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Quando escolhemos um objeto complexo, ou melhor, quando o entendemos na sua complexidade, muitos elementos merecem ser discutidos. É preciso ter clareza que o objeto não pode ser esgotado. Teremos sempre uma visão recortada e parcial dos fenômenos. Isso não quer dizer, no entanto, que não devemos nos esforçar para trazer uma reflexão dessa conjunção de elementos, das numerosas relações de interdependência ou de subordinação, bem como dos diversos aspectos envolvidos. As lacunas deste trabalho, as aberturas acidentais ou propositadas são oportunas para que novas perspectivas se componham. As mudanças são incessantes. Os projetos podem ser sólidos, mas os ventos mudam de direção. O dissenso nasce aí.

A escolha do Sombarato foi à possibilidade de agregar a discussão mais geral do fenômeno do compartilhamento e de me situar com maior profundidade com relação às redefinições na experiência da música, onde as práticas discursivas pareceram ser uma escolha bastante acertada. Não obstante, voltar-se para o objeto tentando perceber nele características mais gerais de um fenômeno global não pareceu satisfatório. Pensamos que seria necessário trabalhar com aquele material discursivo de forma mais generosa, buscando avaliar o projeto/coletivo Sombarato e oferecer uma discussão que desse conta dos aspectos mais reflexivos.

Muito embora orientemos nosso trabalho numa perspectiva interdisciplinar, buscamos norteá-lo, sobretudo sob uma perspectiva sociológica. A partir do momento que percebemos que aquilo que estava sendo compartilhado não era apenas a música, mas sentimentos, imagens, idéias, entre outras coisas, tivemos a clareza que esse material discursivo merecia algum tratamento. Poucos estudos, pelo que pude observar, sinalizaram para este caminho. Mas também é verdade que tivemos alguns descaminhos que fizeram com que chegássemos a estes resultados. Escrevi esse texto em vários tempos verbais. Futuro, presente e passado. As mudanças aconteciam enquanto escrevíamos um texto que logo mais precisará de uma revisão, pois a cada dia temos um novo elemento a ser incorporado. No entanto, acredito que aqui está registrado essa tensão, a mudança em processo, os sentimentos e um cenário de incertezas, que acreditamos ser uma contribuição válida.

―Compartilhando Sons e Idéias: o Sombarato e as práticas discursivas em torno da música‖. Esse é título que busca chamar atenção de um problema eminentemente sociológico. A produção e consumo da música passam por outras lógicas. Não somente está sendo

compartilhada a música, mas existe uma elaboração discursiva que avalia essa reconfiguração. O Sombarato é o nosso estudo de caso e as práticas discursivas dão conta e sinalizam nossa escolha metodológica.

Por que somente o caso do Sombarato? Acredito ser interessante refazer uma consideração a respeito dessa escolha. Vários foram os blogs que saíram do ar na mesma época, antes ou depois do Sombarato. No entanto, como resolvemos trabalhar com as práticas discursivas, o Sombarato se mostrou bastante profícuo. O Sombarato tem grande acesso e agregou em seu espaço em vasto material discursivo. Devido a retirado do ar, mais um grande material discursivo fora produzido. O corpus, portanto, foi suficientemente construído através desse Projeto. Esse momento de crise e sua repercussão (a saída do ar sob a acusação de violação dos direitos autorais) também fora fundamental. Vale ressaltar também que esta predileção não aconteceu aprioristicamente. O Sombarato se tornou o meu estudo de caso ao longo do meu processo de investigação mais amplo. Em 2008, quando participei do encontro anual da anpocs, senti aquela necessidade de aterrissar a minha discussão geral em algo específico que pudesse ser descrito e analisado com maior rigor. Coincidentemente, O Sombarato comemorava um ano de atividade. Quando escrevia aquele artigo o blog saiu do ar. Naquele momento passaria a reescrever incessantemente e alterar os tempos verbais de minha discussão. Apresentei o texto e percebi que aquele material era suficiente e que nele me debruçaria com afinco.

A que devemos atribuir essa mudança? As transformações do capitalismo? As práticas discursivas? Aos artefatos tecnológicos? As leis em vigor? A indústria fonográfica? Pensar que seria uma simples abertura ou possibilidade oferecida por meio das transformações das lógicas capitalistas seria demasiadamente estruturalista. As práticas seriam então vistas como epifenômenos, visão que não gostaríamos de corroborar. Levar em consideração apenas o impulso desses agentes seria nos eximir da responsabilidade de uma contextualização mais rigorosa, que é necessária. As mudanças das lógicas do capitalismo nas últimas décadas são fundamentais no entendimento do que acontece com as empresas e que tem ressonância no negócio da música. Pensar a tecnologia como algo distante do resto do processo, isto é, como algo que se desenvolve a revelia das demandas sociais ou mesmo como um objeto inerte que provoca impacto na sociedade parece ser perigosa. A tecnologia deve ser assimilada numa dinâmica mais ampla. Além do que a tecnologia faz sentido aqui por meio da apropriação social.

Tentamos trazer esse escopo mais amplo. No entanto, admitimos que pela escolha feita, a agência teve papel fundamental. O recurso metodológico privilegiou a tensão agência

X estrutura, onde tentamos deixar explícita a dialética entre os discursos e a estrutura social. O discurso daqueles que compartilham trazem a noção de um interdiscurso, uma vez que está construído na relação com aquele alicerçado pela indústria fonográfica e os textos das leis dos direitos autorais. Apostamos num determinado tipo de análise que trouxe a baila uma movimentação que avança num sentido de mudança. A complexidade deste tipo de análise está no equilíbrio desses elementos que conformam o fenômeno.

No caso da revisão teórica, pensamos retomar a teoria crítica e colocá-la a disposição na compreensão desse fenômeno. Descartamos algumas premissas, mas também avaliamos outras possibilidades de leitura que foram realizadas, como a revisão de Gabriel Cohn sobre o conceito multidimensional da indústria cultural. Caso tivéssemos assimilado aquela discussão sobre a indústria cultural por meio da crítica quase que consensual em torno desse conceito, pouco teríamos a acrescentar. No entanto, suscitamos algumas reflexões na apreensão desse conceito como também trouxemos outras perspectivas que estimulam outras compreensões. Avançaríamos muito pouco caso tivéssemos admitido que o comportamento valorativo em torno da música tornou-se uma ficção ou mesmo que a música devesse se orientar por critérios científicos de verdade e falsidade, como pensava Adorno. A música compartilhada no Sombarato seria ligeira demais e pouco poderíamos acrescentar em termos de uma reflexão sociológica. Em vez de uma ―filosofia da nova música‖ optamos por uma sociologia da nova música, ―popular massiva‖ e que merece outros critérios de análise para além de um projeto de educação estética.

Essa produção e consumo têm que ser pensada por meio de seu inter-relacionamento e nas relações de poder envolvidas. Essa produção e consumo têm adquirido um caráter de resistência e traços políticos bastante marcados. Pensar essa ―micropolítica do cotidiano‖ tem sido algo profícuo, haja vista a demonstração das preferências e escolhas que perpassam elaborações discursivas, astutas e que revelam posicionamentos, inclusive, ideológicos. Portanto, é necessário atentar para o fenômeno trazendo a complexidade subjacente, ou seja, problematizando a sua legitimidade sob perspectivas que produzam um conhecimento e a compreensão do processo.

Tratamos, sobretudo, de um arranjo colaborativo acompanhado de uma elaboração discursiva que busca se justificar em torno de uma legalidade e legitimidade. Compreendemos o fenômeno do compartilhamento da música ao identificar as reverberações dessa prática para o que estou chamando de ―experiência musical‖. Investigamos, portanto, as ―redefinições qualitativas‖ no entorno da música por meio de uma experiência compartilhada e

desmaterializada, isto é, buscamos compreender as reverberações dessa prática social e discursiva, que envolvem condições de produção e consumo de textos, além da música.

Consideramos a forma como se colocaram em prática os direitos autorais no Brasil para músicos e compositores, discutimos o processo de desmaterialização dos suportes da música, avaliamos a experiência de consumo compartilhada da música diante das novas tecnologias, buscando os significados atribuídos e as motivações desta, contrapomos pressupostos da Teoria Crítica ao contexto contemporâneo da sociedade em rede e atentamos para o processo de ―apropriação social‖ das invenções musicais.

Discutimos ainda os artefatos culturais, sua apropriação e como a decisão de se compartilhar é legitimada pelos porta-vozes, consumidores e colaboradores, como eles respondem a críticas potenciais ou mesmo como se constrói uma auto-identidade positiva. Avaliamos a idéia de uma maior heterogeneidade cultural por meio da apropriação dessas novas ferramentas, entendemos como a ―cópia industrial serializada‖ é fetichizada e reforçada pela indústria fonográfica a partir de um valor exibível, reauratizado e de originalidade. Tentamos a partir de dados secundários visualizar o público que estaria na base do compartilhamento (tendo em vista a noção de que o compartilhamento teria ampliado o processo de democratização da cultura) assim como pensar a emergência dessa nova ética de criação e colaboração em torno da música.

No que tange as questões dos direitos, procuramos evidenciar de forma crítica esse debate mostrando, inclusive, na utilização desses direitos como respaldo nas posturas combativas da ―indústria fonográfica‖ para frear o compartilhamento. Apesar de acreditarmos ter dado conta desses inúmeros pontos, pensamos ter deixado suficientemente claro estarmos tratando de uma mudança de comportamento.

Almejamos nessa pesquisa a utilização de uma análise do discurso tridimensional, composta pelas análises da prática discursiva, social e textual. Trabalhando nessas três frentes teríamos o que Fairclough propõe em seu programa de síntese. É bem verdade que a última daquelas não pode ser realizada a contento por falta dos conhecimentos específicos que demanda. No entanto, esperamos ter conseguido analisar mais profundamente as outras duas dimensões. Na própria contextualização dos primeiros capítulos buscamos revelar aquilo que não raramente é dissimulado. A história da indústria fonográfica foi proposta aqui com esse interesse, haja vista que a própria contextualização é basilar para este tipo de empreendimento interdisciplinar. Buscamos além de refazer o caminho percorrido pela indústria fonográfica no Brasil trabalhar com os aspectos dos direitos envolvidos. Perceber a relação entre a indústria e

os direitos foi bastante profícuo, tendo em vista o descortinamento de alguns interesses que são travestidos muitas vezes de altruísmos.

A expectativa desse estudo repousa, ou melhor, alça vôos no sentido de uma contribuição para esse momento de instabilidades que muitas vezes ganham olhares perplexos. Embora não tenhamos feito um levantamento dos novos ―negócios da música‖, temos clareza que alternativas estão sendo pensadas e, mais que isso, tem sido colocada em prática. Como ouvi certo dia, ―hoje é preciso mudar o tempo inteiro para permanecer o mesmo‖. A indústria fonográfica teve dificuldades de lidar com essas mudanças logísticas e comportamentais. Tivemos a clareza de que a permanência dessas lógicas propostas pela empresas fonográficas diante dos artefatos tecnológicos que estão disponíveis somente fazem do modelo antigo ganhar alguma sobrevida, mas como entendemos, por se tratar de uma mudança comportamental as práticas que emergem solapam essa estrutura. Não podemos pensar, no entanto, que se trata apenas de uma mudança advinda dessas práticas sociais e discursivas. Como inclusive já reiteramos, muitas outras empresas têm sido beneficiadas por essas mudanças e tem fomentado-as.