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Na literatura de gestão pública e de políticas públicas o conceito de “coordenação” está associado à busca da eficiência administrativa ou organizacional. Os processos de coordenação equivalem à coordenação de interesses entre atores e são condição sine qua non para a efetividade do processo decisório (OCTAVIO, 2006; CUNILL GRAU, 2005 e LINDBLOM, 2009). A ação coordenada implica na racionalização de métodos e processos para o compartilhamento de objetivos e resultados. Em políticas públicas o atributo ou qualidade de “coordenação” dos atores, implica também na otimização da eficiência, enquanto relação entre insumos necessários e produtos gerados, de uma política qualquer, para obtenção do resultado desejado, visto como impacto no problema a ser resolvido29. A coordenação intragovernamental, em sentido estrito, é aquela relacionada às tecnologias de organização, planejamento e implementação de programas.

Aqui, trata-se de abordar um conceito mais amplo de coordenação relacionado ao processo político de cooperação e obtenção do consenso sobre temas necessariamente conflituosos, onde as dimensões técnicas e políticas são combinadas em doses variáveis (GARNIER, 2005). A coordenação de um governo, entendida como o alinhamento político de seus atores, implica sempre em compartilhamento de objetivos e a coerência entre os diversos resultados. Ela demanda uma tecnologia institucional específica, com instrumentos adequados, para formulação de políticas e sua implementação, mas, sobretudo, demanda uma base política de entendimento mínima sobre identificação, seleção e explicação de problemas e os critérios de decisão aplicados às alternativas disponíveis (MATUS, 1993).

Um dos instrumentos típicos de uma ação coordenada é a deliberação colegiada, baseada no debate e na livre argumentação e persuasão entre os participantes de uma instância coletiva. Para alguns autores racionalistas (como Elster, 1998, por exemplo), a argumentação - se feita entre iguais – seria capaz de revelar preferências, atenuar as assimetrias informacionais, desestimularia comportamentos auto-interessados e dissimulações, legitimaria

29 Para Rua (2005), entende-se por coordenação técnico-política “... um conjunto de mecanismos e

procedimentos destinados a compor ou articular as decisões e ações do conjunto de entes governamentais – políticos e burocratas – de maneira a obter resultados concertados, intercomplementares e consistentes; ou seja: não-erráticos, não-superpostos e não-contraditórios, que expressem e façam sentido em um projeto de longo prazo.” (p. 01).

as escolhas e resultaria em mais eficiência para a decisão coletiva. Na verdade, no mundo real, como observado na dinâmica dos colegiados da política industrial brasileira, as condições de participação são naturalmente assimétricas e a opacidade dos processos decisórios não é exceção, mas a regra. Como as condições de igualdade entre os participantes e a simetria de informações são pressupostos dificilmente observáveis no mundo real, o processo de coordenação em fóruns colegiados tende a ser mais incremental, a partir de ajustes mútuos, muitas vezes, não lineares, nem sequenciais. 30

A capacidade de coordenação governamental influencia diretamente os níveis de cooperação entre os atores e impacta na probabilidade de sucesso das políticas, como assinal Stein et alii (2006):

La capacidad de los actores políticos para cooperar a lo largo del tiempo es un

factor determinante y crucial de la calidad de las políticas públicas. Son múltiples

los actores —como políticos, administradores y grupos de interés— que operan em diferentes momentos ... Si estos participantes pueden cooperar entre ellos para

concertar acuerdos y mantenerlos en el transcurso del tiempo, es probable que se desarrollen mejores políticas. En sistemas que alientan la cooperación es más

probable que surja un consenso en cuanto a la orientación de las políticas y los programas de reforma estructural, y que los gobiernos sucesivos consoliden lo que han logrado sus predecesores (STEIN, et alii,p. 9, grifo meu)31

A coordenação intragovernamental surge no ambiente do CNDI, não como um problema administrativo, nem como uma solução planejada a priori pelos seus empreendedores mais destacados, como o Ministro Furlan, ou pela burocracia técnica do MDIC. Ela surge exatamente da confluência de grandes fluxos políticos: problemas estruturais da indústria que ganham exposição pública crescente, políticas industriais alternativas vindas da burocracia técnica do governo e do setor privado e um ambiente político propício, estimulado pela coalizão governamental vencedora. Em relação aos problemas, o CNDI passa a ser a câmara de ressonância da crise da indústria, materializada

30 Lindblom (1959), já havia abordado este tema ao constatar que o processo decisório em políticas públicas é

necessariamente fragmentado e não linear. Ao interagir os atores vão “ajustando-se” reciprocamente em sucessivos e cumulativos processos de barganha, resultando numa evolução incremental. Isto só acontece porque há uma “falibilidade da análise”, típica de sistemas onde a racionalidade é limitada. Na tomada de decisão em políticas públicas, quando se decide quem perde e quem ganha, o critério é sempre político e não técnico. Para Lindblom, só a interação sistemática entre as partes resolve uma divergência política.

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“A capacidade dos atores políticos para cooperar ao longo do tempo é um fator determinante e crucial de qualidade das políticas públicas. São múltiplos os atores – como políticos, administradores e grupos de interesse – que operam em diferentes momentos... Se estes participantes podem cooperar entre eles para concertar acordos e mantê-los no transcurso do tempo, é provável que se desenvolvam melhores políticas. Em sistemas que alimentam a cooperação é mais provável que surja um consenso quanto à orientação das políticas e programas de reforma estrutural, e que os governos sucessivos consolidem o que tenham conquistado seus predecessores” [ Tradução livres, do autor].

pela consigna da desindustrialização e da especialização regressiva diante da dinâmica sinocêntrica mundial32. Em relação às políticas públicas, o CNDI transforma a agenda formal ideal das políticas industrial (a PITCE e a PDP), numa “agenda decisional” de acordos possíveis, filtrando os principais projetos e iniciativas segundo sua viabilidade tecno-política conjuntural, guiados pela acomodação de interesses dentro do governo e recepcionando parcialmente a demanda da elite industrial que vocalizava, desde muito, os argumentos conhecidos do assim chamado “custo-brasil”.

Os acordos feitos no CNDI, como a aplicação seletiva de incentivos fiscais, as mudanças de governança dos Fundos Setoriais ou os novos marcos legais para a inovação, revelaram, a título de exemplo, cada um a seu modo e ritmo, uma rede de acordos internos costurados entre o MDIC e o Ministério da Fazenda, no primeiro caso, e com o Ministério de Ciência e Tecnologia, no segundo. No campo da política stricto sensu, isto é, das relações de poder, o CNDI assume conjunturalmente o papel de instância virtual de coordenação intragovernamental e público-privada, tarefa desempenhada e apoiada, em parte, pela nova agência, a ABDI. A própria Casa Civil da Presidência da República, cuja vocação funcional é a coordenação de todo o governo federal, na ampla maioria dos temas delegava implicitamente ao colegiado a articulação intra governamental, dedução lógica da postura dos dois Ministros-Chefe que compuseram o pleno do colegiado, José Dirceu até 2005 e Dilma Roussef até 2010. Além disso, sua instalação e funcionamento no Palácio do Planalto – sede do Governo Federal - contando com a presença esporádica do Presidente da República, representam eventos carregados de simbolismos e metáforas não desprezíveis para criar um ambiente de prestígio ao setor industrial e sinceridade das intenções governamentais. Só eventualmente e em termos políticos residuais, o CNDI acaba também sendo o desaguadouro natural de demandas pontuais de setores industriais, cujas propostas não foram vocalizadas, nem encontraram eco nos “fóruns de competitividade” setoriais.

A desmobilização do CNDI no segundo governo Lula poderia ser explicada pela ausência dos mesmos vetores que explicam seu excepcional desempenho no primeiro mandato. Ainda que o segundo mandato de Lula tenha acentuado o “ativismo estatal” e as

32 Apesar do volume de resultados do conselho, o tema da desindustrialização continuou a reverberar na

imprensa. Um empresário do setor têxtil que detém 65% do mercado de tecidos, afirmou em Julho de 2011: “queremos ou não ser um país industrializado? Se sim, as medidas precisam ser imediatas. Se não vamos nos tornar um país só de serviços. Só que vamos pagar um preço muito alto lá na frente. Veja o que aconteceu com os Estados unidos, com o desastre da indústria automobilística, por exemplo. O país agora chora os empregos perdidos e não consegue reempregar”. (Ivo Rosset, em entrevista à Folha de S. Paulo, em 21.07.2011)

ideias neo-desenvolvimentistas, dois processos contribuíram para desmobilizar o colegiado. O primeiro de natureza interna, o novo Ministro do MDIC, Miguel Jorge, da “cota pessoal” de Lula, não possuía a representatividade empresarial, capacidade pessoal de liderança e convocação dos empresários e o trânsito dentro do governo para se constituir como um autêntico political entrepeneur e liderar o processo de coordenação do governo federal. O segundo episódio crítico, de natureza exógena, foi a crise de 2008 – contrastando com a bonança externa do período anterior (auge do ciclo de commodities e demanda interna) - que praticamente, “suspendeu” a agenda de política industrial, e a substituiu por uma série de medidas anti-crise, pontuais e ocasionais, coordenadas top-down pelo Ministério da Fazenda, dispensando a necessidade de colegiados ou decisões mais coletivas.33

Para Kingdon (2011), o processo de formação da agenda governamental, isto é, a escolha de problemas a serem enfrentados e políticas a serem implementadas, pode ser considerado como essencialmente um processo de coordenação governamental. A ambiguidade é uma marca do processo decisório em políticas públicas, os burocratas decidem em ambiente de incerteza e conhecendo só parte das alternativas possíveis. Kingdon (2011) parte desta premissa para desenvolver o modelo dos “fluxos múltiplos”. A abordagem foi inicialmente formulada para tratar dos problemas da área da saúde e dos transportes nos Estados Unidos. A ideia de que as decisões públicas no mundo real obedecem a certa “anarquia” entre atores, demandas e movimentos políticos, foi emprestada de outro modelo, o

garbage can model34. Segundo o modelo a participação dos indivíduos na vida institucional é fluida e instável, sujeita à permanentemente rotatividade e alternâncias de grupos no poder.

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Após a crise de Dezembro de 2008 o Ministério da Fazenda, instruído pela Casa Civil, criou o Grupo de Acompanhamento da Crise (GAC) que fez sua primeira reunião no dia 07 de Janeiro de 2009, composto por alguns Ministros e empresários, trocou de nome no final de 2009, para Grupo de Avanço da Competitividade, por proposição de Armando Monteiro da CNI (em reunião do CDES em 15.09.2009, para priorizar medidas de apoio às exportações) . Construido e gerenciado diretamente pelo MF, informalmente funcionou como instância para legitimar as ações fazendárias. Em certa medida o GAC substituiu o debate da política industrial na ausência de protagonismo do MDIC, deslocando a agenda do CNDI para uma arena mais confortável e operacional para o MF. O presidente Lula eventualmente participava das reuniões, como a 5ª reunião do GAC, em 13.05.2009, onde foi anunciado a criação do Fundo Garantidor de Crédito para as PMEs.

34 Desenvolvido por Cohen, March e Olsen (1972) o modelo sugere que as alternativas em políticas públicas

estão caoticamente dispostas como numa “lata de lixo”, com muitos problemas e poucas soluções. As preferências dos atores não determinariam os cursos de ação, mas as organizações determinam que preferências serão determinantes para escolher uma ou outra solução. Apesar do contra-senso aparente o modelo sugere que “as soluções procuram os problemas” e não o contrário. Estas ideias foram aproveitadas por Kingdon na construção do modelo de “fluxos múltiplos” ao definir a formação da agenda como resultado imprevisível de múltiplas origens interdependentes (ou fluxos). A ideia central deste “esquema analítico” é a de que não há uma ordem causal e uma conexão clara entre problemas e soluções. As conexões são variáveis e só são compreensíveis como resultados autônomos no tempo. Soluções e decisões são efetivadas dentro de uma arena de escolhas aleatórias. O processo decisório, entretanto, não é totalmente exógeno e independente às estruturas políticas e instituições que influenciam as arenas de escolha.

As organizações são vistas como “anarquias organizadas” onde as preferências individuais não existem a priori, são formadas no momento impreciso da decisão e da ação.

As perguntas básicas são: (1) Como se forma a atenção sobre um determinado tema, entre dezenas de assuntos concorrentes? (2) como e de que forma se constituem as alternativas para resolver os problemas? e (3) como ocorre a seleção dos temas relevantes? As respostas a estas perguntas formarão a agenda do decisor político (agenda setting). As agendas políticas se formam pela convergência de três processos (multiple streams) diferentes: o de problemas, o de soluções e o de alternativas. Quando ocorrem crises, eventos ou símbolos específicos as questões transformam-se em problemas, que despertam um processo competitivo e seletivo por políticas, que são selecionadas de acordo com seu grau de aceitação, custos toleráveis, viabilidade técnica, orçamentária, etc. As comunidades de políticas (burocratas, políticos, empresários,...) disseminam as ideias dominantes, as ideias não-dominantes não desaparecem, mas ficam em um estado de dormência ou latência. A figura a seguir ilustra como estes conceitos são articulados no modelo teórico.

Figura 1 - Modelo de fluxos múltiplos na definição da agenda de politicas

A formação da agenda depende da combinação simultânea destes três fluxos: a questão se torna um problema, há viabilidade como política pública e as condições políticas são favoráveis. Dependendo da força do patrocínio de grupos de pressão, de burocratas em postos-chave e inclusive do “humor” (national mood), as ideias (soluções) ganham forma de propostas políticas. Elas são selecionadas (ou não) em função de sua viabilidade técnica, financeira e política. Nem sempre as ideias adotadas referem-se a problemas pré- determinados, há um descasamento sistemático entre “problemas” e “soluções”, a adoção de uma solução depende mais das estratégias de imagem, convencimento e poder. O valor de uma ideia depende do seu mensageiro. O mensageiro normalmente é um empreendedor político que conecta problemas à soluções, no momento certo, na interface apropriada. A existência de um problema não é condição suficiente para implementar uma solução correspondente. Quando os três fluxos (problemas, ideias e políticas) se combinam (coupling), abre-se uma “janela” transitória de oportunidades que compõe a agenda, o que pode ser casual ou previsível como o ciclo orçamentário ou a troca de governo.35

No CNDI a dinâmica da arena, isto é, a definição das pautas, o convite aos participantes, a condução dos debates e as propostas e encaminhamentos produziram uma agenda significativa de temas e assuntos de interesse comum entre empresários e governo. Mas, sobretudo, geraram um ambiente de negociação interno que acomodou interesses divergentes entre os próprios atores governamentais. As negociações entre os ministérios da

hard industrial policy como o MDIC e o MCTI e o Ministério da Fazenda sobre a natureza, alcance e impacto de incentivos fiscais e tributários, talvez seja o exemplo mais paradigmático desta capacidade estatal gerada pelo ambiente de cooperação conflitiva.

A visão de Kingdon sobre o papel do empreendedor é útil porque permite pensar o empreendedor como alguém que assume a liderança para coordenar recursos e atores. O empreendedor político é uma pré-condição para a coordenação de governo. Um conector de fluxos políticos, muito mais complexos e sutis. Por exemplo, no CNDI quando a pauta das reuniões era formulada havia a mediação do Ministro Furlan entre os interesses que ele

35 O modelo da agenda setting compartilha muitos conceitos analíticos com o modelo de “equilíbrio pontuado”

ou puncutated equilibrium model. Baumgartner e Jones (1995), inspirados na teoria biológica homônima desenvolvida por paleontólogos, sugerem que as políticas que se desenvolvem por longos períodos de estabilidade são pontuadas, esporádica e randomicamente, por períodos de instabilidade. Estes períodos resultariam em mudanças repentinas, abruptas e radicais no sistema político, Estado ou sociedade, conduzindo a novos patamares de equilíbrio e estabilidade. Em determinado ponto, algumas ideias podem encontrar eco em indivíduos ou grupos dominantes, por algum motivo, elas produzem uma rápida mudança (punctuations) do status quo político. Os autores chamam de “efeito cascata” (bandwagon) a disseminação rápida de novas preferências e comportamentos políticos.

mesmo recebia e processava dos empresariados, porém, mediado pelas “prioridades do presidente” e pelos estudos de viabilidade técnica, normalmente executados pela ABDI ou pela burocracia técnica do MDIC. Além disso, a formação da agenda no conselho obedecia à “regras não escritas” sobre a intocabilidade dos fundamentos macroeconômicos. O êxito da ação empreendedora dependia do manejo sutil de um ponto de inflexão onde estes três vetores fossem coincidentes, quando isso acontecia, havia então uma probabilidade maior de ação coordenada de governo.