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CAPÍTULO II – A PESSOA COM DOR CRÓNICA

2.2. REPERCURSSÕES DA DOR CRÓNICA

2.2.3. Nível psicológico

A linearidade do conceito de dor, proposto por Descartes no século XVII, colocava de parte todas as situações de dor que não tivessem causa física, pois explicava que o estímulo doloroso activava receptores e fibras que transmitiam directamente mensagens para a espinal-medula e para o cérebro, para um local onde eram percebidas, um centro de dor. Pressupunha uma separação entre corpo e mente (Wall, 2007). Acreditava-se na dor se a pessoa apresentasse uma lesão (ferida, queimadura, infecção) ou uma doença, caso não fosse visível atribuía-se a um sofrimento psicológico ou a um fingimento de doença (Melzack & Wall, 2003).

É recente a possibilidade de conceptualmente a comunidade científica poder falar na dor como experiência subjectiva individual. Foi Melzack e Wall, que em 1965, com a teoria do portão (Gate Control Theory), enfatizou o papel dinâmico do cérebro na dor, e deste modo, permitiu introduzir também os processos psicológicos, tais como experiência passada, sugestão, atenção. Actualmente, a atenção continua a focalizar-se no cérebro e nos processos que ocorrem quando a pessoa tem dor. Reconhece-se a dor como um sistema biológico aberto, em que diferentes áreas do cérebro estão envolvidas, e que compõem a “matriz central de dor”. Para a actividade da neuromatriz (body-self neuromatrix), contribuem simultaneamente “inputs” dos neuromódulos sensorial, afectivo e cognitivo. Por sua vez, a neuromatriz projecta para outras áreas do cérebro padrões de saída “outputs” que produzem as múltiplas dimensões da experiência da dor, que concorrem para a hemeostase e respostas comportamentais (Melzack & Wall, 2003).

O desenvolvimento deste conceito da dor permitiu uma ruptura com a racionalidade cartesiana e abrir caminho, na convicção de Fernandes (2000), a uma visão holística da pessoa. Porque a dor não é exclusivamente um facto fisiológico, mas existencial, pois quem sofre é a pessoa por inteiro (Le Breton, 2007). Assim, surge a questão do sofrimento numa quase inequívoca relação com a dor crónica, no nosso quotidiano. Na dor fazemos alusão à

existir. Para Cantista (2001) o sofrimento prende-se no seu sentido filosófico mais profundo com a finitude e com a vulnerabilidade humana, que é a realidade da morte. A morte que se vive por antecipação. O sofrimento liga-se intimamente com a morte, está relacionado como que uma falta, no presente. Refere-se a “tudo aquilo” a que o analgésico e as técnicas não conseguem actuar.

A dor e o sofrimento são experiências-limite cujas representações marcam mais profundamente a pessoa que as conhece, do que as vivências de prazer ou comprazimento (Alcoforado, 2001). Porque o prazer e a alegria constituem experiências familiares, de expansão das relações, têm carácter transitório, enquanto que a dor crónica coloca no mais profundo do homem a suspeita da sua permanência, e leva a pessoa a fechar-se em si, a perder o interesse nas relações familiares e com o mundo. É uma ameaça poderosa ao sentimento de identidade (Le Breton, 2007). A dor monopoliza a atenção de tal modo, que o comportamento e o raciocínio ficam debilitados (Wall, 2007). A dor encarcera a pessoa num corpo que ela desconhece, mas que impõe a sua presença, num paradoxo, que Macedo (2001) refere como “nada mais pessoal do que a dor e no entanto nada mais estranho a si

do que essa mesma dor” (p.78).

Quando os tratamentos falham e a dor persiste, a frustração, o medo e a angústia1 podem instalar-se.

Para Gonçalves (2001), a pessoa com dor crónica sofre como que um trajecto de luto que se segue a uma perda e que pode “complicar-se com a evolução arrastada ou fixa

em quadros clínicos variados de apresentação, tendo como consequência uma inadaptação ou uma evolução patológica” (p. 304). A esperança na cura dificulta a aceitação da

cronicidade da dor, e, portanto, do tratamento adequado para o controlo da dor e da reabilitação funcional. A cronicidade da doença coloca a pessoa numa dependência quase permanente dos prestadores de cuidados e dos meios terapêuticos. Esta situação tem consequências psíquicas, como a regressão e a depressão, que constituem mecanismos de defesa que podem ajudar a uma adaptação à doença (Romher, 2002).

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Medo e angústia são duas categorias diferentes na perspectiva de Alcoforado (2001). O medo surge como uma “reacção perante uma ameaça concreta e definida, pelo menos nos seus contornos mais evidentes”, e a angústia é uma construção reflexiva mais elaborada, “que resulta do confronto da pessoa com uma

complexidade ameaçadora e destrutiva, nunca completamente definida, ou cujos contornos são tão amplos como indizíveis” (p.155).

A regressão manifesta-se por uma diminuição dos interesses a longo prazo, egocentrismo, dependência e sobrevalorização das reacções dos que rodeiam a pessoa com dor crónica, o que a leva a acreditar na omnipotência dos técnicos de saúde e dos medicamentos. É um mecanismo que exprime uma reacção de protecção e interiorização, possibilita a mais fácil aceitação de ajuda. Torna-se negativo quando o doente cria uma exigência reivindicativa relativamente aos que o acompanham. Para familiares e profissionais de saúde a não compreensão da necessidade de regressão pode remeter o doente à solidão, quando se descura a resposta afectiva ou se reage com paternalismo (Romher, 2002).

A segunda atitude é a reacção depressiva, em que o doente apresenta uma diminuição da auto-estima, com sentimentos de vulnerabilidade e de falibilidade. Manifesta-se por sentimentos de desvalorização, incapacidade de pensar projectos, fatalismo e resignação. A dificuldade em ultrapassar as fases depressivas que surgem ao longo do processo de doença, alerta para o risco de abandono de planos terapêuticos (Romher, 2002). O estado depressivo aumenta a intensidade da dor e diminui a sua definição, pois o sofrimento é inseparável das implicações emocionais (Silva, 2005).

Existem, ainda, mecanismos de defesa como a negação, reacção projectiva e o isolamento, que mostram sobretudo a fragilidade psíquica do doente face à dor crónica e afastam o doente das possibilidades de ajuda. Na negação, o doente rejeita, inconscientemente, a doença e os tratamentos. Apresenta hiperactividade e mantém todas as actividades, apesar de conhecer intelectualmente as consequências lesivas que acarretam. Também, pode projectar a culpa “do mal” que lhe acontece em factores externos, tornar-se vingativo e crítico para os profissionais de saúde e familiares mais próximos, com reacções persecutórias. O mecanismo de defesa patológico de isolamento engloba uma aparente falta de emoção e afecto, mesmo estando consciente, relativamente à sua situação de saúde e às suas consequências. Reconhece-se nas pessoas que descrevem a dor em termos muitos objectivos e científicos, que estão muito documentadas. Para Romher (2002), é um escudo que “esconde uma incapacidade total do doente em verbalizar a sua angústia e a sua

A intervenção terapêutica do profissional de saúde no doente com dor pressupõe a identificação das cognições do doente em relação à dor, pois são elementos necessários a ter em conta na comunicação com o doente, para que se possa fornecer a informação adequada à doença, dor, e assim modificar as cognições disfuncionais, de modo a promover o auto-controlo da dor e aceitação do seu estado de saúde (Gonçalves, 2001).

É neste contexto de processamento de informação, interna e externa, que a pessoa vai elaborar o significado da dor, antecipar as consequências da dor, os comportamentos, as expectativas quanto à evolução e tratamentos.