seus restos mortais foram sepultados em Nápoles, na Via Puteolana, onde se encontram os seguintes dizeres: “Mântua me gerou, os calabreses me raptaram, agora eu tenho Partenope; eu cantei as pastagens, os campos e as guerras” (A vida de Virgílio, 36). 1.2. Da política do Augustus aos primeiros passos de um poema Para entender a Eneida é importante compreender o tecido histórico no qual ela se inseria. Essa poesia parece estar ligada ao projeto político de Otávio Augusto, que após a morte de César, seu tio que o adotou como filho, precisou enfrentar a resistência do Senado em aceitá-lo como herdeiro do governo de Roma. Nesse cenário se encontram alguns pontos que devem ser enfatizados, dentre eles a política de renovação das tradições e dos prédios públicos de Roma após as guerras civis, por volta de 31.a.C., e a ênfase dada pelo princeps à origem divina da gens Iulia, utilizada como uma das justificativas para a concessão do status de deidade a César e assegurar sua posição como seu herdeiro legítimo, se considerando descendente de Eneias, o filho de Vênus e fundador de Lavínio. Essas informações não se encontravam veiculadas apenas na literatura, como percebemos na Eneida, de Virgílio, e na História de Roma, de Tito Lívio, por exemplo, mas estavam presentes também nos monumentos da capital do império, como na Ara Pacis, construída em homenagem a Otávio Augusto e sua família. Esse altar ilustra como a ligação entre a gens Iulia e Eneias era uma história que não estava ao dispor apenas de uma seleta camada da sociedade, mas aberta ao público, como veremos mais adiante. No que se refere à epopeia virgiliana, o governo de Otávio Augusto era uma profecia dos deuses, algo.

(27) 27 inevitável, pois havia sido planejado desde muito antes da fundação de Roma. Podemos perceber isso em uma de suas passagens, quando Júpiter revela o destino de Eneias e seus descendentes para Vênus:. César de Troia, de origem tão clara, até as águas do Oceano vai estender-se; sua fama há de aos astros chegar dentro em pouco. Do claro nome Iulo provém o cognome de Júlio. Livre do medo infundado há de um dia no Olimpo acolhê-lo, rico de espólios do Oriente. Invocado vai ser pelos homens. Então, suspensas as guerras, aquietam-se os ásperos sec’los. A boa Fé, Vesta e Remo, de par com o irmão Quirino, ditarão leis; os terríveis portões do Castelo da Guerra serão trancados com traves e ferros ingentes, e dentro o ímpio Furor, assentado sobre armas fatais, amarradas as mãos nas costas, a boca a espumar só de sangue, esbraveja12. (Eneida, I, 285-295). Apesar de lermos na primeira linha “César de Troia” (Troianus origine Caesar), na sequência percebemos a descrição de alguns feitos de Otávio Augusto: 1) ao se proclamar Augustus, em 27 a.C., garantindo a sua deificação; 2) ao obter sucesso em suas campanhas pelo Oriente; 3) ao conseguir por fim às guerras civis, simbolizado pelo ato de fechar os portões do Templo de Jano, referido na citação acima como Castelo da Guerra 13. Em sua poesia, Virgílio faz mais algumas menções ao triunfo do princeps, por exemplo, quando relata a comemoração dos jogos Ilíacos no Ácio:. Na praia de Ácio os desportos troianos então celebramos: os companheiros, desnudos os corpos e untados de azeite, travam-se, alegres de terem passado por tantas cidades gregas, sem risco, e escapado da fúria dos fortes argivos. Nesse entrementes, o sol concluía seu círculo grande, e o negro inverno com ventos furiosos o mar encrespava. Nas portas cravo do templo um escudo de côncavo bronze, que Abante apenas usara, o gigante, e um só verso lhe aponho: 12. Nascetur pulchra Troianus origine Caesar,/ imperium oceano, famam qui terminet astris,/ Iulius, a magno demissum nomen Iulo./ Hunc tu olim caelo, spoliis Orientis onustum,/ accipies secura; vocabitur hic quoque votis./ Aspera tum positis mitescent saecula bellis;/ cana Fides, et Vesta, Remo cum fratre Quirinus,/ iura dabunt; dirae ferro et compagibus artis/ claudentur Belli portae; Furor impius intus,/ saeva sedens super arma, et centum vinctus aenis/ post tergum nodis, fremet horridus ore cruento (Eneida, I, 285-295). 13 Detalhes sobre feitos de Otávio Augusto foram disseminados pelo império, através de obras como a sua Res Gestae, publicada depois da Eneida, onde procurou descrever todas as suas conquistas políticas e militares e na obra de alguns autores como Tito Lívio, que em A história de Roma Livro I também ressaltou esses eventos..

(28) 28 ESTE TROFÉU FOI GANHO NA GUERRA DOS GREGOS14. (Eneida, III, 275-285). Eneias e seus sócios15 participam dos jogos e o escudo que o herói deixa como presente no templo do Ácio denota a intenção de Virgílio de fazer uma alusão a um dos principais feitos de Otávio Augusto: a vitória na guerra contra Marco Antônio e Cleópatra, na batalha naval ocorrida no Ácio, bem como ao clípeo honorífico, um escudo que o Senado e o povo romano presentearam Otávio, em 27 a. C, para celebrar seu sucesso militar. A escrita de Virgílio nos leva a perceber uma intenção de contar na Eneida não só a história de Eneias e seus sócios, mas também a do governo de Otávio Augusto, associando o imperador sempre a uma profecia divina, bem como da cultura do povo romano. Paulo Martins (2011, p.162-179) se dedicou à análise da memória aeterna na época do governo de Otávio Augusto, e afirma que a epopeia foi a responsável pela construção de uma memória atemporal e coletiva, mas restrita a uma camada da sociedade, que possuía acesso à educação letrada ou, pelo menos, aos círculos letrados. O tempo era manipulado com tal destreza que a figuração podia ser facilmente confundida nas três possibilidades temporais: passado, presente e futuro. Essa figuração omnitemporal amplificava as qualidades do ser figurado quase como uma deificação. A partir do momento em que Otávio assumiu suas funções públicas devido à morte do seu pai adotivo, Júlio César, passou a seguir seu cursus honorum, funções e prerrogativas distintivas dos homens bemnascidos, o que transferiu sua capacidade de influência do âmbito privado para o público. Nesse momento suas imagens não se restringiam mais aos Lares familiares, mas passaram a ser também alvo da representação pública. Suas atividades civis, militares, políticas e religiosas determinaram um tipo especifico de representação, que somadas produziram um acúmulo de figurações que só puderam ser sintetizadas com a divinização. A ênfase nesses pontos pode ser explicada em parte pelo programa político ideológico implantado por Otávio Augusto visando engrandecer sua imagem, fato que ficou 14. Actiaque Iliacis celebramus litora ludis./ Exercent patrias oleo labente palaestras/ nudati socii; iuuat euasisse tot urbes/ Argolicas mediosque fugam tenuisse per hostes./ Interea magnum sol circumuoluitur annum,/ et glacialis hiems Aquilonibus asperat undas./ Aere cauo clipeum, magni gestamen Abantis,/ postibus aduersis figo et rem carmine signo:/ AENEAS HAEC DE DANAIS VICTORIBUS ARMA (Eneida, III, 275-285). 15 Em Latim sociis, termo utilizado na Eneida para designar os companheiros de Eneias: (I, 550); (I, 630); (II, 745); (III, 230); (III, 255); (VII, 35); (IX, 5); (X, 255); (XI, 880)..

(29) 29 claro nos textos e na estatuária dos prédios públicos da cidade de Roma. Como aponta Paulo Martins (2011, p. 30-35) as imagens possuem a finalidade de aferir o tempo, são um retrato do poder repercutido em figuras “idealizadas”, que funcionam como marca da amplificação e divinização do ser figurado. No que se refere a Otávio Augusto refletem a ideia de que seu governo restabelece a “idade de ouro”, operada sistematicamente através de textos e imagens veiculados na sua época. “Portanto, a finalidade da imagem corresponde à observação da anterioridade, simultaneidade e posterioridade ao presente enunciativo, que impõem ao poder de Augusto marca diferenciada de aeternitas” (MARTINS, 2011, p.31). Otávio Augusto assumiu a função de Imperator, Caesar, Princeps e Pontifex, caminho que já havia sido delineado no final da República, com o governo ditatorial de César. Mesmo assim, foi o responsável pela construção de um ideário sustentado na divulgação de sua imagem, tanto na literatura como na iconográfica, de um modo que não havia precedentes. A Ara Pacis Augustae16 é um dos monumentos icônicos do projeto de divulgação da imagem de Augusto. Esse altar foi construído na Via Flaminia, estrada que ligava o centro de Roma ao Norte da Itália, uma das principais portas para a campanha, empreendida pelo princeps, de expansão do território romano rumo ao Mediterrâneo. Próximo a esse altar existiam mais três monumentos dedicados à família Iulia: o Horologium Augusti, um relógio de sol; Ustrinum Domus Augustae, local no qual os membros da gens Iulia eram cremados; e o Mausoleum Augustus, túmulo erigido para abrigar os restos mortais dos membros dessa gens e de alguns amigos notáveis. No centro da cidade encontrava-se a Curia Iulia. Abaixo observamos o mapa para melhor ilustrar nossa descrição:. 16. As primeiras peças desse altar foram encontradas em escavações realizadas em 1568 e finalizadas em 1938. Sua localização original era no Campo de Marte, posteriormente foi reconstruído e atualmente se encontra na Via di Ripetta, em frente ao Mausoléu de Augusto. Foi construído inteiramente em mármore e possui as dimensões de 11 x 10m, em seu interior encontra-se um altar em forma de U. Disponível em: http://digitalaugustanrome.org/..

(30) 30 FIGURA 1 – Mapa da Via Flaminia. Mapa da Roma Augustana – Século I a.C. Digital Augustan Rome. Disponível em < http://digitalaugustanrome.org/map/#/rome/filter:0/ >. Acesso em 15 jun. 2015. Notar Horologium Augusti (número 55); Ustrinum Domus Augustae (número 58); Mausoleum Augustus (número57); Ara Pacis (número 56); Curia Iulia (número 146). Com alterações da autora.. Os monumentos destacados na figura 1 foram algumas das principais construções erigidas para homenagear a gens Iulia. Daremos destaque à descrição da Ara Pacis, pois nela se encontra um painel que retrata Eneias. Esse altar foi inaugurado por volta do ano 9 a.C., ou seja, após a publicação da Eneida em 19 a.C., em homenagem à deusa Pax (Paz), para celebrar o período da pax romana e a vitória de Augusto na Gália e na Hispânia, em 13 a.C. Na sua Res Gestae, o imperador explica o motivo de sua construção:.

(31) 31 Quando voltei da Espanha e da Gália, alcançando o sucesso em todos os feitos nessas províncias e sendo cônsules Tib. Nero e P. Quintílio, o senado, tendo em vista meu retorno, determinou que o altar da Paz Augusta devia ser consagrado junto ao Campo de Marte; ordenou que, nele, as autoridades, sacerdotes e virgens vestais fizessem um sacrifício anual (Res Gestae, 12).. Esse altar possui duas entradas decoradas com imagens associadas à origem divina da gens Iulia, ao sucesso do Império Romano e à glória obtida pelo princeps, além de correlações com a literatura da época, em particular com a obra de Virgílio. Na figura 1 o herói troiano, Eneias, aparece acompanhado por dois ajudantes, um portando uma bacia e um jarro, e outro conduzindo a porca que seria sacrificada. Esse animal carrega um teor simbólico significativo, visto que na Eneida o encontro com uma porca amamentando seus filhotes é profetizado pelo adivinho Heleno, quando Eneias visita o Epiro17, como o local no qual finalmente teria chegado ao seu Destino (Eneida, III, 385-390). Nesse mesmo painel aparece também um templo na parte superior esquerda, representando os Penates troianos, que Eneias carregou consigo desde o momento da sua fuga de Troia: FIGURA 2 – Painel da entrada principal da Ara Pacis Augustae. Vista do painel direito da entrada da Ara Pacis. Eneias realizando sacrifício aos deuses domésticos. Material: Mármore. Datação: 9 a.C. Museu Ara Pacis. Disponível em < http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>. Acesso em 17 jun. 2015.. 17. Mais detalhes sobre os acontecimentos do Livro III da Eneida são comentados no capítulo II..

(32) 32 Como mostra a figura 3, observamos fragmentos de uma cena na qual figuram Rômulo e Remo, a loba que os amamentou, o pastor Fáustulo, apoiado em uma bengala, e à sua esquerda o divino pai dos gêmeos, Marte. Segundo o mito, Rômulo foi o fundador de Roma e de sua linhagem nasceram os soberanos do império, dentre eles estavam César e Otávio Augusto. FIGURA 3 – O Lupercal. Vista do painel esquerdo da entrada principal da Ara Pacis. O Lupercal. Material: Mármore. Datação 9 a.C. Disponível em < http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>. Acesso em 17 jun. 2015.. A Ara Pacis possui mais dois painéis, um da deusa Tellus e outro da deusa Roma. Na figura 4 temos a deusa da Terra, ela se encontra rodeada por algumas plantas e sentadas em seu colo estão duas crianças. Nas laterais observamos duas ninfas seminuas, uma sentada em um cisne em voo, simbolizando o ar, e outra sobre um dragão do mar. Estes dois animais representam a paz na terra e no mar. A interpretação da cena é incerta, a figura central poderia ser a Vênus Genetrix (deusa Mãe) ou uma personificação da Itália, ou talvez até mesmo a personificação do Pax18.. 18. Para mais informações sobre as interpretações das imagens da Ara Pacis ver: Museu da Ara Pacis. Disponível em < http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>. Acesso em 17 jun. 2015..

(33) 33 FIGURA 4 – A Deusa Tellus. Vista da entrada norte da Ara Pacis. A deusa Tellus. Material: Mármore. Datação 9 a.C. Disponível em < http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>. Acesso em 17 jun. 2015.. Na figura 5 temos a deusa Roma, deste painel sobraram poucos fragmentos, mas eles são suficientes para reconhecer a deusa, vestida como uma amazona sentada sobre uma pilha de armas indicando os povos conquistados. Essa imagem mostra os alicerces da paz e da nova ordem imposta pelo Império Romano: FIGURA 5 – A Deusa Roma. Vista da entrada norte da Ara Pacis. A deusa Roma. Material: Mármore. Datação 9 a.C. Disponível em < http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>. Acesso em 17 jun. 2015..

(34) 34. Na figura 6 observamos outro painel do altar onde foi esculpido um conjunto de imagens de personagens da elite romana. Percebemos que se trata da cena de um evento festivo. Possivelmente uma comemoração á pax augustana. É uma das cenas mais preservadas do altar, com personagens da família imperial: FIGURA 6 – Procissão imperial da Ara Pacis Augustae. Vista da lateral esquerda da Ara Pacis. Procissão imperial. Material: Mármore. Datação: 9 a. C. Disponível em < http://vacioesformaformaesvacio.blogspot.com.br/2013/01/ara-pacis-escultura-monumentos.html >. Acesso em 17 jun. 2015.. Como podemos perceber, Otávio Augusto explorou a crença na sua descendência divina, priorizando a sua ligação com Eneias, não só na literatura, como também nas imagens da família imperial que compunham o cenário da cidade de Roma. Estes são apenas alguns dos elementos simbólicos que esse governante se utilizou para construir uma imagem pública que legitimasse seu poder. As imagens, como as mostradas acima, e textos, como a Eneida, foram utilizados por Otávio Augusto possivelmente como ferramentas de propaganda política. Ele espalhou pela capital do império ideias e crenças através do aparato imagético- textual, que serviram de subsídio para que fosse aceito como um governante praticamente absoluto, herdeiro do divino César, o que resultou na sua consagração como Augustus e no nascimento do culto imperial. Essas estratégias podem ser observadas nas medidas tomadas pelo princeps após a morte de César, quando reivindicou sua posição como seu sucessor e aliou-se a Marco Antônio e Lépido, por volta de 43 a. C. O futuro imperador obteve a aceitação do Senado,.

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