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PRÁTICAS DISCURSIVAS EM TORNO DA MÚSICA COMPARTILHADA

3.9. A NÁLISE DAS P RÁTICAS DISCURSIVAS

A partir dos comentários publicados no Sombarato, procuramos compreender as redefinições na experiência da música. Para dar conta deste percurso, a pesquisa se desenvolveu ao longo de três momentos: num primeiro período, de pré-análise, catalogamos o material; num segundo momento realizamos uma leitura flutuante do material no intuito de compor o corpus da pesquisa, identificando diversos aspectos e nuances; no terceiro momento empreendemos uma breve análise discursiva, recurso que possibilitou uma identificação preliminar dos principais temas. Neste caso, após a leitura flutuante, identificamos algumas recorrências na estrutura textual, onde busquei levantar alguns temas e categorias pertinentes ao problema da pesquisa.

No caso dos comentários dos usuários do blog Sombarato, identificamos algumas referências constantes e que, por esse motivo, sinalizam tratar-se de motivações compartilhadas. Embora sejam próximas umas da outras e umas mais que outras, identificamos algumas referências e recorrências. Entre elas: raridade, resistência, qualidade, satisfação, conhecimento, indicações/recomendações, longa vida, solicitações/pedidos, elogios, gratidão, colaboração. A maioria dos comentários são positivos e estruturados por sentimentos que, em alguma medida, os homogeneízam. No caso do Sombarato, os comentários giram em torno de sentimentos e posicionamentos convergentes. Os discursos ressaltam, sobretudo: a qualidade dos registros disponíveis; valorizam a ampliação do conhecimento da música brasileira; denunciam a raridade de boa parte do acervo; identificam potencialidades no caráter colaborativo; agradecem pela criação daquele espaço; desejam vida longa ao projeto.

Tendo em vista isso, é pertinente explicar qual a ideia por trás destes temas, pois as justificativas e relação com essa prática pode ser identificada:

Tabela 12 – Tematização dos comentários disponibilizados no sombarato.blogspot.com

Raridade

Como já colocamos noutro momento, a manutenção da raridade na época da reprodutibilidade técnica denuncia a parcialidade dos interesses da indústria fonográfica.

Qualidade/Acesso

Identificam-se no Sombarato obras que fogem do circuito e espaços de execução pública. O Sombarato tem uma proposta estética, que é identificada e avaliada pelos usuários como de qualidade.

Conhecimento

Pelo fato de disponibilizar álbuns raros ou mesmo obras que não tem ou tiveram grande divulgação, o Sombarato é caracterizado por ser um espaço de pesquisa e que permite a audição de um acervo mais amplo em relação ao que encontraríamos em lojas de discos (físicas ou virtuais).

Indicações/recomendações São freqüentes os comentários que fazem referência ao fato de terem

acessado o blog por indicação e que irão divulgá-lo também.

Elogio/Parabenização Os elogios são recorrentes e são justificados pela qualidade do acervo e

iniciativa.

Longa Vida

No fim de muitos dos comentários, revela-se uma expectativa de vida longa do projeto, isto é, que aquele espaço de compartilhamento tenha fôlego para permanecer ativo.

Pedidos/contribuições

Tendo identificado essa ética colaborativa, o espaço é aproveitado para pedidas de alguma obra específica, ou mesmo se propõem a contribuir na ampliação do acervo.

Crítica

Alguns comentários caminham no sentido de identificar as assimetrias público-artista-obra-gravadora, ressaltando como essa lógicas foram lesivas para a experiência musical.

A prática discursiva (que envolve condições de produção, distribuição e consumo) busca levar em consideração essa ação como algo orientado, ou melhor, são procedimentos compartilhados que os indivíduos produzem e assimilam de forma em alguma instância. Nesta senda da análise da prática discursiva várias frentes merecem uma atenção especial. A interdiscursividade, sem sombra de dúvidas seria uma delas. Por interdiscursividade entendemos a construção do texto em relação com diversos outros que se encontram dispersos, mas que são chamados para determinada formulação. Dito de outra forma, trata-se de textos que se valem de fragmentos de outros. Essa assimilação não significa adesão, pois podem contradizer ou mesmo trazer contornos irônicos a esses fragmentos. Como discutia Bakhtin, os textos respondem a textos anteriores e, não raramente, antecipam textos posteriores. Como lembra Soares, nenhum enunciado pode ser apreendido como uma forma pura, natural ou radicalmente original, posto que as condições de sua própria percepção é dependente da maneira como ele interage e se insere na multidiscursividade dos vários sistemas sócio-culturais, nas épocas ou tempos históricos da cultura ou mesmo nas diferenciações de grupos sociais (SOARES, 1994).

Em nosso caso essa noção é bastante prolífica, haja vista que o discurso do compartilhamento livre traz a baila o discurso da indústria fonográfica. Como já dissemos, o discurso do compartilhamento livre da música seria o caso de uma interdiscursividade que busca a contradição do discurso hegemônico. Não queremos com isso fortalecer a

compreensão de que o discurso em destaque se faz apenas na relação de negação do outro, afinal os agentes estão orientados também por outros textos e experiências que, indubitavelmente, são acessados nesse processo eminentemente interpretativo. Não podemos, portanto, nos limitar aos textos intertextualizados. Outras leituras que não necessariamente participam tão claramente na elaboração do discurso estão sendo trazidas constantemente. No entanto, essa tarefa seria por demais complexa e não seria factível analisarmos essa confluência de referências. O intertexto já nos parece ser algo profícuo. Em nosso caso poderíamos falar inclusive de uma intertextualidade manifesta na medida em que o texto daqueles que compartilham são elaborados através de outros textos, embora goze de um caráter heterogêneo. Contudo, outros textos são constituídos de forma também heterogênea por meio de elementos da ordem do discurso.

seremos comparados àqueles que praticam crimes virtuais?

E as entrevistas, textos, biografias, críticas, comentários, informações e opiniões lá postadas? Também são "ilegais"? Ponto de divulgação de festas e de shows de ótimos artistas muitas vezes nem citados na grande mídia. Isso também é proibido? O blog transformou-se numa referência para encontros de fãs de música e de colecionadores de vinis. TUDO FOI SUSPENSO! TUDO ISSO É CRIME?

A defesa em relação à valoração da prática como crime sugere uma relação íntima com o discurso da indústria fonográfica, mas também com as leis vigentes dos direitos autorais. No entanto, quando analisamos a forma com esse discurso é ventilado, percebemos que reforço da lei vem, sobretudo com esse discurso da indústria fonográfica. Amparado pela lei, o discurso da indústria é lançado como desinteressado em relação às vantagens econômicas, mas constituído sob uma idéia de ―função social‖ contido na lei, tais como recompensar o autor pela criação e estimulá-lo, oferecendo condições de subsistência por meio da exploração econômica dessa criação.

Como já colocamos anteriormente, tratamos em suma de uma polarização discursiva no que tange a pratica do compartilhamento livre da música, ou como alguns preferem chamar, a música gratuita. A indústria procura debelar a emergência e difusão dessa prática, ventilando discursos que sublinham os prejuízos referentes aos direitos patrimoniais. No caso daqueles que compartilham, legitimar a troca de arquivos sem fins lucrativos (respondendo as críticas, elaborando um discurso e construindo uma identidade positiva) tem sido um fenômeno de resistência que nos interessa nesta pesquisa, já que a busca pela legitimidade não é suficiente, já que os interesses da industria fonográfica encontram respaldos legais. A conquista da legitimidade seria um passo para as mudanças nos direitos autorais.

Os discursos da Indústria Fonográfica (majors e transnacionais) são construídos com a prevalência desses valores. No entanto, as leis dos direitos autorais, tal como fora colocado

fora estabelecida na prática está muito mais centrado nos direito patrimoniais e conexos do que no autor, propriamente. Isto nos respalda na crítica de que, em princípio, estão protegendo muito mais seus direitos e sua capacidade de expansão de interesses e lucros. Os usuários compartilham a música gratuitamente porque gostam delas e dos artistas e não porque querem causar algum tipo de dano. Não existem evidências a partir da análise de nosso corpus que estes consumidores queiram causar prejuízos aos artistas e autores, como também não existem evidências que o público não queira pagar pela obra ou recompensar financeiramente o artista ou autor pela sua criação. Existem, no entanto, evidências que este tipo de público não deseja pagar valores abusivos as indústria fonográficas e aos intermediadores desse negócio da música. Como já foi dito, não estão sendo oferecidas e discutidas opções razoáveis.