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Conforme destacamos anteriormente, nossa pesquisa apoia-se na vertente do ISD no Brasil, a qual estuda, entre outros objetos, o ensino na dimensão do trabalho, a partir de uma abordagem discursiva, com o intento de compreender o trabalho educacional. Nesse sentido, o ISD11 considera que as interpretações do agir do professor a partir de textos produzidos em situação de trabalho ou sobre o trabalho trazem contribuições não só para o entendimento do trabalho educacional, mas também para a “manutenção ou para a transformação dos „modelos de agir‟” (MACHADO; BRONCKART, 2009, p. 35).

Em virtude disso, para interpretar o agir do professor, o Grupo Alter, vinculado ao programa de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL), buscou definir o trabalho docente, a fim de não incorrer em interpretações genéricas, ou seja, interpretações cabíveis a qualquer atividade humana. Para tanto, foi realizada uma revisão de autores que abordaram a noção de trabalho geral e, então, a percepção

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Ao nos referirmos à corrente do ISD no Brasil remontamos à proposta da pesquisadora Anna Rachel Machado, que adotou o trabalho docente como um dos principais objetos de seus estudos.

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de Clot (1999), Amigues (2004) e Saujat (2002) foi adotada pelo Grupo Alter no que diz respeito às seguintes características da atividade do trabalho geral:

a) é pessoal e sempre única, envolvendo a totalidade das dimensões do trabalhador (físicas, mentais, práticas, emocionais etc);

b) é plenamente interacional, já que, ao agir sobre o meio, o trabalhador transforma e é por ele transformado;

c) é mediada por instrumentos materiais ou simbólicos;

d) é interpessoal, pois envolve sempre uma intenção com outrem (todos os outros indivíduos envolvidos direta ou indiretamente, presentes ou ausentes, todos os “outros” interiorizados pelo sujeito);

e) é impessoal, dado que as tarefas são prescritas ou prefiguradas por instâncias externas;

f) e é transpessoal, no sentido de que é guiada por “modelos do agir” específicos de cada “métier” (MACHADO; BRONCKART, 2009, p. 37).

A partir dos elementos elencados, notamos que o trabalho docente é uma atividade complexa, sobretudo em razão da multiplicidade de fatores que o constituem. Na medida em que o trabalhador deve, ao mesmo tempo, respeitar as normas hierárquicas, as prescrições e os seus limites emocionais, físicos, psicológicos etc., deve usar de recursos e instrumentos e, principalmente, deve superar os possíveis conflitos que possam existir com o outro, com o meio, seguindo os modelos de agir postos socialmente, para, então, atingir às finalidades de seu trabalho.

Essa multiplicidade de questões, portanto, evidencia a complexidade do trabalho. Desse modo, ao assumir o olhar sobre o agir do professor na dimensão do trabalho, Machado (2009) defende que o trabalho do professor deve ser repensado a partir dos elementos do trabalho geral. Além disso, a pesquisadora adota a concepção sobre o objeto do trabalho docente defendida por Amigues (2004) e adapta-a ao contexto do trabalho docente.

De acordo com Amigues (2004), o objeto do trabalho docente deve ser a organização de um meio favorável à aprendizagem e ao desenvolvimento dos alunos. Dessa forma, o professor deve organizar as relações constituintes de sua atividade não com o propósito de alcançar a aprendizagem, mas sim com o de constituir meios de trabalhos que propiciem o desenvolvimento dos alunos.

Por esse ponto de vista, Saujat (2004, p. 97 apud MACHADO; BRONCKART, 2009, p. 38) afirma que mesmo que o foco da “ação do professor seja, de fato, a

aprendizagem dos alunos, ele não é jamais atingido direta ou imediatamente: o seu alcance passa pelos esforços dos professores para ter uma classe que funcione”.

Tais colocações são consideradas relevantes para Machado (2009), embora a autora reconheça que o objeto da ação do professor, com base no ponto de vista dos autores, ainda é muito vago. Em razão disso, ela, junto aos pesquisadores do Grupo Alter, buscou melhor delimitar esse objeto e, então, considerou-o como o desenvolvimento de um meio propício ao crescimento dos alunos, em relação à aprendizagem de conteúdos e ao desenvolvimento de habilidades e capacidades.

Portanto, tendo em vista que o trabalho do professor consiste em desenvolver um modo de os alunos aprenderem e desenvolverem suas capacidades, somam-se a ele diversas questões. Em outras palavras, as dimensões físicas, mentais, emocionais do professor, por exemplo, somam-se a questões próprias do trabalho docente, tais como suas relações com outrem (alunos, colegas, pais); com os instrumentos que medeiam sua atividade (livro didático, quadro negro, slides etc.) e com as ordens externas (orientações do Ministério da Educação, da direção escolar etc.).

Com base nos elementos próprios do trabalho docente, Machado (2009) propõe um esquema referente ao trabalho do professor em sala de aula, apresentado a seguir:

Figura 1 – Esquema do trabalho do professor em sala de aula.

Fonte: Adaptado de Machado e Bronckart (2009, p. 39).

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Conforme podemos notar, o esquema apresentado diz respeito ao trabalho do professor em sala de aula. Contudo, sabemos que a atividade docente não se restringe à atuação em sala de aula, pois compreende múltiplas atribuições, como corrigir provas, elaborar trabalhos, preparar aulas, entre outras. Então, para a corrente brasileira do ISD, a cada uma das tarefas desenvolvidas pelo professor haverá um esquema semelhante ao apresentado, no qual devem ser abordadas não só as dimensões do professor, os outros e os objetos que fazem parte de tal tarefa, mas também os instrumentos e os artefatos.

No que concerne ao artefato e ao instrumento, devemos esclarecer a principal diferença entre eles. O artefato refere-se a tudo aquilo que se destina a uma finalidade da origem humana, podendo ser material (utensílio, máquinas objetos), imaterial (programa de computador) ou simbólico (signos, metodologias, esquemas, planos de aula etc.). O instrumento, por sua vez, existe “se o artefato for apropriado pelo e para o sujeito” (MACHADO, 2009, p. 38, grifo da autora). Isto é, são atribuídas funções ao artefato, porém, quando o sujeito se apropria do objeto, adaptando-o de acordo com seus objetivos específicos, temos o instrumento. Assim, um livro pode ser considerado artefato, no entanto, a partir do momento em que é usado em sala de aula para trabalho com os alunos, passa a ser instrumento, qual seja, um livro didático.

Observamos, então, que a multiplicidade de atividades pertencentes ao trabalho do professor, associada aos inúmeros fatores que compõem cada atividade – os quais podemos visualizar no esquema apresentado –, contribui para que o trabalho docente seja, além de complexo, peculiar.

A partir do objeto do trabalho do professor, qual seja, o desenvolvimento de um meio propício ao crescimento dos alunos quanto à aprendizagem de conteúdos e ao desenvolvimento de habilidades e capacidades, verificamos que alguns dos elementos do trabalho são obrigatórios. O principal deles é o aluno que representa um dos papéis que o outro, elemento do trabalho, pode assumir.

O fato de termos como um dos elementos centrais da interação o aluno, o qual possui suas dimensões físicas, emocionais, mentais bem como suas habilidades e limitações, faz com que o trabalho do professor não possa ser definido de forma precisa, pois as condições de trabalho são relativas. De acordo com o perfil

dos alunos, por exemplo, se são interessados, se são desatentos, se acompanham as aulas, se progridem nas atividades, se estão com problemas pessoais, se possuem limitações, o professor assumirá determinada postura. Isso leva o docente a reavaliar instrumentos, adaptar metodologias e repensar avaliações, isto é, as atividades que compõem o agir docente são reajustadas de acordo com cada situação. Por essa razão, dizemos que o trabalho docente apresenta particularidades responsáveis por tornarem-no diferente dos outros trabalhos.

A partir das considerações feitas, identificamos que as atividades envolvidas no trabalho docente exigem do professor sua organização em diferentes situações, concedendo, assim, ao professor, o papel de “ator, um produtor de significação de situações e de finalização de sua própria ação” (AMIGUES, 2004, p. 52). Desse modo, constatamos que o discurso corrente que marca o trabalho docente como uma atividade mediana, porque considera o professor como alguém desprovido de capacidade para exercer outra atividade profissional considerada “melhor”, não corresponde à complexidade do trabalho docente.

A nosso ver, essa percepção do trabalho do professor presente em discursos proferidos – sobretudo – por agentes externos à profissão, demonstra que ainda há uma incompreensão sobre esse métier. Nesse sentido, partilhamos da ideia defendida por Machado (2009) de que é com base nos textos produzidos em situações de trabalho ou daqueles desenvolvidos sobre a profissão docente que será possível compreender melhor essa atividade.

Em vista disso, antes de analisarmos um texto produzido sobre o trabalho docente, objeto de estudo de nossa pesquisa, julgamos pertinente apresentar um olhar histórico sobre a profissão de professor. Então, a fim de descobrirmos as razões contribuintes para que a profissão de professor seja, ainda hoje, considerada uma atividade a qual não exige muita habilidade técnica de quem a exerce, discorreremos, a seguir, sobre a formação docente, a partir de uma abordagem histórica da formação de professores, e sobre a docência, no contexto do ensino superior no Brasil.

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2.3 Profissão docente: um olhar sobre a perspectiva histórica da formação de