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O escopo da proposta de política industrial apresentada pelo governo federal durante o primeiro Governo Lula se propunha ser capaz de associar ações horizontais (ou transversais) com ações verticais (industrial targeting), exigindo uma ampla coalizão de forças políticas para ser executada. Como em toda coalizão, que supõe convergência de interesses materiais e uma compreensão comum das tarefas e uma visão de futuro, o papel do governo é crítico e fundamental. O governo federal deveria ser capaz de estimular a formação desta coalizão e garantir sua virtuosidade, isto é, fazer a mediação entre interesses particulares potencialmente divergentes – de setores que perdem e outros que ganham, entre as cadeias produtivas – e constituir, afinal, os interesses nacionais de um projeto de desenvolvimento mobilizador116.

116 O exemplo coreano é paradigmático, o sucesso da política industrial teve como fator-chave a grande

articulação entre as instituições encarregadas da política econômica de curto e longo prazo sob coordenação governamental direta, como demonstrou a já falecida professora do MIT, Alice Amsden (1989), especialista em economias asiáticas. Ainda sobre o debate do tamanho do Estado, perguntada sobre as recentes crises cambiais nos países asiáticos e Taiwan (outro exemplo de sucesso) a professora Amsden, respondeu: “Em Taiwan não houve crise. Não tinha como acontecer: o governo garante os empréstimos e controla o mercado financeiro. Os próprios bancos são estatais. Os taiwaneses têm quatro tipos de empresas estatais de diferentes origens: japonesa, porque foram invadidos pelos japoneses; chinesa, porque importaram as indústrias da

Este poder de arbitragem teria mais eficiência, quanto mais flexibilidade possuírem os instrumentos disponíveis (de política econômica, p. ex.), quanto maior for a capacidade de análise estratégica para percepção das janelas de oportunidade, que estão se abrindo e fechando, na economia globalizada.

A interação de múltiplos atores em cenários de grande incerteza requerem persistência e perseverança, como lembra Gadelha (2001). A PITCE e os debates que cercaram sua elaboração e execução evidenciaram que uma das primeiras dificuldades de formulação da política industrial, num cenário onde o “Estado-Interventor” não é mais viável e o “Estado- Regulador” ainda não se consolidou não é, paradoxalmente, a ausência crônica de fontes de financiamento. O primeiro e mais grave problema residiu na construção de “capacidade de governo”117 para gestar a política nesta nova conjuntura, radicalmente diferente do ciclo desenvolvimentista dos anos sessenta, quando a solução mais simples teria sido elaborar um clássico plano de desenvolvimento, resolvendo problemas de pesquisa operacional e programação econômica, quem sabe, encomendado pelo Presidente da República ao Ministro do Planejamento ou à direção do IPEA. Conforme relatou recentemente o Presidente do BNDES, Luciano Coutinho, o pano de fundo sobre a institucionalidade de uma política industrial nos remete ao debate sobre o papel do Estado:

[...] O velho modelo nacional-desenvolvimentista estruturado nos anos 1950 e 1960 era paternalista, tinha um regime de empresas públicas dominantes nos setores, e, além disso, dependia de um componente extremamente importante para a indústria privada, que era a alta proteção tarifária. Hoje esses elementos não estão mais

presentes. O papel do Estado é hoje mais desafiador no sentido de que ele é mais complexo, mais sofisticado e requer planejamento e regulação indutora de uma

qualidade distinta do passado. Se o Estado não deslocar por decisão política a matriz de incentivos, criando “distorções” pró-investimento nas regiões menos desenvolvidas, induzindo o mercado para o investimento migrar para lá, seria praticamente impossível promover a redução da desigualdade entre as regiões. (entrevista com Luciano Coutinho, Cadernos do Desenvolvimento, 2011, grifo nosso)

Destoando da visão expressada pelo dirigente do BNDES, a administração dos instrumentos de política industrial quase sempre foi partilhada de modo caótico e descoordenado entre os vários ministérios, sem falar nas agruras de um pacto federativo China continental; os militares têm um grande parque industrial; e indústrias privadas falidas, que foram encampadas pelo governo”. (CARTA CAPITAL 75, de 10/06/1998).

117 O conceito de “capacidade de governo” utilizado aqui é aquele derivado de Matus (1993; 2000): um conjunto

de habilidades e perícias da direção das organizações, que depende do grau de governabilidade e da exigência em recursos imposta pela natureza do seu projeto de governo, ou seja, uma complexa relação entre governabilidade e ambição do projeto político. A capacidade de governo se define pela condição de funcionamento de sistemas de planejamento e gestão estratégica, capaz de garantir a efetiva transformação da realidade.

precário e fragilizado pela desproporção na distribuição da carga tributária e dos encargos federativos. Para exemplificar e ilustrar o problema havia no passado recente (até meados dos noventa), uma divisão de funções entre o então MDIC (Ministério da Indústria e Comércio), que administrava a política de incentivos, o INPI e INMETRO, administrando a política de transferência de tecnologia e normatização, o Ministério da Fazenda, cuidando da política de comércio exterior (CACEX) e o do controle de preços (CIP). Em 1985, a política tecnologia passou para o MCT e o Ministério do Interior administrava os incentivos regionais e o BNDES vinculava-se à Secretaria do Planejamento da Presidência da República, que ainda não era Ministério. Este mosaico de atribuições e burocracias em curto-circuito continua mudando de tempos em tempos, é praticamente um padrão institucionalizado. A superposição anárquica das várias reformas administrativas – quase todas inconclusas – mudou constantemente o lugar institucional dos instrumentos de política industrial. O que parece ser constante é o despreparo das agências governamentais envolvidas, pela falta de quadros e inteligência estratégica, pela carência material, pela confusão do quadro legal e finalmente pela baixa autoridade política e capacidade de liderança. Este problema não é novo, já no Governo Sarney, na segunda metade dos anos oitenta, a multiplicidade das agências burocráticas envolvidas e os conflitos gerados produziram de forma ambígua a política industrial.

O MIC assumia como seu objetivo primeiro incentivar a indústria, tendo que desembolsar para tanto, volumosos recursos financeiros. Este curso de ação, todavia, contrariava a prioridade do MF, de controle do meio circulante e de redução do déficit público. Já o MME insistia em restringir quaisquer projetos de abertura do mercado que não estabelecessem claras garantias de incentivo à indústria nacional, pois temia que as empresas estatais fossem prejudicadas pela competição externa descontrolada. (RUA e AGUIAR, 1995, p 255).

Resumindo, o quadro caótico da institucionalidade da política industrial, a dificuldade de construir consensos e de impor coerência ao conjunto das decisões, indicando a ausência de um espaço institucional de caráter político com regras claras para resolver os conflitos de opinião, foram os traços marcantes da política industrial nos primeiros governos pós-regime militar, Sarney e Collor, atingindo também o Governo Cardoso. Uma das causas desta dificuldade foi a completa ausência de pactuação com os setores sociais e a baixa participação da comunidade científica.

A PITCE já nasceu com um arranjo institucional diferenciado. Sua elaboração foi determinada coletivamente dentro do governo e com aval do núcleo duro do Planalto. Através de um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) no âmbito da Câmara de Política Econômica

(uma das várias Câmaras do “Conselho de Governo”, ligadas diretamente à Presidência da República), ou seja, sob a tutela do Palácio do Planalto, e não como resultado de uma disputa inter-burocrática qualquer. Deve-se ressaltar que o Ministério da Fazenda protagonizou o trabalho de elaboração do texto-base com o mesmo empenho e compromisso que os demais ministérios118. Entre os fatores responsáveis pela maior aceitação do tema pela Fazenda estavam com certeza a relação de confiança pessoal entre um conjunto de “empreendedores políticos governamentais”, como Glauco Arbix, Antonio Palocci e Edmundo Oliveira, que já tinham sólidas relações de confiança pessoal e política muito antes do governo Lula, na militância partidária no PT de São Paulo. Palocci, três anos depois, assim se referiu à PITCE:

Outro avanço no período foi a adoção de uma nova política industrial e tecnológica [...]. Apesar de todas as dificuldades, inclusive em função das visões muito diferentes sobre o tema mesmo dentro do governo, conseguimos chegar a um

consenso e lançar o documento com as Diretrizes de Política Industrial e de

Comércio Exterior (PITCE), que passou a orientar a ação dos ministérios. Foi criado um Conselho Nacional de Política Industrial [o CNDI], com participação de governo, empresários e trabalhadores, que funcionou com regularidade e deu impulso a uma pauta interessante na área tributária e de ciência e tecnologia. (PALOCCI, 2007, p. 171)

A afirmação de Palocci, em tese, confirma a ideia de que aparentemente havia no governo Lula uma aproximação maior entre o “bloco fiscalista”, liderado pelo Ministério da Fazenda, e o bloco “desenvolvimentista”, liderado pelo MDIC, em torno de princípios básicos de uma política industrial mais moderna. Este ambiente de colaboração interna, dificilmente viável no governo Cardoso se considerado o grau de divergência interna e as críticas dos empresários à política econômica de então, foi determinante para que a PITCE se legitimasse entre os ministérios-chave da coalização política lulista. Desde o início, o conceito que presidiu a construção institucional da proposta foi a necessidade de articulação e coordenação dos vários projetos e ações propostas, sabendo-se já que a experiência histórica de dispersão e fragmentação das várias organizações federais explicam em parte, a quase totalidade dos insucessos nesta área119. A PITCE propôs uma solução institucional para combater o

118 Não há evidências de que a elaboração da PITCE tenha sofrido algum tipo de “consulta participativa” com as

clientelas envolvidas (empresários e trabalhadores), ao contrário da disposição inicial de fazer um debate mais público: “Depois de 20 anos sem politica industrial, o Estado não pode ser o único responsável. Só empresários de cultura atrasada querem o Estado mandando em tudo. Não é nossa intenção. A política industrial tem de ser definida em debate público com a sociedade. Se assim não for, nossa margem de erro nas escolhas será enorme”, Glauco Arbix. (O Estado de São Paulo, 31/12/2003)

119 Além disto, parte do fracasso vem da existência de estruturas burocráticas fracas, o que produz o que

Schneider (1994) chamou de “capitalismo político”, segundo este autor: “Essa dependência do Estado e da volatilidade de suas políticas mobiliza todos os atores políticos no sentido de procurar influenciar a burocracia econômica. Os capitalistas se mobilizam naturalmente para influenciar as decisões que mais os afetam. Os políticos e outros atores políticos reconhecem que as funções normais de um legislativo fraco (ou mesmo as funções tradicionais de um Estado liberal) são menos relevantes que os enormes poderes

problema da fragmentação administrativa e a desintegração das políticas na forma de uma nova agência, a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, a ABDI, analisada mais adiante.120

Figura 5 - Esquema de governança da PITCE

A busca de sinergia e efeitos horizontais capazes de unificar e dar potência à ação governamental, priorizando áreas, hierarquizando elementos de um sistema a ser consolidado, criando ambientes institucionais para geração de consensos duradouros (dentro do governo e com o setor privado), enfim, evitando a volatilidade das regras – foram internalizadas como categorias básicas para construir uma nova política pública para a indústria brasileira. Este foi

arbitrários nas mãos da burocracia econômica. Esses atores buscam o poder nessa burocracia e assim politizam a administração, o que por sua vez torna mais provável que as políticas sejam temporárias e negociáveis.” (p. 347/348, grifo nosso)

120 A “Câmara de Política Econômica” da Presidência da República (colegiado informal reunindo os Ministros

da área) teria discutido a ideia de criar uma “EMBRAPA industrial” em janeiro de 2004, doze meses antes da criação legal da ABDI. A ideia era integrar os vários centros de excelência em pesquisa industrial (os laboratórios do MCT, por exemplo) existentes no país, numa única empresa, descentralizada e voltada para a produção tecnológica. Na época Glauco Arbix, que coordenava o grupo de trabalho sobre politica industrial, afirmou que a nova empresa deveria dar racionalidade ao sistema e diminuir a dependência tecnológica do país (Jornal “O Estado de São Paulo” de 19/01/2004). Esta ideia foi abandonada em favor do formato adotado pela ABDI. O conceito de uma “Embrapa industrial” só foi retomada em 2012, oito anos depois, através da criação da “EMBRAPII”, Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação, uma parceria entre o MCTI e a CNI, com apoio da FINEP.

o desafio proposto pela PITCE, mas há na literatura registros menos otimistas, como em Morais e Lima JR (2010):

Faltou também uma agenda do governo federal para transformar em ações reais o que estava previsto no discurso da PITCE, bem como não se conseguiu autonomia suficiente das estruturas de Estado em relação aos interesses privados. Isso por sua vez decorre de problemas de coordenação entre os diversos ministérios

responsáveis pela sua implementação e controle, devido ao grande número de instituições e a multiplicidade de inter-relações e sobreposições estabelecidas.

Portanto, a PITCE não conseguiu articular as diversas instâncias públicas que concorreriam com seu êxito e não empolgou a iniciativa privada. O seu legado mais significativo foi a instituição de alguns marcos legais, tais como: Lei da Inovação (10.973/2004); Lei do Bem (11.196/2005); Lei da Biossegurança (11.105/2005) e Política de Desenvolvimento da Biotecnologia (6.041/2007). (p. 15, grifo nosso). Ainda que os mesmos autores lembrem que o processo de elaboração da política industrial, durante o governo Lula, teve o mérito de recuperar uma agenda que estava esquecida desde o final da década de setenta. Conforme eles:

Deve-se levar em conta que após duas décadas sem qualquer tentativa mais arrojada de se fazer política industrial no Brasil, as dificuldades enfrentadas pelo Governo Federal para estruturar o planejamento, a implementação e o monitoramento das ações de fomento não podem ser subestimadas. O que por sua vez, implica em que as medidas anunciadas não possam ser agrupadas num conjunto articulado e acabado. Juntamente com as armadilhas trazidas pela política macroeconômica, que impedem que a política industrial brasileira possa se antecipar e viabilizar as transformações necessárias para um projeto nacional de desenvolvimento (MORAIS e LIMA JR., p. 16, grifo nosso).

O novo arranjo institucional da PITCE foi capaz de propor uma articulação, em tese funcional, entre o setor público e privado, com mecanismos de consulta, retroalimentação e processos decisórios definidos. Para este resultado o CNDI, como será detalhado adiante, desempenhou papel decisivo. A PITCE tentou reativar uma lógica de articulação público- privado, que é marca distintivas das políticas industriais contemporâneas, condição de seu sucesso e conceito estruturador da sua estratégia de induzir a convergência de interesses.