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compreender o programa de enriquecimento instrumental de Reuven Feuerstein

3. Descrição perspectivada do caminho percorrido: uns recortes, um olhar

3.1. PEI – nível I: descrição do processo

Nesse capítulo, tentaremos, na medida do possível, nos aproximar, o quanto puder, do experienciado. Como afirma Miguel Bordas (2002), “o papel da atividade de descrever faz parte de uma atividade informativa, e de uma preocupação comunicativa caracterizada pela sua funcionalidade” (p. 101).

Pretendemos, dessa maneira, informar acerca do processo de treinamento para aplicação do PEI, disponibilizando elementos que possibilitem um panorama geral dessa proposta pedagógica, de Reuven Feuerstein, que seja capaz, ao mesmo tempo, de revelar a sua qualidade, o impacto causado no ensino médio e o grau de comprometimento com uma educação voltada para os princípios educativos do III milênio: alteridade, solidariedade, respeito à diversidade, diálogo, relação polilógica dos sentidos, aprendizagens múltiplas, entre outros37.

De 19 a 30 de agosto de 1999, fomos treinadas para aplicar o PEI – nível I, ou seja, 130 páginas de exercícios. Cerca de 25 a 30 páginas por bloco ou caderno didático. Para descrever esse período, utilizamos os seguintes recursos: os registros escritos, gravados e a rememoração dos acontecimentos disponibilizados e vividos durante o curso.

O curso se realizou num espaço reservado para trabalhar questões voltadas para a formação de professores, chamado IAT (Instituto Anísio Teixeira). Lá nos hospedamos e vivemos uma experiência de semi-internato.

De um modo geral, ignorando o momento de chegada, preenchimento de formulários, acomodação nos quartos ..., nossa rotina resumiu-se a

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No capítulo III, trataremos acerca de alguns dos principais princípios educacionais de nossa era hodierna, através da teoria polilógica dos sentidos, de Dante Galeffi, e a teoria do labirinto, de Felippe Serpa. Além de, no capítulo IV, tratar de questões contemporâneas relativas ao campo de atuação científico que o PEI está inserido.

atividades direcionadas ao alimento e à resolução das tarefas na sala de aula, assim configurada:

Enfocaremos os aspectos mais relacionados à sala de aula. No primeiro dia, então, ouvimos pela primeira vez, muito superficialmente, no que consistia o PEI e sobre seu criador. Nada se comentou de seu contexto sociohistórico. Embora, entre uma aplicação e outra, a partir de um questionamento de um professor em treinamento, o treinador falava um pouco acerca desse programa, com expressões do tipo: “Ou vocês acreditam e seguem, ou duvidam e caem fora. No PEI, não há meio termo” (Treinador- supervisor de PEI).

Eles (os treinadores-supervisores) nos informaram que esse programa era uma proposta de intervenção, que manifestava uma necessidade da educação do Estado da Bahia em mudar algo, pois visava a preparar alunos independentes. Falaram-no, também, sobre a escassez do tempo, que teríamos no curso, devido à quantidade de conteúdo para ser estudado. Segundo eles, esses conteúdos envolveriam matemática, geografia e linguagem com a questão do raciocínio. Essas áreas do conhecimento e os raciocínios trabalhados no curso priorizavam conectar, elaborar, resolver problemas, desenvolver habilidades e processos mentais.

De acordo com os treinadores, o processo de desenvolvimento humano ocorre através do biológico e de estudo sistematizado, elaborado. As mudanças no organismo humano, portanto, para eles, são devidas às aprendizagens naturais e mediadas.

Nesse momento, já estavam introduzindo a teoria da modificabilidade cognitiva estrutural, de Reuven Feuerstein. Assim, explicaram que: precisamos de pessoas com estruturas cognitivas modificadas; modificabilidade refere-se às mudanças que se podem produzir no próprio indivíduo, na sua personalidade, na sua maneira de pensar e no seu nível global de adaptabilidade; o cognitivo abarca os processos mentais, ou seja, os processos pelos quais os indivíduos percebem (input), elaboram e comunicam (output) informações para se adaptar; as estruturas cognitivas permitem o nosso raciocínio elaborar, reunir informações e solucionar problemas; e inteligência é sinônimo de adaptabilidade.

Segundo esses treinadores, “nem toda mudança é modificabilidade”, e para que esta seja modificadora deve ter algumas características.

1.ª característica: coesão forte entre o todo e as partes. Isto é, relações entre partes do todo. Relações dentro das estruturas. Mobilizar as estruturas cognitivas. Exemplo: a diferença entre fazer um exame e fazer PEI. Vejamos como acontece representado no gráfico abaixo.

Depois do PEI, desenvolvemos a capacidade de seguir aprendendo. Aprendemos com a interação, com o mundo. O PEI provoca um impacto de fora para dentro. Este processo permite que estejamos aqui e que saiamos mudados. As mudanças estão nas relações e não no conhecimento. Nesse sentido, a inteligência é a capacidade de se organizar, modificar-se numa interação direta com o meio ambiente, com o mundo, isto é, se adaptar. E isso só é possível depois de uma experiência de aprendizagem mediada (EAM), e o PEI promove essa experiência. 2.ª característica: transformação, isto é, a essência das partes das estruturas deve ser mantida. Ou melhor, não mudamos a essência, mudamos a relação. Isto é, mudamos a possibilidade de modificarmos as relações e não a essência. Toda

pessoa pode modificar-se. Algumas mais rapidamente, outras com mais energia. Há muitas pessoas com estruturas rígidas, daí a dificuldade em aprender. Aprender significa modificar-se.

3.ª característica: continuidade e autoperpetuação. Uma vez começado esse processo de modificabilidade, segue-se o processo sem influência externa. Automodificabilidade, ou seja, um perpétuo modificar-se. Isto é, não há mais o que intervir porque a pessoa está independente, está modificada, pronta para seguir seu caminho. (Treinador-PEI, 1999 – grifo nosso)

Além disso, os treinadores nos falaram da existência de 03 barreiras, que, na concepção de Feuerstein, impedem a modificabilidade de aprendizagem: (1) idade; (2) estado do organismo e (3) causas básicas de baixo nível de modificabilidade: privação cultural (isto é, não assimilação de sua própria cultura), emocional, estímulos não elaborados, aspectos biológicos (hereditariedade), alimentação.

Mas, segundo eles, essas barreiras serão “derrubadas” se somente se o indivíduo for submetido a uma experiência de aprendizagem mediada, a EAM de Reuven Feuerstein. Então, vejamos:

... a proposta de Feuerstein, de grande importância teórica e de profunda significação social põe em relevo que nenhum indivíduo é ineducável, na medida em que defende o potencial de aprendizagem e a modificabilidade humana, que, obviamente, só se pode alcançar numa situação de experiência de aprendizagem mediada. (Treinador-PEI, 1999)

Depois disso, os treinadores nos informaram que havia dois tipos de aprendizagem: uma direta, isto é, estímulo – organismo – resposta, e outra a experiência deaprendizagem mediada, isto é,

estímulo – mediador38– organismo39 – mediador – resposta.

Embora, muito brevemente, falaram acerca do mapa cognitivo40, como ferramenta para o professor, explicando os seus 07 parâmetros e os seus três possíveis usos: (1) Analisar o próprio ato mental do aluno, isto é, seu raciocínio; (2) Planejar uma lição de PEI; (3) Analisar uma lição de PEI.

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Ser humano mais experiente: agente de transmissão cultural.

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Ser humano menos experiente.

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Fizemos durante o curso, como “tarefa de casa”, muitos desses mapas para planejar e analisar algumas lições de PEI.

Assim, também, nos apresentaram as funções cognitivas, tratadas no capítulo anterior, afirmando que, no PEI, essas funções têm como objetivo “aumentar o nível de modificabilidade cognitiva, ou seja, aumentar o nível de aprendizagem, isto é, adaptabilidade a novos contextos” (Treinador de PEI, 1999).

Segundo os treinadores, conseguiremos alcançar os objetivos do PEI se soubermos mediar. Mediar, para eles, é não dar respostas; “mediar é perguntar”; “o mediador é um artista da interrogação, ou seja, aquele que trabalha com o raciocínio indutivo”. Maravilha. Só esqueceram de nos dizer que os professores em treinamento receberiam um manual de como perguntar.

Além disso, eles nos apresentaram 11 critérios de mediação de Feuerstein41, tendo como os mais fundamentais, os três primeiros: (1) intencionalidade e reciprocidade; (2) mediação do significado; (3) mediação de transcendência; (4) mediação do sentimento de competência; (5) mediação da auto-regulação e conduta controlada; (6) mediação do sentimento de compartilhar; (7) mediação da individuação; (8) mediação do planejamento de objetivos; (9) mediação do desafio; (10) mediação da mudança estrutural; (11) mediação do otimismo.

Objetivando “aprofundar” essa temática, deram-nos um texto xerocopiado do livro de Victor da Fonseca, Aprender a aprender, p. 70-77. Embora, com uma ressalva: “esse texto não é muito bom não. Mas, por enquanto, até a gente conseguir ter as obras do professor Feuerstein traduzidas, vamos nos virando” (Treinador-PEI, 1999).

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Eles nos solicitaram que acrescentássemos a essa lista do Victor da Fonseca mais um critério de mediação, que, segundo eles, Feuerstein havia percebido, recentemente, o critério de pertencimento. De forma muito entusiasmada, disseram-nos que esse autor havia descoberto que as pessoas precisam sentir-se pertencentes a um determinado grupo humano. Daí, é papel fundamental também do mediador fazer com que as pessoas se sintam partícipes do seu grupo42.

Vivenciamos uma tensão muito desgastante e desnecessária. Às vezes, compartilhamos momentos desconfortáveis pelo tratamento dado a alguns colegas de curso, principalmente aqueles que participavam ativamente do processo, falando, se posicionando, questionando... Segundo os treinadores, estavam mediando a conduta impulsiva de alguns deles, porque tinham de perceber que outras pessoas precisavam falar. Então, muitas vezes, quando um desses colegas queria se expressar, o treinador dizia: “Agora não. Só um momento. Vamos ouvir fulano. E você sicrano. Ah, sim. Pode dizer agora.” No final do curso, o mais participativo da turma foi elogiado porque havia mudado sua conduta, corrigindo assim, conforme pensam, sua “impulsividade”, e, segundo os treinadores, estava falando menos, ouvindo mais e estava pensando “melhor” antes de falar.

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Gostaríamos de registrar também um fato, no mínimo, curioso, no dia da chamada conferência master de Reuven Feuerstein, no I Fórum Internacional PEI, nos dias 16 e 17 de novembro de 2000, realizado no Centro de Convenções da Bahia, na cidade de Salvador. Numa exemplificação de como se fazia uma mediação, isto é, como se aplicava o PEI, uma criança não sabia o que ou como responder, daí o Prof. Feuerstein indicava com um dedo, apontando e batendo, repetidamente, na folha de exercício até que ela respondeu e ele pode prosseguir sua demonstração. Até aí, diríamos, tudo bem, pois compreendemos que, numa relação efetiva entre seres humanos, uma lista de critérios (“de mediação”) e uma premeditação no tocante ao que queremos fazer do outro não bastam para a construção de uma aprendizagem significativa e emancipatória. Além disso, que garantias podemos ter nas respostas “certas” dos nossos alunos? O que eles efetivamente aprendem quando respondem (ou não respondem) a partir da nossa configuração perceptiva? Ao chegarmos em nossa escola, entretanto, num momento de reunião de PEI, o treinador responsável por nos supervisionar e acompanhar nossos trabalhos, perguntou-nos se havíamos nos detido naquele momento, inusitado, segundo ele, da demonstração do professor Feuerstein de como mediar, acrescentando que ali havia se concretizado um outro critério de mediação que ele nomeou de Mediação

Motórica. Também pediu que acrescentássemos em nossa lista de tipos de linguagens trabalhadas no PEI

(linguagem pictórica, figurativa, verbal e escrita) a motórica. Esse treinador-supervisor nos informou que foi orientação do próprio Feuerstein para que os treinadores-supervisores transmitissem essas informações para os “professores de PEI”.

Outro momento desagradável foi quando um dos colegas inventou, com um pequeno pedaço de papel, um mecanismo para encontrar os triângulos e os quadrados das folhas de organização de pontos, resolvendo, assim, o exercício de PEI mais rapidamente (vide anexo, fls. 03 e 04). Ele foi ridicularizado. Daquela forma como ele havia pensado, diziam, não poderíamos trabalhar, porque não estávamos possibilitando o desenvolvimento cognitivo dos estudantes.

Para desenvolver a inteligência, é preciso o uso abstrato e não concreto, isso alguns pesquisadores já fizeram e não deu em nada. No PEI, o único instrumento permitido para solucionar os problemas colocados é o lápis. Não pode se usar régua, nem borracha, nada. Só a folha de PEI, lápis e raciocínio. Tudo isso pra se tornar um sujeito autônomo, de idéias próprias e não apenas um mero consumidor de informações. Entenderam? (Treinador, 1999).

Assim, nessa configuração perspectivada, ocorreu o treinamento para aplicadores da proposta pedagógica, de Reuven Feuerstein, para o ensino médio na Bahia. No mais, foram resoluções de exercícios. Competições que estabelecíamos uns com os outros para verificar quem terminava mais rápido, experimentando, às vezes, um sentimento de incapacidade, às vezes, um sentimento de superioridade perante os demais.