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Em 1990, no Governo do Presidente Fernando Collor, foi lançada a então chamada “Política Industrial e de Comércio Exterior”, a PICE, centrada no estímulo à competição e na busca da competitividade como objetivo empresarial central. Uma parte das medidas foi desenhada para tentar solucionar os problemas da desestruturação da concorrência e a outra para atacar os problemas da competitividade propriamente dita. Os problemas da baixa concorrência foram atacados com medidas de estímulo à liberalização comercial, expondo quase instantaneamente a indústria brasileira – protegida, às vezes por décadas, ao mercado internacional. Outras medidas procuravam restringir ou neutralizar as práticas monopolistas. Para exemplificar as medidas, pode-se citar a revisão dos incentivos fiscais, o maior apoio à capacitação tecnológica nas indústrias nascentes, a revisão de tarifas aduaneiras, mais estímulos à exportação, etc. Efetivamente, a PICE não teve como reverter o impacto na indústria, da progressiva e irreversível abertura econômica e exposição do parque industrial nacional à concorrência externa.

Um conjunto de ajustes marcam a indústria brasileira durante toda a década de noventa: o amplo processo de concentração do capital via fusões, as aquisições e joint-

ventures com investidores externos, surgimento de novos setores industriais, especialização em produtos de média e baixa tecnologia, etc. Os ganhos de produtividade deste período surgiram mais da reorganização produtiva do que incorporação de novas tecnologias ou de melhorias no gerenciamento da produção.

O presidente Collor de Mello, eleito em 1990, de certa forma acelerou medidas que o governo anterior, de Sarney, já havia implementado: suprimindo regimes fiscais especiais que protegiam setores da concorrência externa, eliminando tributos sobre as importações e reduzindo alíquotas. Collor, por sua vez, vai consolidar esta ruptura na política industrial: da

preocupação com a expansão da capacidade produtiva, a política vai ser deslocada para a questão da competitividade.

Apesar de sua curta duração (Collor foi deposto em Dezembro de 1992 pelo Congresso Nacional), ele promoveu uma rápida e drástica redução das tarifas de importação, procurando eliminar as barreiras que protegiam a indústria brasileira no período de substituição de importações. Com Itamar, a redução dos incentivos, que deveria ser gradual e se estender até 1994, foi antecipada para o ano de 1993 e representou a medida de maior repercussão em todo o período. A tarifa aduaneira média em 1990 ficava na marca dos 32%, em 1993 este patamar atingiu 14%, aproximadamente. A indústria nacional foi exposta rapidamente à concorrência internacional, num contexto mundial onde as empresas líderes nos países já desenvolvidos, passavam por grandes saltos de produtividade produzidos pelo acúmulo de inovações tecnológicas dos anos oitenta, sobretudo na área da eletroeletrônica, química, comunicações e novos materiais. Segundo Guimarães (1996), a síntese da “PICE” pode ser descrita em poucas assertivas:

a) redução progressiva dos níveis de proteção tarifária, eliminação da distribuição indiscriminada e não transparente de incentivos e subsídios, e fortalecimento dos mecanismos de defesa da concorrência;

b) reestruturação competitiva da indústria por meio de mecanismos de coordenação, de instrumentos de apoio creditício e de fortalecimento da infraestrutura tecnológica; c) fortalecimento de segmentos potencialmente competitivos e desenvolvimento de novos setores, por meio de maior especialização da produção;

d) exposição planejada da indústria à competição internacional, possibilitando maior inserção no mercado externo, melhoria de qualidade e preço no mercado interno e aumento da competição em setores oligopolizados; e

e) capacitação tecnológica da empresa nacional, por meio de proteção tarifária seletiva às indústrias de tecnologia de ponta e do apoio à difusão das inovações nos demais setores. (p.08)

Os instrumentos desta política industrial seriam:

(a) de financiamento: para capital fixo, capacitação tecnológica e comércio exterior; (b) de exportações: com financiamento de longo prazo, criação de um banco

específico para operações de comércio exterior, simplificação da burocracia aduaneira, modernização da infraestrutura operacional e revisão da estrutura fiscal e tributária;

(c) para apoio à capacitação tecnológica: construção de redes de informação, capacitação de recursos humanos, adequação e transferência de tecnologia;

(d) de uso do poder de compra do Estado: com especificação de materiais, equipamentos e padrões focados na geração de demanda para setores tecnológicos mais estratégicos e promoção de projetos de pesquisa público-privados.

Em 1991, o Ministério da Fazenda editou a “Portaria 123”, criando dois grupos de setores como alvos prioritários da política79. O primeiro grupo comportava aqueles segmentos onde o país tinha vantagens comparativas explícitas, tais como a agroindústria, papel e celuloso, têxteis, couro e calçados, siderurgia e metalurgia, petroquímica, automotivo, naval e bens de capital. O segundo grupo se concentrava em setores chamados geradores e difusores de progresso tecnológico, como o eletrônico, a química fina, biotecnologia e novos materiais. Na avaliação de Villela & Suzigan (1996) o PCI, apesar de correto nos princípios, não chegou a ser implementado efetivamente. Primeiro no Ministério da Fazenda, depois no Planejamento e finalmente no então Ministério da Indústria, Ciência e Tecnologia (atual MDIC e MCTI), o PCI gerou algumas poucas reuniões no âmbito das “Câmaras Setoriais”, sem obtenção de resultados mais efetivos. Outros autores (FREITAS, LYRA e TIRONI, 1995), também reforçam esta tese, como um dos principais problemas surgidos no final do governo Collor: a dificuldade de coordenação das políticas entre os atores públicos e destes com os privados. Este é um dos problemas apresentados como as “falhas” das políticas industriais mais recorrentes, já identificados há duas décadas.

As “câmaras setoriais”, criadas no período imediatamente anterior ao Governo Color – durante o Governo de José Sarney - foram utilizadas basicamente como estratégias de distensão de preços após os diversos congelamentos de preços dos planos de estabilização. No governo Collor mais tarde sua função passou a incorporar a negociação para diminuição do imposto de importação e gestão dos conflitos dentro das diversas cadeias. Segundo o relato de um ex-coordenador da Câmara Siderúrgica naquele período:

[...] o problema é o seguinte, ai que você tem que entender, o governo no Brasil, você não tinha clima político apesar do regime fechado, pra fazer uma tomada de decisão e abrir o mercado naquela época [...] os loobies eram brutais! Em qualquer um, automóvel, têxtil, calçado [...] era a pressão empresarial brutal e você não ia conseguir fazer uma abertura radical, ali naquele sistema [...] então a alternativa era fazer uma coisa negociada. Aí você começou um processo, já falando em melhoria, já começando a falar em competitividade aqui. A partir do momento em que você abre a discussão com eles, eles rivalizam, você expõem o setor à uma discussão e nem sempre eles são monolíticos. Na lógica da cadeia produtiva eles não são monolíticos. Abrimos algumas câmeras, eu me lembro bem, talvez em 1988 teve um

79 O programa “PICE” sugeria a criação de um instrumento setorial como ferramenta básica de coordenação da

ação governamental, o “PCI”, “Programa de Competitividade Industrial”. O PCI objetivava promover setores selecionados ao sistematizar um conjunto de medidas de apoio, negociadas e discutidas com o setor privado.

congelamento, por que a situação tava muito grave não é! O que aconteceu aqui? Tava na hiperinflação! Aí o que nos fizemos? O assessor do Mailson, [...] ele usou o contexto da Câmara Setorial, para negociar compromisso com a cadeia de preço! Que era alimentar os preços por exemplo 10%, 90% da inflação, aquilo criou um compromisso. Criaram a câmara setorial. (P1 - entrevista ao autor, em 07.11.2012) Para estes autores, até o Governo Collor, não havia canais de integração entre a área de desenvolvimento do governo federal (o então MICT), e os demais Ministérios, bancos, empresas e autarquias, envolvidos em temas relacionados a uma política industrial. Os problemas de financiamento eram decididos autonomamente pelo BNDES, os acordos de cooperação internacional ou de natureza comercial ficam a cargo do Ministério das Relações Exteriores e o Ministério da Fazenda. Ficava na Fazenda, também, toda a gestão da política macroeconômica, a propriedade intelectual, a cargo do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual e assim por diante.

A análise da política industrial do período Sarney (1985-1990) se justifica pelo seu elemento mais importante, como legado institucional e ideacional, ou seja, a experiência das Câmaras Setoriais, como arenas de concertação tripartite. Apesar deste ponto notável, não houve uma PI integral, stricto sensu, salvo alguns Decretos-Leis que criaram incentivos localizados como foi o BEFIEX (exportações) e o PDTIs (capacitação tecnológica). A reorganização do Conselho de Desenvolvimento Industrial (CDI), não teve maiores consequências. Sobre este período Rua e Aguiar (1995), sintetizaram com propriedade: “esta fragmentação de poder, de natureza organizacional, acrescentava-se a multiplicidade de objetivos, frequentemente conflitantes, entre as agências burocráticas” (RUA e AGUIAR, 1995, p. 258).

Daí a necessidade de um “órgão que coordenasse” as diversas políticas horizontais, setoriais e regionais envolvidas no apoio à indústria nacional. Para estes autores parecia haver consenso já naquela época que o capital político, necessário para o desempenho das funções de coordenação da política industrial, demandaria o respaldo direto da Presidência da República (FREITAS, LYRA e TIRONI, 1995; RUA e AGUIAR, 1995).

Há um padrão conceitual básico conferindo uma unidade de políticas nos governos Sarney, Collor e Cardoso em relação ao conceito de política industrial, ancorada na perspectiva pró-mercado e liberal de desenvolvimento. As elites dirigentes no Brasil dos anos noventa implementaram um programa de reformas liberalizantes, sob influencia direta das experiências parcialmente exitosas de programas semelhantes nos países desenvolvidos e recomendações expressas dos organismos multilaterais de fomento e cooperação técnica

internacional. Mais tarde, tudo isso seria questionado pelo desempenho medíocre da economia e a imposição na prática de desvalorizações cambiais e medidas recessivas. Foi uma época também de afirmação dos valores morais e políticos associados à hegemonia das economias capitalistas diante da falência expressa e irrevogável dos modelos de economia planificada no leste europeu e especialmente na então União Soviética, que se dissolve mais ou menos no início deste período. O próprio Collor de Mello, político nordestino, aparentemente descolado dos esquemas tradicionais de clientelismo e patrimonialismo das oligarquias de sempre, foi eleito como um outsider, alguém com suposta e aparente independência, autonomia, capacidade e legitimidade para superar os longos anos de estagnação, inflação e desemprego que marcaram os anos oitenta e o governo de José Sarney.

Estes fatores foram fundamentais para tornar irreversível o processo de exposição crescente da indústria brasileira à concorrência internacional. O Governo Collor e o Governo Itamar esperavam que o final das proteções e o impacto de novos programas e instrumentos de aumento da competitividade doméstica criassem, por si só, as condições para um salto de qualidade da indústria nacional. Fato que não foi confirmado pelo mercado. Nesta direção foram criados dois programas de grande repercussão à época: o “Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade” (PBQP) e o “Programa de Apoio a Capacitação Tecnológica da Indústria” (PACTI)80. O primeiro para acelerar a adoção de padrões internacionais de qualidade produtiva, compatíveis com o estado da arte das economias mais desenvolvidas. O segundo, voltado para disponibilizar linhas de financiamento para apoiar as atividades de pesquisa e desenvolvimento de setores estratégicos selecionados. Ambos tiveram alcance limitado, seja pela escassez de fundos públicos, pela desorganização da máquina estatal (gerada pela reforma administrativa fracassada no Governo Collor), ou pela insegurança

80 O governo implementou uma estratégia de barganha com a indústria, a saída do controle de preços e o ritmo

de diminuição da proteção tarifária externa foram negociados na medida da aderência das empresas aos programas de qualidade e produtividade. Este era o tema central da Câmara Setorial. Conforme o depoimento de um ex-dirigente do MDIC: “E a Dorothea entra [Dorothea Werneck, Ministra do Trabalho em 1989 e 1990 e do MDIC entre 1995 e 1996] ai a gente começa a ver o congelamento em 91, 92 de preço, A Dorothea entra [e] a gente criou umas 40 câmeras [setoriais]... e nos tínhamos... setores monitorados e setores controlados e trabalhamos a saída do congelamento versus [os] compromissos de melhorar a qualidade, melhorar a eficiência produtiva, ai trabalhamos nisso,nesse jogo. A indústria automobilística que vivia seu pior momento do ponto de vista das relações capital- trabalho, havia um conflito nas relações capital- trabalho e a fábrica estava no processo de mudança! Aí os astros convergiram para encontrar vários grandes negociadores,num mesmo momento. Pelo lado dos trabalhadores veio o Vicentinho [ ex presidente da CUT, atual Deputado Federal pelo PT/SP], o Marinho [Luiz Marinho, ex dirigente do ABC, Ministro do Trabalho entre 2005 e 2006, foi do CNDI, atual prefeito de São Bernardo do Campo] sentava na mesa de trás, ao lado do Vicentinho ali, estava Zé Dirceu, Lula, Mercadante... E todos fizeram agenda,... todas as câmeras fizeram agenda, todas as cadeias produtivas tiveram compromisso de qualidade, algumas agente mexeu no tributo, outras não.. Por exemplo: cosméticos! Você explodiu a indústria de cosmético no Brasil a partir dali, [o setor de] cosméticos tinha 77% de IPI!.” (P2 - entrevista ao autor, em 07.11.2012)

jurídica produziram poucos efeitos, confirmados pelo baixo crescimento relativo e em valores absolutos das patentes de empresas de capital nacional (GUERRA, 1997; GUIMARAES, 1996).

Novamente aparecem neste cenário os temas da coordenação e articulação público- privado, como aspectos não resolvidos pelos arranjos institucionais vigentes. Já neste período, primeira metade dos anos noventa, a literatura apontava para o papel vital dos temas de coordenação e o tema do processo decisório na política industrial brasileira. Villela & Suzigan (1996), estudiosos do tema, assinalaram claramente esta questão:

Não há dúvida sobre a necessidade premente de se criar um órgão coordenador das ações de política industrial. O ponto importante não é criar uma outra camada burocrática, mas assegurar que exista um órgão para coordenar tarefas inter-

relacionadas. Principalmente no que diz respeito à reestruturação industrial, devido

ao grande número de ações governamentais complementares que se requer para criar um ambiente propício, é necessário que exista uma unidade governamental de

coordenação (p. 17, grifo nosso).

Predomina, em termos gerais, uma análise muito negativa dos efeitos das políticas nos períodos Collor e Itamar Franco81, sobretudo na ausência de mecanismos de concertação entre os atores envolvidos e de coordenação das ações governamentais. Esta posição é bem representada por autores, como Cano e Silva (2010), que deixam claro que o Governo Collor marcou uma inflexão na política industrial, abandonando a lógica da expansão capacidade produtiva via intervenção direta ou indireta do Estado, mas o balanço final deste período é apresentado como uma espécie de “anti política industrial”:

Em uma política industrial às avessas, criou em 1990 a PICE (Política Industrial e de Comércio Exterior), promovendo uma acentuada e rápida exposição da

indústria à competição internacional, com redução progressiva dos níveis de

proteção tarifária e eliminação dos instrumentos não tarifários de proteção e dos subsídios. De forma desvinculada de políticas setoriais, os recursos do BNDES foram direcionados a empresas que alcançassem incrementos de competitividade e produtividade. Foi instituído o Programa de Reestruturação e Racionalização Empresarial, visando fomentar fusões e incorporações de empresas [...]

Concretamente, as novas DIRETRIZES para o setor industrial, combinadas com a recessão decorrente da política de estabilização, impuseram às empresas severos ajustes, com efeitos perversos sobre os níveis de produção, emprego e

81 A percepção de que muito pouco se fez no período de Itamar Franco não significa ausência de medidas pró-

indústria, ainda que pontuais, como bem lembrou, no passado, o economista Antônio Barros de Castro: “Foi no clima criado pelas câmaras que surgiu o decreto do presidente Itamar, rebaixando a carga tributária para autos "populares" - vale dizer, capazes de atender às faixas de renda em que era maior o potencial de crescimento do mercado. Tratada por muitos com desdém, a medida (que havia sido recomendada pela Booz- Allen & Hamilton, em estudo datado de 1990) revelou-se, como bem se sabe, extraordinariamente exitosa. Pode-se mesmo arriscar a hipótese de que, com essa mudança tinha início a transição da indústria brasileira para uma fase mais avançada, em que começa a ganhar importância a especialização por produtos. Ou seja, o carro de mil cilindradas, a família ERJ de aviões da Embraer, os ônibus da Marcopolo e os produtos da Natura, exemplificando, estariam inaugurando o ingresso do Brasil num estágio superior da competição.” (FOLHA DE SÃO PAULO, 26 fev. 2003)

renda, além de desnacionalização de setores industriais, falência de muitas empresas e destruição de pedaços de várias empresas e segmentos do parque industrial brasileiro. Redução de tarifas de importação, sobrevalorização da

moeda, constrangimento do crédito e ausência de mecanismos de proteção contra práticas desleais de comércio internacional levaram à substituição da produção local por importações inclusive em setores nos quais o Brasil dispunha de condições de competitividade. (p. 4, grifo nosso)

Cano sugere que o principal, senão o único, legado positivo da era Collor, foi a manutenção ainda que precária de algumas câmaras setoriais.82

Durante o período Collor/Sarney/Itamar a situação da indústria se agravou, a desindustrialização avançou e as políticas públicas foram totalmente insuficientes para resolver o problema de coordenação governamental e implementação de uma nova configuração de política industrial.