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S OBRE O CONSUMO COMPARTILHADO : RESISTINDO , COLABORANDO ,

TEÓRICAS E NOVOS ACORDES

2.3. S OBRE O CONSUMO COMPARTILHADO : RESISTINDO , COLABORANDO ,

PARTICIPANDO

Quando falamos no conceito de resistência temos a sensação de estarmos trabalhando com um aporte demasiadamente disperso e que, por vezes, parece não contribuir na compreensão de particularidades dos fenômenos sociais. Poderia, portanto, servir aos propósitos de temáticas de opressão política tão quanto às efêmeras configurações da cultura de massa. No entanto, a noção de resistência tem sido revista e tem caminhado num sentido que nos interessa. Como acabamos de tocar, tratamos de um fenômeno que, entre outras coisas, adquire características que permitem o questionamento das lógicas correntes e por

meio de práticas discursivas buscam a mudança. No caso do Sombarato acredito tratar-se de um projeto de participação que adquire traços de resistência, pelas próprias decisões que vem sendo tomadas diante das práticas de compartilhamento. O que era um projeto colaborativo e participativo ganha contornos de oposição.

Em nosso caso, como bem lembra Fairclough a partir da leitura de Gramsci, vamos tratar de discursos que contestam práticas e as relações hegemônicas existentes. Lembro quando escrevi um dos primeiros artigos40 que procuravam avançar as questões desta pesquisa, não pude caracterizar esse objeto como um fenômeno de resistência. Talvez até fosse possível (se levasse em conta os recursos discursivos da polidez), mas com retirada do Blog do ar as características se mostraram mais pulsantes.

Raymond Williams, entre outros autores dos chamados estudos culturais, se aproximou da relação dos meios de comunicação de massa sobre as representações. Visitando categorias Gramscianas, pensadores dos Estudos Culturais articulam as noções de hegemonia e resistência. A assimilação das categorias gramscianas foi demasiadamente reiterada no sentido de dicotomias rijas e não relacionais. É necessário utilizar um instrumental conceitual que articule a ordem social e as condições particulares de cada grupo. Para tanto, não descartamos a voz ideológica das classes dominantes destinada a transmitir uma determinada visão do mundo social de forma que o resultado final do processo de comunicação seja a sedimentação de um imaginário favorável à situação hegemônica vigente. No entanto, pensar esta prática emergente, isto é, o compartilhamento, tem favorecido ao entendimento mais complexo dos processos de mudanças.

A contribuição dada pelos Estudos Culturais deve-se pelo fato da ideologia ser concebida não como conteúdos e formas superficiais de idéias, mas como categorias inconscientes pelos quais os meios são representados e vividos. Isto significa que a ideologia se articula como a fonte de uma relação imaginária, a relação de homens e mulheres com suas condições reais de existência.

A conformação de uma perspectiva dos meios de comunicação de massa nos estudos culturais esteve num primeiro momento localizada na ideologia. Neste sentido, os meios de comunicação operavam, segundo a produção desses teóricos interdisciplinares no período de 70, no processo de restrito à construção e desconstrução ideológica, sendo a tendência em ―reproduzir o campo ideológico da sociedade em tal forma que reproduz, também, sua estrutura de dominação‖ (ESCOSTEGUY, 2001, p. 65).

40

Segundo Escosteguy,

diante de uma perspectiva que desembocava invariavelmente em reprodução social, a incorporação, sobretudo, do conceito de hegemonia de Antonio Gramsci permitiu vislumbrar um movimento mais dinâmico e complexo na sociedade, admitindo tanto a reprodução do sistema de dominação quanto à resistência a esse mesmo sistema (ESCOSTEGUY, 2001, p. 91).

As comunidades de fãs (como podemos em alguma medida caracterizar o Sombarato) são aceitas como dinamizadoras e favorecidas da emergente cultura participativa. Essa ―cultura participativa‖ é caracterizada pelos traços democráticos e não hierárquicos, descentralizados, favorável ao diálogo e, entre outras coisas, a favor de uma ligadura de maior consistência entre produtor e consumidor.

João Freire Filho (FREIRE FILHO, 2007), admitindo mesmo a revisão constante do conceito de resistência, coloca que

distintas acepções do termo vêm sendo formuladas por autores de índole neogramscianas ou pós- moderna, cuja agenda analítica se estende para além de questões de estrutura e controle social, contemplando (ou mesmo priorizando) manifestações de agenciamento – capacidade mediada socioculturalmente de agir de modo propositado (e, por vezes, criativo) diante de imposições coercivas e estados de dominação, impedindo, fortalecendo ou catalisando mudanças em normas, sanções e hierarquias sociais (FREIRE FILHO, 2007, p. 13).

Como falamos noutro momento, temos clareza do processo de agenciamento que investigamos. Situamos as mudanças estruturais no sentido de oferecer uma reflexão ampliada de nossos objetivos. Sem sombra de dúvidas a mudança nas lógicas do capitalismo tiveram implicações na ambiência aqui sinalizada. Dentre outras coisas, também reforçamos como a tecnologia tem sido fundamental nesse processo de mudança. Não obstante, não deixamos de reforçar que as tecnologias não podem ser apartadas dos processos sociais mais amplos. A tecnologia não é algo anômalo as práticas e demandas sociais, assim como não devemos pensar essas práticas como epifenômenos das reordenações do capitalismo. Esse agenciamento é de fundamental importância para o entendimento da construção e da complexidade envolvida nesse ato de compartilhar, haja vista a infinidade de variantes situacionais que configuram esse objeto. Sem dúvida, admitir esse agenciamento nos permite pensar como essas práticas emergentes alteram determinadas lógicas sedimentadas, tanto na produção cultural como no direito político. Não se trata nem de nos limitarmos as preocupações da economia política, a qual se envolvia com os aspectos de produção, nem mesmo de pensarmos somente nos termos da recepção e dimensões do texto (como é próprio dos estudos culturais). Estamos próximos e inclinados a caminhar por uma perspectiva que leve em consideração essas atividades criativas e reflexivas em torno do consumo

compartilhado da música, assim como compreender as apropriações tecnológicas que estão sendo feitas, apesar dos constrangimentos, sobretudo, legais.

Um ponto de dissenso na caracterização e uso do conceito no entendimento das práticas sociais diz respeito às intencionalidades. Essa tarefa, apesar de não parecer, é algo que traz grandes dificuldades. Em nosso caso, como trabalhamos com as práticas discursivas e com um interdiscurso bastante claro (partidários do compartilhamento X indústria fonográfica e as leis de direitos autorais correntes) não se torna uma tarefa tão complexa. Trata-se de uma forma de resistência que ventila um discurso elaborado. Neste sentido, satisfazemos a noção clássica de resistência, onde verificamos as intencionalidades naqueles que resistem e reconhecimento dos alvos da resistência. Esse agenciamento e subjetividade que localizamos, portanto, pressupõe que o espaço da ação e da moralidade sinaliza para um sujeito com posicionamentos abertamente definidos frente à dominação. Segundo Freire Filho, a partir dos anos de 1980, houve uma tendência para o lado da compreensão das reações dos grupos frente às estratégias de dominação e poder. Percebemos tais formas de resistência em diversos níveis. As tentativas de regulação das esferas do pessoal, coletiva, privada e do cotidiano foram sendo vistas de forma relacional, uma vez que foram admitidos que esses processos não seriam aceitos de forma passiva. Nas palavras de Freire Filho:

Na realidade, tais contendas constituem a própria essência do protocolo analítico do novo campo de investigação, cujo objetivo principal é, em poucas palavras, esmiuçar (por meio de análises textuais e abordagens etnográficas) de que maneiras os recursos culturais funcionam tanto para forjar a aceitação do status quo e a dominação social quanto para habilitar e encorajar os estratos subordinados a resistir à opressão e a contestar as ideologias e estruturas de poder conservadoras (FREIRE FILHO, 2007, p. 21). No caso do Sombarato podemos pensar como um público de consumidores de música brasileira. Muitos podem ser vistos a partir das características de fãs, tendo como referência desses consumidores como mais que meros simpatizantes, mas astutos e capazes de processar criativamente os sentidos de produtos de circulação massiva, como nos lembra Freire Filho.

Através deles, podemos avaliar um conjunto de práticas, identidades e novos artefatos. Como afirma Friske, os fãs são produtivos, uma vez que a condição de fã os instiga a elaborar seus próprios textos. A condição de fã envolveria, portanto, ―um engajamento ativo, entusiástico, partidário, participativo como os bens culturais, motivados mais por critérios populares de ‗relevância social‘ (ligados a necessidades e interesses imediatos, concretos, reais) do que cânones elitistas de ‗qualidade estética‘(FISKE apud FREIRE FILHO, 2006, p.83). Neste caso, o estudo do Sombarato nos mostra características distintas. Penso que a partir de nossa pesquisa apresentaremos uma síntese dessa caracterização. Acredito que essas

motivações não são excludentes, uma vez que vão apontar para caminhos opostos muitas das vezes. A qualidade estética é trazida com bastante força, o que nos faz pensar de forma menos polarizada.

Como sinaliza Freire Filho a partir de suas referências:

A noção de bricolagem (sub) cultural difundida por Dick Hebdige, ao ser retomada por Fiske, ganha um raio de ação bem mais abrangente. Chegando a incluir a prática (bastante corriqueira, então, entre os fãs de música pop) de montagem de álbuns ‗individuais‘a partir de canções pinçadas em diferentes discos lançados comercialmente – ‗esta prática pode não ser ideologicamente resistente, mas ela é produtiva, é prazerosa, e é, pelo menos, evasiva, se não resistente, economicamente‘ (FREIRE FILHO, 2007, p. 83).

Como discutiremos em todo este exercício intelectual, os consumidores criativos e ativos da música e as indústrias fonográficas sustentam uma relação abstrusa que, por sua vez, tem sido fonte de uma tensão latente. A origem dessa tensão é compreendida por Freire Filho na medida em que se observam divergências de interesses quanto ao direito legítimo sobre os bens culturais e comerciais.

de um lado, a alegação de propriedade afetiva por parte dos fãs; do outro, a defesa obstinada da propriedade intelectual por partes das corporações que, fazendo jus ao nome, tentam incorporar a atividade dos fãs dentro dos parâmetros legais e comerciais da cultura de massa ou eliminá-la pura e simplesmente, temendo a diluição do valor simbólico de suas marcas e personas (FREIRE FILHO, 2007, p. 100).