• Nenhum resultado encontrado

Nas épicas gregas e romanas o herói geralmente é um individuo que possui algum grau de parentesco com uma divindade e recebe a missão de realizar tarefas enviadas pelos deuses. São essas missões que diferenciam os heróis dos outros homens. Gregory Nagy (2005), analisando o “herói épico” a partir da comparação entre distintas construções poéticas no mundo antigo, afirma que a palavra grega hêrôs na tradição clássica, reúne três características básicas: a) um indivíduo atemporal ou que poderia facilmente ser deslocado de um tempo para o outro; b) um indivíduo feito de extremos positivos ou negativos, que sempre se destaca em todas as atividades; c) um indivíduo que se antagoniza com os deuses, mas que desenvolve uma relação de atração, ao mesmo tempo. O autor exemplifica com os modelos de Héracles e sua relação de antagonismo e reconciliação com Hera, e de Eneias, com relação à Juno (NAGY, 2005, p. 87-88).

Na tradição latina, durante o principado de Otavio Augusto (14 a.C. -27 d.C.), o mito do herói fundador das bases do Império Romano, Eneias, narrado por Virgílio na

Eneida, ganhou respaldo. Podemos dizer que seu perfil segue o modelo dos heróis da épica

grega, traçado por Hesíodo em Trabalhos e Dias e confirmados por Homero na Ilíada e

Odisseia64. Além disso, o passado de Eneias estava ligado à tradição grega, pois o herói romano era também um troiano sobrevivente da guerra que devastou sua pátria. O império romano encontrava assim suas raízes no passado grego.

Hesíodo narrou como se dava a organização do mundo dos mortais, sua origem, limitações, deveres e como se fundamentava a condição do ser humano. De acordo com seus Trabalhos e Dias (105-195), os homens foram criados pelos deuses, especificamente por Zeus, divididos em cinco raças, ouro, prata, bronze, os heróis e ferro. A primeira raça se origina na época em que Cronos reinava, são homens que desconheciam os males, vivam de

64

Sobre a concepção acerca de como o perfil do herói da épica clássica foi traçado por Hesíodo e confirmado pelos poetas que o sucederam ver também Marques Júnior (2007, p.9-32).

festas e bonanças e quando morriam se transformavam em gênios, responsáveis por cuidar dos vivos. A segunda era inferior à antecessora vivia cem anos como crianças, junto às suas mães, e na adolescência morriam, além de sofrerem dores terríveis, pois se entregavam aos Excessos e não queriam servir, nem oferecer sacríficos aos deuses. A terceira preocupava- se apenas com as artes bélicas, eram fortes, violentos e suas armas eram feitas de bronze, mas morriam anônimos e sem glória. A quarta raça, os heróis, caracterizava-se pela justiça e coragem, eram semideuses e foram enviados para as guerras em Tebas e em Troia, onde morreriam em busca de glória. Ao contrário dos deuses eram mortais, no entanto depois que morriam Zeus os guiaria até a Ilha dos Bem-Aventurados e três vezes por ano a natureza lhes forneceria uma rica colheita. A quinta raça, Hesíodo lamenta não ter vivido antes ou depois, eram os homens, vivia num misto de bens e males, desrespeitam os deuses, saqueavam cidades e por isso seu futuro era sombrio.

Os heróis a raça “mais justa e mais corajosa” (Trabalhos e Dias, 158) deveria lutar pela manutenção da Justiça no mundo dos homens e pela realização da vontade dos deuses, evitando a qualquer custo desrespeitá-los, caso contrário o Respeito (aidós) e a Retribuição65 (némesis) os abandonariam, pestes os acompanhariam e nenhuma força impediria que a vingança divina se concretizasse66 (Trabalhos e Dias, 195-200). Abaixo um trecho do poema de Hesíodo no qual a raça dos heróis é descrita:

Zeus Cronida fez a mais justa e corajosa, raça divina de homens heróis e são chamados

semideuses, geração anterior à nossa na terra sem fim. A estes a guerra má e o grito temível da tribo

a uns, na terra Cadméia, sob Tebas de Sete Portas fizeram perecer pelos rebanhos de Édipo combatendo, e a outros, embarcados para além do grande mar abissal a Troia levaram por causa de Helena de belos cabelos, ali certamente remate de morte os envolveu todos (Trabalhos e dias, 155-165).

Essa raça era chamada de semideuses, pois era concebida pela relação de um deus com um mortal. No entanto, vale ressaltar que nos poemas homéricos isso não era uma regra. Apesar de Aquiles ser filho de uma deusa, Thétis, e de um mortal, Peleu, Heitor era

65 De acordo com o Oxford Latin Dictionary (p.1169) o termo nemesis pode ser traduzido como a deusa grega Retribuição.

66

Foi pelo desrespeito a Zeus que Troia, e mais precisamente a linhagem de Príamo, foi condenada à extinção (Eneida, II, 545-560).

filho de dois mortais e não possuía um vínculo direto com uma divindade, sendo também considerado um herói67. Os heróis possuem a Thémis, a justiça divina, e por esse motivo sua missão é fazer valer a Díke, justiça que rege o mundo dos homens, garantindo a harmonia com os deuses68. Na Teogonia , (130-138), Hesíodo afirma que a Thémis nasceu das forças primordiais, Urano e Gaia, ou seja, é uma titânide. Além disso, ela é também a segunda esposa de Zeus. Dessa união nasceram as Horas, Irene (Paz), Díke (Justiça) e

Eunômia (Equidade), que eram responsáveis por guardar as portas do Olimpo e cuidar dos

campos (Teogonia, 901-906). A Díke é uma extensão da Thémis (Trabalhos e Dias, 256- 264), assim como suas irmãs, mas era responsável por garantir a justiça no mundo dos homens. Sempre que algum mortal se atrevesse a cometer injúria contra ela à dor e o sofrimento seriam lançados á terra até que a dívida por tal insolência fosse paga.

Uma vez chamado para realizar as tarefas designadas pelos deuses o herói abandonava o mundo que ele conhecia e passava a viver em outro, ganhava conhecimentos pela experiência e se tornava uma pessoa diferente. No desenrolar da Eneida percebemos essa mudança em Eneias. Ele inicia sua jornada com medo (Eneida, II, 726-729), incertezas (Eneida, III, 5-7), e lágrimas (Eneida, III, 10), mas a encerra como um sacerdote fundador de cidades (Eneida, XII, 193-194) e um líder guerreiro (Eneida, XII, 950-952). No Livro III podemos perceber nitidamente essa transformação na postura de Eneias, pois ao longo das suas andanças se depara com situações que o obrigam a desenvolver determinadas características que culminaram na sua transformação no herói cumpridor da vontade dos deuses e fundador de cidades, do final da epopeia.

O personagem Eneias não foi criado por Virgílio, ele faz parte de uma tradição literária anterior à Eneida: seu nascimento foi relatado nos Hinos Homéricos; sua participação na guerra de Troia fez parte da Ilíada; e a sua trajetória da saída de Troia até o dia da sua morte foi contada na História de Roma. Quando compôs a Eneida Virgílio tinha ao seu dispor um acervo de informações sobre o herói troiano, se apoiou no que já existia sobre ele e criou um poema autêntico e rico em referências da literatura grega e latina. Desta forma, como a tradição literária mencionada acima contribuiu para a composição do

67

Heitor também é reconhecido como herói. Sua morte é considerada bela, sangrenta e gloriosa, pois morreu jovem, demonstrando sua coragem ao enfrentar o melhor guerreiro dos dânaos, Aquiles, mesmo sabendo que iria morrer. Essa forma de morrer elevou o herói acima da condição humana, principalmente por ter morrido para defender sua pátria. Sobre o heroísmo de Heitor na Ilíada ver Vernant (1979, p.31-54).

herói Eneias, da Eneida, mesmo apresentando esse personagem com um caráter distinto do que foi projetado por Virgílio? Pensando nisso, procuraremos analisar como esse personagem foi representado por autores greco-latinos e pela epopeia virgiliana, destacando os seus principais feitos e como seu mito, relacionado à fundação de Roma, estava ligado ao culto da cidade.

O nascimento de Eneias é narrado no Hino a Afrodite69 (5, 53-292). Anquises, seu

pai, era um pastor troiano. Um dia enquanto estava em um estábulo afastado dos seus companheiros, tocando cítara no monte Ida, foi surpreendido por Afrodite. A deusa estava metamorfoseada em uma bela ninfa, “vestida com peplo certamente mais brilhante que a chama do sol,/ trazia espirais recurvadas e botões de flores brilhantes,/ colares magníficos, todos ornados de ouro” (Hino a Afrodite 5, 85-87) e imediatamente fez acender o desejo no mortal. Após dividirem o leito, ela induziu o sono em Anquises e quando o despertou revelou que teriam um filho, “Eneias será seu nome, porque uma terrível aflição me invade,/ por ter caído no leito de um mortal70 (Hino a Afrodite 5, 198-199). Essa criança deveria passar seus primeiros anos de vida sob os cuidados das ninfas da montanha Sileno, pelas quais seria nutrido e educado. Depois a própria deusa o entregaria ao pai mortal, que de nenhuma forma deveria revelar a origem da criança. A quem perguntasse, Anquises deveria dizer que a mãe de Eneias era uma ninfa, caso contrário Zeus lançaria sua ira sobre o pastor. Assim foi feita a vontade da deusa.

Detalhes sobre a fase adulta de Eneias foram relatados por Homero. Na sua Ilíada ele conta como o filho de Anquises se tornou um exímio guerreiro, que lutou bravamente durante a guerra de Troia. A primeira passagem na qual o herói troiano é mencionado é o Canto II, após a catalogação das naus, concomitante com a primeira aparição de Heitor (Ilíada, II, 495-785). Ambos mostrados em posição de comando dos troianos. É colocada em evidência a qualidade de Eneias como um guerreiro e um dos comandantes das forças

69 Esse texto faz parte de um conjunto de 33 poemas, dedicado a 22 divindades, Afrodite, Apolo, Ares, Ártemis, Atena, Asclépio, Deméter, Dionísio, Dióscuros, Gaia, Hefesto, Hélio,Hera, Herácles, Hermes, Héstia, Musas, Pã, Posídon, Reia, Selene e Zeus – reunidos no livro Hinos Homéricos. Apesar do sugestivo título, sua autoria não é atribuída a Homero, mas a autores anônimos. Eles provavelmente eram parte dos festivais das póleis gregas, declamados pelos rapsodos. Ver Ribeiro Júnior (2010).

70 Percebemos que o nome de Eneias aparece como um substantivo ligado a algo ruim, devido a atitude da deusa de ter deitado com um mortal. Muito embora, tenha sido Zeus que incutiu o desejo em Afrodite de se unir a um mortal para que ela nunca se vangloriasse por ter unido os deuses homens às mulheres mortais, pois ela mesma, uma deusa, se uniria a um mortal (Hino a Afrodite, 45-52).

troianas: “aos Dardânios, Eneias, filho do valente/ Anquises e da deusa Afrodite, guiava” (Ilíada, II, 819-20).

O herói troiano volta a aparecer no Canto V, quando luta bravamente contra os aqueus ao lado de um dos seus compatriotas, Pândaro, que acaba sendo morto. Eneias luta pelo corpo do seu amigo. Nesse momento seu caráter guerreiro é novamente ressaltado e ele é comparado a um leão:

Armado, Eneias baixa a defender o morto

dos Aqueus; como um leão, gira-lhe em torno e brande lança e escudo equilátero, aos brados, terrível,

ávido de matar quem se lhe antepusesse. (Ilíada, V, 298-301)

Eneias é salvo pela sua mãe, Afrodite, que “rodeou o filho amado com os braços brancos,/ e desdobrou-lhe diante o peplo resplandecente, amparo contra os dardos dos Dânaos” (Ilíada, V, 314-316). Ele volta a ser mencionado no Canto VI, no momento em que os troianos se encontram em desvantagem na guerra. Heleno, o sacerdote de Apolo, que também aparece na Eneida, se dirige a Heitor e Eneias pedindo para que os dois façam os inimigos recuarem e incentivem seus companheiros a lutarem por sua cidade, pois de ambos fluía o impulso e a decisão dos troianos pelo combate (Ilíada, VI, 77-85).

No Canto XII, durante o ataque dos troianos às naus inimigas, Eneias é o comandante dos cinco grupos de combatentes formados para expulsar os aqueus do seu acampamento (Ilíada, XII, 99-101). No Canto XIII dá-se a continuidade desse evento e o herói troiano continua a lutar bravamente, assim como no Canto XVI. No Canto XVIII acontece a luta pelo corpo de Pátroclo, o amigo mais estimado de Aquiles que foi morto por Heitor. Eneias, instigado por Apolo, incentiva Heitor e seus companheiros a lutarem contra os aqueus. Essa luta resulta no recuo dos inimigos. A ultima participação do filho de Anquises na Ilíada se dá no Canto XX. Homero anuncia o futuro glorioso de Eneias e seus descendentes:

Vamos, pois, resguardá-lo da morte, senão Zeus Pai há de irritar-se, no caso de Aquiles o abater. Manda a Moira que ele escape, a fim de que, priva de sêmen, não pereça a estirpe

de Dárdano, o rebento que Zeus mais amou entre os que, de mulheres mortais, lhe nasceram. Á linhagem de Príamo o Croníade detesta. Agora, sobre os Troícos, Eneias reinará e os seus filhos e os filhos nascituros deles. (Ilíada, XX, 299-307)

Essas palavras são proferidas por Netuno durante o encontro de Eneias com Aquiles, na noite em que Troia foi destruída. Júpiter convoca os deuses do Olimpo e solicita a Mercúrio, Juno, Netuno, Minerva e Vulcano colocarem - se ao lado dos gregos, e Marte, Apolo, Diana, Latona, o Xanto e Vênus a defenderem os troianos (Ilíada, XX, 24- 40). Apolo incita Eneias a lutar contra Aquiles e o troiano quase é morto por seu oponente, Netuno o salva, garantindo que seu Destino se cumprisse e ele se tornasse um herói, cujos filhos também alcançariam a glória. Descendente do filho mais amado de Zeus, Dárdano, Eneias deveria ser salvo da morte para um dia ser o rei dos troianos.

Eneias aparece também na História de Roma (I, 1-2), de Tito Lívio. Nessa versão do mito, o percurso do herói troiano é contado da sua saída de Troia até o dia de sua morte. Após a destruição dessa cidade dois heróis foram salvos, Antenor e Eneias, pois sempre haviam aconselhado o estabelecimento da paz e a devolução de Helena. Ambos passaram por várias aventuras. O primeiro seguiu para o mar Adriático e ao final de sua viagem fundou uma cidade chamada Troia. O segundo dirigiu-se a Macedônia e à Sicília, desembarcou nas terras do rei Latino, com o qual se aliou. Essa união se fortaleceu quando Eneias se casou com a filha do rei, Lavínia, e fundou uma cidade em homenagem a esposa, Lavínio. Desse casamento nasceu Ascânio.

O momento de calmaria durou pouco tempo. Os troianos e os aliados do rei Latino tiveram de pegar nas armas contra o rei dos rútulos, Turno, que fora pretendente de Lavínia. Este foi derrotado e se uniu ao rei da Etúria, Mezêncio, que não via com bons olhos a chegada dos troianos e o aparecimento de uma nova cidade, Lavínio (História de Roma, I, 1-2). Diante da ameaça de uma nova guerra, Eneias estabeleceu uma aliança com os aborígenes e lhes concedeu o direito de serem chamados de latinos. A partir desse momento os aborígenes rivalizaram com os troianos pela atenção do rei Eneias. Este confiando no sentimento de lealdade levou tropas aos campos de batalha contra o rei da Etúria e Turno. O líder troiano mais uma vez obteve a vitória, mas realizou seu ultimo feito. “Sejam quais

forem às qualidades humanas ou divinas que se lhe atribuam, jaz agora à margem do rio Númico e é chamado Júpiter Indígete” (História de Roma, I, 2).

O Eneias de Homero e Tito Lívio possui o caráter de guerreiro mais evidenciado, ele é o defensor da cidade, tanto em Troia, como em Lavínio. Na Eneida isso não é ofuscado, mas o herói assume um papeis complementares mais enfatizados que nessas narrativas, como o de fundador de cidades e de seguidor dos fados. O Eneias de Virgílio passa por uma série de provações para se tornar o herói cumpridor da vontade dos deuses ao seguir para o exílio no mar, junto com seus companheiros71. O Destino de Troia e de Roma estava em suas mãos, pois esse era um plano divino. O percurso da viagem dos troianos exilados, descrito por Eneias no Livro III, pode ser encarado como parte de um ritual de iniciação desse troiano como “herói fundador”. Ele é forçado a passar por uma série de provações que visam testar sua capacidade de realizar a missão dada pelos deuses, passando por etapas que incitam o aprimoramento de certos detalhes da sua personalidade, desenvolvidos nos episódios seguintes, concretizando-se no Livro XII quando vence a guerra contra Turno e conclui a missão de fundar uma nova cidade, Lavínio, e dar origem a estirpe cuja fama e gloria se espalhariam sobre o mundo. Além disso, são os próprios deuses, principalmente Vênus, a mãe do herói, que fornecem auxílio, por meio de adivinhos, sacerdotes, “aparições”, para o cumprimento dessas tarefas.

A confiança nas divindades é uma das marcas mais visíveis de Eneias. Durante toda a viagem ele não questiona os deuses, sempre realiza preces e rituais em sua homenagem, demonstrando sua lealdade. No entanto, a confiança nos deuses não é uma das características apenas de Eneias, seus sócios também confiam nos seres divinos, bem como no seu líder o qual seguem do início ao fim da viagem e por ele e pelo Destino profetizado vão à luta, pegam nas armas, oferecem sacríficos aos deuses, enfrentam tempestades, pestes e morte, até a luta final contra o exército de Turno, no Livro XII.

O relato de Eneias sobre seus primeiros anos de viagem no Livro III começa com a lembrança do dia em que junto com seus companheiros partem de Atandro, cidade próxima à Troia, onde após a guerra se abrigaram para construir as naus que os levaria ao exílio no

71 Atentar para o resumo do Livro III da Eneida, no capítulo III, no qual percebemos diferenças entre o Eneias personagem da epopeia de Virgílio e do Eneias personagem da tradição literária que acabamos de citar, sobretudo, quando tratamos da Ilíada. Na poesia de Homero ele aparece como o guerreiro que busca a glória no combate, já na versão virgiliana ele é apresentado como um heroi piedoso e fundador de cidades, que foi impedido pelos deuses de morrer lutando na guerra que devastou sua pátria.

mar (Eneida, III, 1-7). Lidamos então com uma seção da Eneida que trata especificamente da memória de uma viagem. São lembranças perturbadoras para aquele que as rememora, pois o obrigam a lembrar da morte da sua pátria, daqueles que junto com ela pereceram, como sua esposa Créusa, e dos que seguiram para o barco do Caronte durante a viagem, como o seu pai, Anquises. Eneias é o herói que chora ao se despedir da sua pátria e lamenta a perda dos seus companheiros, mas continua a fazer a vontade dos deuses, prestando-lhes cultos em todos os lugares onde aporta com suas naus.

A pietas é uma das principais qualidades de Eneias. Ela é anunciada por Virgílio no Livro I, quando o poeta pede auxílio às Musas para recordar-se das causas da guerra que fez Juno se voltar contra os troianos: “Musa!, recorda-me as causas da guerra, a deidade agravada:/ por qual ofensa a rainha dos deuses levou um guerreiro/ tão religioso a enfrentar sem descanso esses duros trabalhos?72” (Eneida, I, 8-10). No texto em latim a piedade aparece como insignem pietate, que traduzida ao pé da letra é “notável piedade”, entendida como estrita devoção ou obediência aos deuses. Não é por gosto (non sponte) que o herói empreende sua viagem (Eneida, IV, 361), mas contra seu próprio querer (inuitus), pela “vontade dos deuses” (iussa deum), pelas “ordens de cima imperiosas” (imperiis). São os argumentos de Eneias, para Dido quando a encontra no mundo dos mortos e tenta justificar o motivo de tê-la abandonado, para seguir viagem rumo ao destino profetizado pelos deuses (Eneida, VI, 458-464). Vemos na Eneida características de um herói que não apresentava otimismo com relação a sua missão. Eneias antes de ser o herói fundador das bases de um império era um homem, possuía desejos e sentimentos humanos. Foi por respeito ou até mesmo temor aos deuses que se prontificou a cumprir seu Destino.

Até aqui destacamos a visão positiva da Eneida de Virgílio73, pautada no anúncio divino da fundação de uma cidade que se tornaria império, cujas bases deveriam ser firmadas por um homem, sobrevivente de uma guerra que durou 10 anos e causou feridas difíceis de cicatrizar, como a morte da sua esposa, Creusa (Eneida, II, 769-770). Ao aprofundarmos nossa análise sobre o relato de Eneias a respeito dos seus primeiros anos de

72 Musa, mihi causas memora, quo numine laeso,/quidue dolens regina deum tot uoluere casus/ insignem

pietat uirum, tot ardire labores impulerit (Eneida, I, 8-10). 73

As interpretações da epopeia virgiliana como um poema que revela o pessimismo do autor e do