• Nenhum resultado encontrado

3.5 Perspectiva metodológica do ISD: o trabalho com o texto

3.5.1 O nível organizacional dos textos

Na proposta de Bronckart (2012), o nível organizacional equivale ao nível da infraestrutura textual. Por esse enfoque, destacam-se a identificação do plano global do texto bem como de sua sequência global, além dos tipos de discurso e das sequências locais. Complementando a proposta de Bronckart, os pesquisadores do grupo Alter acrescentaram os mecanismos de textualização que garantem a coesão e a coerência ao texto.

A identificação do plano global pode ocorrer por meio do reconhecimento do gênero ao qual o texto pertence, dos elementos macrotextuais, dos intertítulos, dos capítulos, da apresentação de divisões do texto, entre outros. Entretanto, o estudo do plano global do texto não deve ser considerado como mera abordagem estrutural; é preciso, principalmente, interpretar o conjunto de resultados oriundos da identificação do plano global.

Segundo Bronckart e Machado (2004, p. 145), por meio do plano global podemos definir o estatuto dialógico do texto, o qual obedece a objetivos específicos em consonância com as representações que o autor possui de seu destinatário. Desse modo, em um texto predominantemente argumentativo, há o indício de que o destinatário possui compreensão oposta à do enunciador, tendo em vista que este precisa persuadi-lo, valendo-se de argumentos que sustentem seu ponto de vista. Por esse viés, sobre a sequência textual global, Machado e Bronckart (2009, p. 55) afirmam:

[...] podemos também identificar as representações do produtor sobre os objetivos de sua ação de linguagem (convencer, fazer compreender, dirigir o olhar do destinatário, manter sua atenção etc), suas representações em relação ao objeto temático (como sendo difícil de ser compreendido pelo destinatário ou como sendo controverso), sobre as capacidades de compreensão e sobre a posição do destinatário em relação ao objeto tematizado, que pode ser igual ou diferente da do produtor. Portanto, essa análise mesma, que é do nível organizacional, pode nos trazer informações, mesmo que parciais, sobre a figura do professor que é construída e sobre alguns dos aspectos de seu trabalho.

Em virtude do exposto, corroboramos a assertiva de que as partes constitutivas de um texto são fundamentais para que possamos definir a relação dialógica entre enunciador e destinatário. A nosso ver, pelo estudo do plano global, é

89

possível auferirmos informações acerca do trabalho e das representações sobre o trabalho docente apresentadas no texto.

Além do plano global, a infraestrutura textual compreende os tipos de discurso. São esses tipos de discurso que traduzem os mundos discursivos. Na ótica de Bronckart (2012, p. 151), a atividade de linguagem baseia-se na criação de mundos virtuais:

Esses mundos são sistemas de coordenadas formais que, de um lado, são radicalmente “outros” em relação aos sistemas de coordenadas dos mundos representados em que se desenvolvem as ações de agentes humanos, mas que, de outro, devem mostrar o tipo de relação que mantêm com esses mundos da atividade humana.

O excerto citado refere-se aos mundos discursivos e ao mundo ordinário. Os mundos discursivos são, portanto, aqueles que podem ser identificados por meio dos tipos de discurso, que são as formas linguísticas identificáveis nos textos e que são articulados mediante mecanismos de textualização e mecanismos enunciativos. Já o mundo ordinário compreende os mundos representados pelos agentes humanos, ou seja, o mundo no qual se desenvolve a ação de linguagem.

O conteúdo temático mobilizado nos textos é organizado a partir de coordenadas que podem apresentarem-se como disjuntas das coordenadas do mundo ordinário ou como conjuntas às da ação de linguagem. De acordo com Bronckart (2012), diz-se disjunta a coordenada quando o conteúdo do texto refere-se a fatos passados, a fatos futuros ou a fatos imaginários e conjunta quando as representações mobilizadas no texto organizam-se em referência mais ou menos direta ao mundo da ação de linguagem em curso.

Desse modo, o autor genebrino apresenta distinção entre os mundos da ordem do narrar e da ordem do expor. O mundo do narrar é entendido como um mundo discursivo situado em um lugar outro, distante do mundo ordinário e, por essa razão, pode apresentar desvios em relação às regras do mundo ordinário; ao passo que o mundo do expor apresenta um conteúdo temático que deve ser interpretado a partir dos critérios de validade do mundo ordinário (BRONCKART, 2012).

Ainda, em um segmento de texto é possível que a relação entre as instâncias de agentividade (agente-produtor, interlocutor) com os parâmetros da ação de

linguagem (espaço-tempo) seja explicitada. Nesse caso, Bronckart (2012) afirma que o texto mobiliza ou implica os parâmetros da ação de linguagem, o que pode ser percebido a partir das referências dêiticas desses parâmetros. Além disso, pode ocorrer de as instâncias de agentividade manterem independência ou indiferença sobre os parâmetros da ação de linguagem em curso. Diz-se, nessa situação, que o texto se apresenta de modo autônomo aos parâmetros da situação de produção.

Assim, temos:

a) mundo do EXPOR implicado; b) mundo do EXPOR autônomo; c) mundo do NARRAR implicado; d) mundo do NARRAR autônomo.

Os tipos psicológicos correspondentes aos mundos discursivos podem ser observados no quadro 1, a seguir:

Conjunção EXPOR Disjunção NARRAR Relação ao ato de produção Implicação Discurso Interativo Relato Interativo

Autonomia Discurso Teórico Narração Quadro 1 – Coordenadas gerais dos mundos.

Fonte: Bronckart (2012, p. 157).

Em resumo, temos quatro tipos de discurso, são eles: discurso interativo, discurso teórico, relato interativo e narração.

Para que possamos identificá-los, devemos partir de características linguísticas próprias, tais como predominância de tempos verbais, de determinados pronomes, de certos mecanismos de textualização e de marcas enunciativas expressas principalmente pelos dêiticos, a exemplo, pronomes pessoais, possessivos, advérbios de lugar e de tempo, tais como aqui, agora, amanhã, neste momento etc.

O discurso interativo caracteriza-se pela presença de unidades que remetem à própria interação verbal, aos participantes da interação, principalmente pela presença de nomes próprios, verbos e pronomes de primeira e segunda pessoa,

91

além da presença de frases não declarativas. Os tempos verbais que indicam o caráter conjunto implicado do mundo discursivo são o presente do indicativo e o pretérito perfeito do indicativo.

O discurso teórico, pertencente à ordem do expor, apresenta predominância de verbos no presente e no futuro do pretérito e a ausência quase total de verbos no futuro do presente. Os tempos presente do indicativo e pretérito perfeito, também próprios do discurso interativo, constituem o discurso teórico, porém com valor genérico, não com valor dêitico, como comumente é no interativo. Ainda, há a ausência de unidades que remetem aos participantes da interação ou ao espaço e tempo da produção, tais como os ostensivos, os dêiticos espaciais e temporais, bem como pronomes de primeira e segunda pessoa (BRONCKART, 2012).

O relato interativo, por possuir caráter disjunto implicado do mundo discursivo, apresenta organizadores temporais, explícitos ou não, além da predominância de verbos no pretérito perfeito, pretérito imperfeito, que podem estar associados às formas do mais-que-perfeito, do futuro simples e do futuro do pretérito. Há também pronomes e adjetivos de primeira e segunda pessoa, do singular e plural, que remetem aos protagonistas da interação verbal pertencente ao relato.

A narração, por sua vez, possui caráter disjunto autônomo do mundo discursivo. Por essa razão, são ausentes pronomes e adjetivos de primeira e segunda pessoa do plural e do singular, que remetem ao agente produtor do texto ou a seus destinatários. Os tempos verbais dominantes são o pretérito perfeito e imperfeito, para indicar isocronia entre a narrativa e os acontecimentos da diegese, e o mais-que-perfeito composto, por indicar a relação retroativa entre o curso da narrativa e o curso da diegese (BRONCKART, 2012). Ademais, há a presença de organizadores temporais para indicarem a origem espaço-temporal da narração.

Bronckart (2012) destaca a possibilidade de haver a fusão entre os tipos de discurso, gerando o discurso do tipo misto. Assim, o discurso teórico, por exemplo, pode fusionar-se com o interativo, formando o discurso interativo-teórico. É o que ocorre em segmentos que apresentam características do interativo, como pronomes de primeira pessoa, remetendo ao autor do texto (eu, me, mim), e características do teórico, como organizadores lógico-argumentativos (mas, de fato, às vezes, com

efeito). Vale destacar que essas variações podem ocorrer entre os demais tipos de discurso.

Ainda no plano global, são analisados os mecanismos de textualização. Esses são responsáveis pela progressão do conteúdo temático e, por conseguinte, pelo estabelecimento da coerência temática do texto (BRONCKART, 2012). Tais mecanismos são reagrupados em três conjuntos: conexão, coesão nominal e coesão verbal.

Os mecanismos de conexão marcam a progressão temática, isto é, as relações entre diferentes níveis de organização do texto. São constituídos por organizadores textuais (conjunções, advérbios, locuções adverbiais). Os mecanismos de coesão nominal englobam as relações de dependência existentes entre argumentos que compartilham propriedades referenciais (BRONCKART, 2012), portanto, eles apresentam basicamente duas funções: a primeira delas é a de introduzir no texto uma informação nova que se torna fonte de origem de uma cadeia anafórica, e a segunda é a função de retomada que reformula essa unidade antecedente ao longo do texto. São expressas principalmente por pronomes (pessoais, possessivos, relativos etc.). Por fim, os mecanismos de coesão verbal tratam da organização da temporalidade dos processos verbais referidos no texto e são expressos, sobretudo, pelos tempos verbais.

A análise dos mecanismos de conexão e de coesão nominal são importantes para que possamos identificar os principais actantes postos em cena no texto do entrevistado, bem como as representações apresentadas sobre estes, conforme a progressão temática.

Apresentado o nível organizacional, passemos ao segundo nível, o enunciativo.