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A perspectiva médico-psicológica da diversidade de género: a construção da “narrativa clássica

1. A teorização da transexualidade e do transgénero: de categorias médicas a identidades sociais

1.1. A perspectiva médico-psicológica da diversidade de género: a construção da “narrativa clássica

As teorizações sobre a transexualidade e algumas das expressões contidas no transgénero (como o cross-dressing) provenientes da medicina são centrais, na medida em que foi com base nelas que se constituiu sobretudo a identidade transexual, como uma categoria (inicialmente, médica) independente. Embora diversas formas de descoincidência entre sexo e género tenham existido desde sempre, sendo transhistóricas e transculturais36 – ou, fazendo um paralelo com a constatação de Weeks (2003 [1996]: 42) a propósito do comportamento homossexual, as expressões de género trans sempre tenham existido numa variedade de culturas e sejam erradicáveis das possibilidades de expressão de género humanas –, a atenção da comunidade científica aos fenómenos transexual e transgénero foi iniciada nas ciências psico-médicas há cerca de um século.

As conceptualizações médicas sobre a diversidade de género ocupam ainda hoje uma posição dominante, estabelecendo o modo como o fenómeno é visto e experienciado nas sociedades ocidentais contemporâneas (Hines, 2007a: 9), e cada vez mais também em outras geografias37. Como notam os historiadores do “fenómeno transgénero” Richard Ekins e Dave King, que se dedicam ao seu estudo, já desde os anos 1970, “(…) as perspectivas médicas estabeleceram-se como as principais lentes culturais através das quais o gender blending38 pode ser visto na nossa sociedade. Outras perspectivas devem levar as médicas em conta, quer, em última análise, as ampliem, alarguem ou rejeitem” (1996: 75-76). Os estudos médicos e psicológicos construíram formas particulares de pensar acerca da

36 A reconstituição dessas formas em diversas culturas e em diferentes períodos históricos está para além dos

objectivos deste trabalho. Em TRANSgender Warriors. Making History from Joan of Arc to Dennis Roadman (1996), Leslie Feinberg mostra a existência de práticas transgénero desde pelo menos a Idade Média. Vern L. Bullough (1975) compila referências de possíveis casos de transexualidade na Europa e América nos últimos 200 anos. Já Serena Nanda (2000) dá conta da diversidade de género existente em diversas regiões do mundo – na Índia, na Tailândia, nas Filipinas, na Polinésia, na Albânia, nas culturas euro-americanas e nas nativas norte- americanas – e das suas variações culturais.

37 De tal forma que se pode considerar haver uma globalização ou mesmo uma “colonização” com sede nas

sociedades ocidentais no modo como identidades e expressões de género fora da cissexualidade são interpretadas em significativas regiões do mundo. A existência de manuais de diagnóstico, como é o caso da Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS), que tendo um alcance internacional, partilha os quadros de referência acerca das consideradas “perturbações de identidade de género” com o Manual Diagnóstico e Estatístico das Doenças Mentais (DSM) da Associação Americana de Psiquiatria (APA), será porventura o melhor exemplo dessa extensão geográfica e cultural da visão ocidental sobre o género e os seus “desviantes”.

38 Ekins e King privilegiam e optam pela utilização deste conceito em relação a outros que correspondem a

categorias médicas – como transvestismo, transexualismo ou disforia de género –, os quais, segundo defendem, apresentam limitações aos cientistas sociais por presumirem patologia. Já o “gender blending”, consideram os autores, é um conceito eminentemente sociológico, uma vez que é concebido como um processo, que implica tanto as próprias pessoas que “misturam” as componentes culturalmente estabelecidas do género (ou seja, as pessoas transexuais e transgénero) como os “outros” (por exemplo, a medicina ou os meios de comunicação social) (Ekins e King, 1997: 1). Tal como os autores o concebem, o termo “blending” contém dois significados básicos – por um lado, misturar ou combinar, e, por outro, harmonizar (1996: 2).

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diversidade de género, as quais continuam a informar os entendimentos culturais e até legais destes fenómenos (Hines, 2007b, 5.1). Aliás, até muito recentemente, o discurso médico-psicológico sobre as identidades trans bem podia caracterizar-se como uma metanarração (no sentido de Lyotard, 1989 [1979]), na medida em que se constitui como um discurso totalizante que presume a abordagem de todo o conhecimento científico, histórico e social, sem deixar lugar a outras compreensões (Martínez- Guzmán e Montenegro, 2010: 232).

Se, como o demonstraram os autores que se dedicaram à temática (por exemplo, Weeks, 2003 [1996]: 51), a existência de um modelo médico contribuiu profundamente para moldar a individualização da homossexualidade, e, por essa via, para a construção da noção de uma “pessoa homossexual distinta”, no caso sobretudo da transexualidade, tal influência será comparativamente mais vincada e mais duradoura, dado que ainda hoje nas sociedades ocidentais (e não apenas nestas) a transexualidade (sobre a forma de “perturbação de identidade de género” ou de “transsexualismo”), bem como outras formas de transgénero (como o cross-dressing39, sobre a forma de “transvestismo fetichista”40

), não só são culturalmente percebidas, como estão formalmente instituídas, como categorias médicas (inscritas nos catálogos de doenças, ao contrário do que acontece, desde 1973, com a homossexualidade, com a sua retirada do DSM – Manual Diagnóstico e Estatístico das Doenças Mentais da APA – Associação Americana de Psiquiatria), sendo muito recentes (já do presente século) as movimentações (contudo, ainda não conseguidas nem sequer a curto prazo garantidas) para a alteração de tal situação41.

Num trabalho, como o que agora se apresenta, focado nas identidades transexuais e transgénero, terá que se ter presente que, antes de se constituírem como identidades sociais de pleno direito (processo ainda hoje em curso), aquelas, sobretudo mais uma vez a transexualidade, constituíram-se como entidades nosológicas. Mas também no campo da medicina houve que percorrer um caminho para que as expressões e as identidades transexuais e transgénero fossem percebidas e reconhecidas como algo específico, tendo havido no seio das ciências médicas e psicológicas uma luta pela criação de um espaço de afirmação e de um espaço de intervenção, que foi seguido em Portugal com algumas décadas de atraso por relação aos países ocidentais pioneiros da “construção da

39 Tal como noutros casos em que não existe na língua portuguesa um termo exactamente com o mesmo sentido,

optámos por manter a designação em inglês. A hipótese de opção pela sua tradução à letra, que resultaria em algo como “cruzamento de vestuário” parece-nos não transportar todo o significado do termo. E a tradução não à letra mas do sentido, que resultaria em algo como “apresentação no género ‘oposto’ ao sexo atribuído”, afigura- se pouco prática e pouco versátil.

40 “Transvestite fetishism” no original. A dificuldade com a tradução dos termos em língua portuguesa, e a

inexistência de consenso (ou, pelo menos, de conformidade), está bem patente mesmo no seio das ciências médicas. Na única tradução portuguesa do DSM que encontrámos, este surge como “fetichismo transvéstico” (APA, 2002, tradução de José Nunes de Almeida). Já o psiquiatra Afonso de Albuquerque (2006: 127-128) traduz como “transvestismo fetichista”. Optámos por uma tradução mais literal de “transvestista”, tendo em conta a origem e o contexto de produção da designação e a intenção de se referir especificamente à utilização de vestuário atribuído ao “outro” sexo.

41 Referimo-nos ao movimento da despatologização das identidades trans, de que daremos conta mais

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transexualidade moderna ocidental”42. Como teremos ocasião de retomar ao longo deste trabalho, terá sido este investimento na “construção” e “consolidação” médica da transexualidade que permite compreender a circunstância de ser esta uma das primeiras a constituir-se colectivamente como uma identidade, porque a primeira a encontrar referências para aquilo que se é, mesmo que seja para contestar o modo como tal é colocado.

Os fenómenos de descoincidência entre sexo e género começaram a ser incorporados na ciência por via da sexualidade (e não do género, conceito que se viria a desenvolver concomitantemente com a sua necessidade de compreender e explicar este tipo de fenómenos) e essa génese condicionaria todo o seu percurso até aos nossos dias.

Durante o século XIX a medicina começa a destacar-se como área dominante para a compreensão dos fenómenos da sexualidade (Foucault, 1984 [1976]; Weeks, 1977) e na segunda metade desse século a “medicalização do sexualmente peculiar” (Foucault, 1984 [1976]), com o seu interesse pelo “mundo de perversão”, viria a proporcionar a atenção e a identificação dos fenómenos trans. As práticas aí inscritas foram então identificadas e classificadas como categorias “particulares” e “peculiares” do comportamento sexual. Como nota King (1996: 80), anteriormente, apresentar-se no género “oposto” ao sexo atribuído, e/ou assim viver, foi interpretado como prática fetichista e descrito como “inversão sexual” ou “sentimento sexual contrário”, termos usados para descrever a homossexualidade. Não cabendo traçar aqui pormenorizadamente a história e o percurso da conceptualização da transexualidade e do transgénero na medicina43, o papel fundador e central que ainda hoje desempenha justifica que lhe dediquemos alguma atenção.

Foi já durante os primeiros anos do séc. XX que surgiram as primeiras tentativas de classificar e conceptualizar as práticas trans, embora existam relatos clínicos de casos assinalados anteriormente (King, 1996: 79-80). O estudo moderno daquilo a que hoje podemos chamar trans-género inicia-se em 1910, com a publicação de Die Transvestiten (1910), da autoria do sexólogo alemão Magnus Hirschfeld (Bullough, 2000). Para além de cunhar o termo “transvestite”44

foi também ele que pela primeira vez utilizou o termo “transexualismo”, em 1923, ao referir-se ao “seelischer transsexualismus” (transexualismo psíquico) (Ekins e King, 2001a). O estudo de Hirschfeld foi pioneiro no estabelecimento de um lugar próprio para o trans-género, separado da homossexualidade. Com base nas investigações que realizou a partir dos casos que acompanhava, Hirschfeld viria a

42 No capítulo 3 daremos conta do percurso da medicina nacional na assunção dos cuidados trans-específicos. 43

Para um aprofundamento desta matéria veja-se, por exemplo, Billings e Urban, 1996 [1982]; King, 1996; Bullogh, 2000; Meyerowitz, 2002, especialmente 98-129; Ekins, 2005.

44 Traduzimos “transvestite” por “transvestismo”, e não por “travestismo”. Embora travestismo seja o termo na

língua portuguesa mais correntemente utilizado para referir as situações de descoincidência percebida entre sexo e género, a expressão de género “travesti”, uma das que mapearemos na sociedade portuguesa (à semelhança do que acontece na américa do sul) representa apenas uma das formas possíveis de transvestismo, ou seja, uma das expressões de género em que existe a prática de adopção de vestuário e comportamentos socialmente atribuídos ao sexo “oposto” ao da pessoa em causa. Transvestismo terá assim paralelo, ora com o sentido lato, ora com o mais restrito do moderno transgénero, mas em ambos os casos mais alargado do que o de “travestismo” quando remetido especificamente ao travesti.

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criticar Krafft-Ebing e outros estudiosos dos comportamentos sexuais por, a seu ver, não conseguirem compreender a verdadeira natureza do fenómeno:

“Ele [Krafft-Ebing] viu nisso, como a maioria dos autores antes e depois dele, nada mais do que uma variante da homossexualidade, enquanto hoje nos encontramos numa posição de poder dizer que o transvestismo é uma condição que ocorre independentemente e que deve ser considerada separadamente de qualquer outra anomalia sexual.” (Hirschfeld, 1938 em King, 1996: 83)

Também o sexólogo britânico Havelock Ellis (1928), que escrevia sobre o assunto desde 1913, contestou a existência de uma relação de implicação entre desejo por pessoas do mesmo sexo e práticas de cross-dressing e avançou para a classificação distintiva destas últimas. Ellis defendia a existência de dois tipos de “eonismo” (assim denominado por referência ao Cavaleiro de Eon45

, seguindo a tradição de Krafft-Ebing de descrever tipos de comportamento com nomes de pessoas que os praticavam, casos do sadismo e do masoquismo):

“Um, o tipo mais comum, é aquele em que a inversão é sobretudo confinada à esfera do vestuário; e o outro, menos comum mas mais completo, é aquele em que o cross-dressing é visto comparativamente com indiferença, mas em que o sujeito se identifica ele próprio com os traços físicos e psíquicos que se referem ao sexo oposto, ao qual ele sente realmente pertencer, embora não haja ilusão no que concerne à conformação anatómica.” (Ellis, 1928 em King, 1996: 82)

Em suma, os trabalhos pioneiros de Hirschfeld e Ellis produziram duas distinções conceptuais essenciais para a compreensão e estudo futuros destes fenómenos. Em primeiro lugar, o trans-género foi separado da homossexualidade, inaugurando assim a distinção entre orientação sexual e identidade de género. Em segundo, a “transexualidade” foi identificada como uma categoria distinta dentro do “transvestismo” (termo preferido de Hirschfeld) ou “eonismo” (o cunhado por Ellis), inaugurando também as distinções internas à própria diversidade de género.

Estes autores foram seguidos de outros trabalhos, sobretudo na área da psiquiatria, com destaque para a psicanálise. As teorias freudianas dominavam as tentativas de situar a etiologia (com a “ansiedade da castração”46

), e a consequente “reparação” dos sentimentos e comportamentos de género trans, até ao surgimento e notoriedade do caso de Christine Jorgensen47, que veio dar um novo impulso ao estudo destes indivíduos (Bullough, 2000; Meyerowitz, 2002; Ekins, 2005). Jorgensen foi a primeira pessoa a ficar (re)conhecida na história por ter realizado uma cirurgia de “mudança de

45 Cavaleiro da corte do rei Luís XIV de França, que ficou notado na história pelo uso de vestimentas femininas. 46 Genericamente as explicações freudianas para o comportamento trans assumem que os homens que utilizam

vestuário associado ao feminino o fazem por terem constatado, numa fase inicial da sua vida, a ausência de pénis nos genitais das suas mães. Essa constatação criou-lhes uma forte ansiedade pelo medo de perderem o seu próprio pénis, que poderia resultar não só em práticas de cross-dressing mas também “noutras” patologias sexuais (Bullogh, 2000).

47 Para uma análise aprofundada da história de Christine Jorgensen, e do papel por ela desempenhado na história

da transexualidade, veja-se o capítulo 2 “Ex-GI becomes blonde beauty” da “História da Transexualidade nos Estados Unidos” de Joanne Meyerowitz (2002: 51-97), que lhe é inteiramente dedicado. Pode também ser consultado o website oficial em http://www.christinejorgensen.org. A narrativa é popularizada na primeira das muitas auto-biografias de mulheres transexuais em Christine Jorgensen. A Personal Autobiography (2000 [1967]), San Francisco, Cleis Press.

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sexo”48

, nos anos 1950, tendo realizado as intervenções cirúrgicas (castração, remoção do pénis e transformação do escroto em lábios vaginais) na Dinamarca, país onde a castração cirúrgica era permitida e praticada em casos de crimes sexuais, com a permissão das autoridades nacionais. Entra então em cena a “cirurgia de mudança de sexo” e o seu principal defensor, o clínico norte-americano e apoiante das reformas sexuais, Harry Benjamin. O interesse deste autor sobre o assunto é anterior à publicitação à volta do caso de Christine Jorgensen, mas o conhecimento do caso e a interação que se estabeleceu entre ambos incrementou o processo de constituição da transexualidade como uma entidade clínica distinta – um diagnóstico com um programa de tratamento (Ekins, 2005: 309).

Benjamin publicou, em 1953, o seu primeiro artigo sobre a matéria, no qual distingue “transvestismo” de “transexualismo”, propondo uma etiologia biológica e reclamando a conversão cirúrgica nos casos apropriados. Durante os anos 1950, defendeu de forma controversa a aceitação da cirurgia de “mudança de sexo” com base na referida distinção, retomando as pistas dos autores pioneiros, mas com uma conceptualização e classificação da diversidade de género mais próxima da que viria a torna-se dominante. Melhor ainda, seria a sua conceptualização que viria a constituir-se no paradigma epistemológico de referência, tendo como uma das dimensões principais o estabelecimento da relação, ou até implicação, entre “transexualidade” e “cirurgia de mudança de sexo”.

“Transvestismo (…) é o desejo por parte de um certo grupo de homens se vestirem como mulheres ou de mulheres se vestirem como homens. Pode ser tão poderoso e esmagador ao ponto de se querer pertencer ao outro sexo e corrigir o ‘erro’ anatómico da natureza. Para esses casos o termo transexualismo parece apropriado.” (Benjamin, 1953 em King, 1996: 86)

O termo “transexual” tornou-se então de aplicação restrita (mesmo restritiva) a indivíduos que passassem pela cirurgia, enquanto o de “transvestismo” era associado a práticas de cross-dressing. Ou seja, “transexualismo” corresponde ao acto de “mudar de sexo”, literalmente, através dos procedimentos cirúrgicos e “transvestismo”, mais “ligeiro”, ao de adoptar vestuário atribuível ao género “oposto” ao seu sexo.

A classificação da transexualidade, e a consequente exploração da categoria, acabaria por reposicionar as outras modalidades de diversidade de género como menos importantes, enquanto o transexual – mais ainda o “verdadeiro transexual” – se tornou o “desviante de género por excelência” ou o “desviante adequado” (Hines, 2007a: 11). Certamente não será aqui alheio o facto de ser a transexualidade, tal como estava a ser conceptualizada, a modalidade de diversidade de género que menos se afastava, logo menos desafiava, o sistema dos dois sexos/géneros únicos e dicotómicos. Nesses desenvolvimentos a influência de Benjamin era proeminente, em particular após a publicação do seu The Transsexual Phenomenon, em 1966, considerado o “primeiro trabalho sério sobre o assunto” (Ekins, 2005: 310) e aquele que viria a sistematizar e a estabelecer muitas das compreensões

48 Embora não a primeira a realizá-la. Ira B. Pauly (1965) cita relatórios de 28 casos de transexualidade

publicados anteriormente ao caso de Jorgensen. Desses 28 casos, 16 implicaram alguma forma de cirurgia, nomeadamente a castração; sete tiveram penectomias (remoção do pénis); e em seis foram criadas vaginas (os primeiros dois casos ainda em 1931) (em King, 1996: 85).

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ainda hoje existentes sobre o fenómeno49. Os termos “transexualismo” e “transexual” começam então a inscrever-se definitivamente na história da medicina e, por essa via, na história da humanidade.

As décadas de 1950 e 1960 foram também as da “descoberta” e “reconhecimento” do “género”, enquanto uma propriedade dos seres humanos (e não apenas enquanto uma classificação gramatical). O próprio desenvolvimento do conceito de género é bastante devedor da necessidade de compreender e explicar cientificamente os fenómenos trans e intersexo. Dada a constatação de que a terminologia disponível no discurso sexual não era suficiente para descrever aquilo que observava, o psicólogo John Money trabalhava na designação desde 1955, no âmbito da sua pesquisa sobre intersexo (hermafroditismo à altura). O termo foi então utilizado para servir como conceito que distinguisse a propriedade das mulheres e dos homens, ou a feminilidade e a masculinidade, do sexo biológico (macho e fêmea) (Bullogh, 2000). Mas foi, definitivamente, na década seguinte que o termo foi mais incisivamente explorado e conceptualizado, entrando no léxico da ciência e tornando-se central para a compreensão da transexualidade, substituindo outros como “sexo psicológico”, adoptados durante os anos 1940. O psiquiatra Robert Stoller, em 1964, sofisticava as teorias sobre “género” com outro termo crucial para o entendimento da transexualidade e do transgénero – a “identidade de género”, para se referir ao “sentimento de uma pessoa de ser membro de um dado sexo”. A introdução da “identidade de género”, distinta do “papel de género” contribuiu para uma diferenciação mais clara entre o sentimento subjectivo do self e os comportamentos associados à masculinidade e feminilidade (Meyerowitz, 2002: 115).

O The Transsexual Phenomenon (1966) de Harry Benjamin, o Sex and Gender (1968) de Robert Stoller e o Transsexualism and Sex Reassignment (1969) de Richard Green e John Money introduzem a noção de “género” nos discursos da transexualidade e este começa a ser reconhecido como separado do “sexo”. Para além disso, começa a fazer caminho a ideia de que o “género” é imutável, pelo que, em caso de incongruência, era o sexo, ou o corpo sexuado, que teria que ser modificado. Estas teorizações vão ser cruciais para o desenvolvimento da concepção de transexualidade e para o modo de com ela lidar em termos médicos, pois, “Por conseguinte não é mais necessário reclamar uma causa biológica para a transexualidade para legitimar a mudança de sexo. Se o ‘género’ é imutável, ainda que psicologicamente produzido, e se a harmonia entre o sexo e o género é a pré-condição para o conforto psíquico e a aceitação social, ‘faz sentido’ conseguir a harmonia através da alteração do corpo.” (King, 1996: 94). A abertura da primeira clínica de “identidade de

49 Veja-se, no discurso e práticas nacionais, a reacção do Dr. João Décio Ferreira, cirurgião plástico que realizou

a maioria das cirurgias de reatribuição de sexo no nosso país, às campanhas a favor da desmedicalização das identidades trans: “Como é possível alguém dizer-se transexual e ir contra Harry Benjamin que dedicou a sua vida a estudar esta discrepância entre corpo e cérebro, entre sexo e género, a que depois foi dado o nome de Síndrome de Harry Benjamin. Coitado do Harry Benjamin !!! ... não merece que meia dúzia de "malucos" e "malucas" façam isso à sua memória.” (http://www.joaodecioferreira.com/cirurgia-dos-transexuais/a- transexualidade/79-desmedicalizacao-da-transexualidade.html). Nestas declarações é não só evidente o papel de referência de Benjamin como a indisponibilidade para alterar a “epistemologia da transexualidade” de que o mesmo foi um dos principais construtores.

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género” em Baltimore, nos EUA, na Universidade Johns Hopkins, em meados dos anos 1960, a que se seguiriam outras, tornaria este processo irreversível.

O “conforto psíquico” conseguido pela harmonia entre sexo e género, supostamente dependente da conformidade corporal, é o outro lado da “disforia de género”, termo que começa a dominar a literatura médica a partir dos anos 1970. A “disforia de género” tem por detrás a imagem do nascer no “corpo errado”, localizando aí o “mal-estar sentido”. Alguns clínicos (de onde se destaca Norman Fisk, 1974) defendem que a “disforia de género” é um termo com maior amplitude e abrangência do que o de transexualidade, porque pode também ser aplicado a indivíduos que experienciam sentimentos fora do que tinha vindo a ser cada vez mais fixado (diríamos mesmo