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Orientações internacionais e europeias

3. Transexualidade e transgénero em Portugal: Uma abordagem contextual

3.1. Quadro jurídico e político

3.1.1. Orientações internacionais e europeias

Corriam ainda os anos 1980, quando a Resolução do Parlamento Europeu de 12 de Setembro de 1989153, dedicada à discriminação de que são vítima “os transexuais”, abria reconhecendo que “(…) a dignidade humana e os direitos pessoais devem incluir o direito a viver de acordo com a identidade sexual de cada um” e apelava aos estados membros para adoptarem medidas para a concretização do direito das pessoas transexuais à mudança de sexo, através da disponibilização dos tratamentos médicos e da erradicação da discriminação. Tal Resolução traduzir-se-ia, a 29 de Setembro, na Recomendação 1117 da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa154 sobre a condição das pessoas transexuais. Esta Recomendação convida os estados a introduzirem legislação que permita a rectificação do sexo no registo de nascimento e nos documentos de identificação no caso do “transexualismo irreversível”.

Mas é, indubitavelmente, já neste século que se tem vindo a assistir a uma atenção continuada e sustentada, por parte dos organismos internacionais e europeus, acerca da identidade de género – umas vezes incluída num “pacote” com a orientação sexual e outras em formato independente –, com a crescente produção de documentos de referência que incitam os estados a adoptar princípios e medidas dirigidos a esta população.

A nível mundial assistiu-se ao lançamento, a 26 de Março de 2007, dos Princípios de Yogyakarta na Aplicação das Leis dos Direitos Humanos em Relação à Orientação Sexual e à Identidade de Género155. Estes pretendem ser uma “identificação coerente e compreensiva da obrigação dos estados em respeitar, proteger e cumprir os direitos humanos de todas as pessoas,

153Pode ser consultada em http://tsnews.at.infoseek.co.jp/european_parliament_resolution890912.htm. 154 Pode ser consultada em http://assembly.coe.int/main.asp?link=/documents/adoptedtext/ta89/erec1117.htm. 155

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independentemente da sua orientação sexual e identidade de género”, constituindo-se desde a sua publicação, numa referência internacional156.

Mais recentemente – em Junho de 2011 –, e numa decisão considerada histórica, o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas aprova aquela que é a sua primeira resolução acerca da orientação sexual e identidade de género (L9/rev1)157, que pode ser vista como uma extensão ou cobertura dos princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem às violações baseadas na orientação sexual e na identidade de género. Aqui se reafirma a universalidade dos direitos humanos, a par da preocupação com actos de violência e discriminação motivados pela orientação sexual e a identidade de género. Esta resolução foi interpretada como um importante sinal de apoio aos defensores dos direitos humanos que trabalham sobre estes assuntos e um reconhecimento e legitimação do seu trabalho (GATE – Global Action for Trans* Equalitity, http://transactivists.org).

Nesta resolução, o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas solicitou também ao Comissário um estudo sobre a discriminação motivada pela orientação sexual e a identidade de género. No final do ano, coincidindo com o 63º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, surge assim o primeiro Relatório das Nações Unidas sobre a discriminação motivada pela orientação sexual e a identidade de género. Nele, entre outras, o Alto-comissário recomenda aos estados que investiguem prontamente os casos de violência e estabeleçam sistemas para que tais incidentes possam ser reportados; que assegurem a inclusão da discriminação com base na orientação sexual e na identidade de género na legislação anti-discriminação, bem como a inclusão destas problemáticas nos mandatos das instituições nacionais dos direitos humanos. Outra das recomendações vai no sentido da implementação de programas de formação e sensibilização para pessoal judicial e no apoio a campanhas anti-homofobia e transfobia para o público em geral (http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/19session/A.HRC.19.41_English. pdf).

A nível europeu, têm-se sucedido nesta matéria, sobretudo nos anos mais recentes, iniciativas por parte do Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa158, Thomas Hammarberg. As iniciativas conduzidas por este comissário permitiram um alargamento da problemática, desde as referências iniciais aos “transexuais” ou até “transexuais irreversíveis”, até às “pessoas transgénero” e à “identidade de género”. A identidade de género tem vindo a merecer da parte do Conselho uma atenção que acompanha as principais reivindicações do movimento transgénero, acertando o passo,

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Para uma análise aprofundada dos fundamentos e consequências destes Princípios veja-se O’Flaherty e Fisher (2008).

157Pode ser consultada em http://pt.scribd.com/doc/58115399/Human-Rights-Sexual-Orientation-and-Gender-

Identity-Resolution.

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por exemplo, com as posições oriundas da TransGender Europe (TGEU)159. Vejamo-las sinteticamente160.

Em Novembro de 2008, activistas LGBT (entre os quais portugueses, através da ILGA Portugal) reuniram em Estrasburgo com o Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, para debater as discriminações e os direitos das pessoas transexuais na Europa. Nesta ocasião foi reiterada a necessidade de em todos os países existirem leis especificamente relacionadas com a identidade de género.

Num documento intitulado “A discriminação contra as pessoas transgénero não deve continuar a ser tolerada”161

, datado de Janeiro de 2009, e que dá conta das missões realizadas nos estados membros, o Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa abre precisamente com a denúncia daquilo que qualifica um “crime de ódio extremamente brutal contra pessoas transgénero”, que foi o assassínio de Gisberta Salce Júnior. O Comissário termina considerando que não há desculpa para não garantir a esta comunidade de pessoas os seus integrais e incondicionais direitos humanos e que “os estados membros do Conselho da Europa devem tomar todas as acções concretas necessárias para assegurar o fim da transfobia e para que as pessoas transgénero não continuem a ser discriminadas em qualquer que seja o campo”.

No Issue Paper (CommDH/IssuePaper (2009)2) sobre “Direitos Humanos e Identidade de Género”162

, de 29 de Julho de 2009, o Comissário aprofunda a questão da identidade de género à luz dos direitos humanos, dando conta do caminho percorrido, das várias dimensões em que é necessário intervir – reconhecimento legal, acesso aos serviços de saúde, acesso ao mercado de trabalho, transfobia e violência contra as pessoas transgénero, etc. – e das boas (ainda que reconhecidamente escassas) práticas encontradas na Europa. Finaliza elencando doze recomendações para os estados membros do Conselho da Europa. Delas fazem parte, por exemplo, a introdução da identidade de género e da transfobia na legislação anti-discriminação; o desenvolvimento de procedimentos rápidos e transparentes para a mudança de nome e de sexo das pessoas transgénero nos registos de nascimento, bem como em todos os restantes documentos de identificação; e a abolição da esterilização e outros tratamentos médicos compulsivos como exigências legais necessárias ao reconhecimento da identidade de género no processo de regulamentação da mudança de nome e de sexo.

Estes pontos são retomados no ano seguinte, com a publicação, em 31 de Março de 2010, pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa, da Recomendação CM/REC(2010)5163, visando medidas para o combate à discriminação com base na orientação sexual e na identidade de género, no sentido

159 Estrutura supranacional, representativa de associações e grupos de suporte trans europeus. Pode ser

consultada em http://www.tgeu.org.

160 Para uma análise mais detalhada do conjunto dos documentos produzidos no âmbito do Conselho da Europa,

veja-se o estudo realizado pelo Conselho da Europa (2011).

161 Pode ser consultada em http://www.coe.int/t/commissioner/Viewpoints/090105_en.asp.

162 Pode ser consultado na página “Comissioner for Human Rights – Human rights and gender identity” em

https://wcd.coe.int/wcd/ViewDoc.jsp?id=1476365.

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de os estados membros uniformizarem os seus procedimentos e adoptarem as medidas nela visadas nas respectivas legislações. O documento inclui recomendações detalhadas nas áreas do direito à vida, segurança e protecção contra a violência; liberdade de associação; liberdade de expressão; respeito pela vida privada e familiar; emprego; educação; saúde; alojamento; desporto; asilo; estruturas de direitos humanos a nível nacional; e discriminação baseada em vários motivos. O ponto referente à saúde contém uma recomendação específica para o caso das pessoas transgénero, onde se proclama que “Os estados membros devem tomar medidas apropriadas para assegurar que as pessoas transgénero têm acesso efectivo aos serviços de reatribuição de género, incluindo o psicológico, o endocrinológico e o cirúrgico especializados no campo dos cuidados de saúde transgénero, sem estarem sujeitos a exigências não razoáveis”. Acrescenta ainda que “ninguém deve ser sujeito a procedimentos de reatribuição de género sem o seu consentimento” (ponto 35).

No mês seguinte (29 de Abril) a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa adopta a Resolução 1728 (2010) sobre “Discriminação com base na orientação sexual e na identidade de género”164

, reiterando que a transfobia, a par da homofobia, são inaceitáveis na Europa e que cabe aos estados tomar as medidas para o seu combate. A resolução refere especificamente que “As pessoas transgénero enfrentam um ciclo de discriminação e privação dos seus direitos em muitos estados membros do Conselho da Europa referentes a atitudes discriminatórias e obstáculos na obtenção do tratamento de reatribuição de género e reconhecimento legal do novo género”. Na sequência desta constatação pede aos estados que assegurem, na legislação e na prática, o direito das pessoas transgénero à segurança, ao acesso ao tratamento de reatribuição de género e ao tratamento igualitário nos serviços de saúde; ao acesso igualitário ao trabalho, aos bens, serviços, alojamento e outros, sem preconceito; ao reconhecimento de relações existentes (nomeadamente o casamento); e ainda aos documentos que reflictam a identidade de género preferida, sem nenhuma obrigação prévia de submissão à esterilização ou outro procedimento médico, tal como a cirurgia de reatribuição de sexo ou a terapia hormonal.

No sentido de colmatar a escassez, ou mesmo ausência de informação relacionada com a orientação sexual, mas sobretudo com a identidade de género, onde as lacunas são reconhecidamente ainda mais sentidas, comprometendo a discussão informada com as autoridades dos diversos estados membros, o Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa lança o maior estudo alguma vez produzido sobre homofobia, transfobia e discriminação com base na orientação sexual e na identidade de género, nos 47 estados membros do Conselho da Europa. O estudo “Discriminação com base na orientação sexual e identidade de género na Europa”165

, publicado em Junho de 2011, desenvolve uma extensa análise sócio-legal da situação das pessoas LGBT nesses estados. A partir dos resultados obtidos é sistematizado um conjunto de recomendações, abrangendo sete áreas: 1) atitudes e

164 Pode ser consultada em

http://assembly.coe.int/Mainf.asp?link=/Documents/AdoptedText/ta10/ERES1728.htm.

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percepções; 2) quadros legais e sua implementação; 3) protecção: violência e asilo; 4) participação: liberdade de assembleia, expressão e associação; 5) privacidade: reconhecimento de género e vida familiar; 6) acesso aos cuidados de saúde, educação e emprego; 7) investigação e recolha de dados. As palavras com que o Comissário termina o prólogo do estudo, em jeito de “aviso à navegação” aos que persistem em ignorar ou em encarar a orientação sexual e a identidade de género como temas menores ou, pelo menos não prioritários, não deixam margem para dúvida do seu entendimento acerca da inclusão destas problemáticas no quadro dos direitos humanos e da sua determinação e empenho na prossecução de avanços nesse sentido: “Existe uma considerável resistência entre muitas pessoas em discutir o pleno usufruto dos direitos humanos universais pelas pessoas LGBT. Embora possa não ser um tópico popular dos direitos humanos, é agora chegado o tempo de levar a discussão avante e concretizá-la.” (2011: 6).

No contexto mais restrito da União Europeia, onde também nos incluímos, é significativo que no Relatório sobre a avaliação dos resultados do Roteiro para a Igualdade entre Homens e Mulheres 2006-2010166, aprovado em Junho de 2010 pelo Parlamento Europeu, se requeira a adopção por parte do Conselho, da Comissão e dos estados membros da União Europeia de medidas específicas que incluem “uma campanha destinada a sensibilizar para a discriminação das pessoas transgénero e a melhorar o acesso das mesmas a vias de recurso”. Adicionalmente, no quadro da estratégia da União Europeia para a igualdade entre homens e mulheres 2010-2015, na comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões167 pode ainda ler-se que esta decidiu “analisar as questões específicas relacionadas com a discriminação em razão do sexo no que se refere à identidade de género” (6.2). Subjacente à contemplação das pessoas transgénero e à identidade de género nas estratégias que visam a igualdade de oportunidades, poderá estar o alargamento do campo de abrangência da legislação da Europa comunitária relativa à “igualdade entre homens e mulheres” para a “igualdade entre géneros”. Este alargamento poderá ser também interpretado como um indício de uma deslocação da problemática da “identidade de género” para a área do “género” desde a sua tradicional colocação a par da “orientação sexual”.

Na sequência da histórica resolução das Nações Unidas, em Setembro de 2011, o Parlamento Europeu, na “resolução sobre direitos humanos, orientação sexual e identidade de género nas Nações Unidas”168

, reitera a seu apoio às tomadas de posição das várias instâncias no sentido da protecção dos direitos à luz da orientação sexual e da identidade de género e apela às instâncias em causa para que concretizem as medidas preconizadas.

166 Pode ser consultada em http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-/EP//TEXT+REPORT+

A7-2010-0156+ 0+DOC+XML+V0//PT#title2.

167 Pode ser consultada em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do? uri=COM:2010: 0491:FIN: PT:

PDF.

168 Pode ser consultada em http://www.lgbt-ep.eu/wp-content/uploads/2011/09/RES-20110928-Human-rights-

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3.1.2. “Lei de identidade de género”: A mudança legal de nome e de menção ao sexo Contrariando uma série de recomendações e resoluções do Conselho da Europa, cujo início remonta aos finais dos anos 1980, não existiu em Portugal, até 2011, qualquer legislação específica referente à transexualidade e ao transgénero, nem qualquer menção na legislação existente à transexualidade, ao transgénero ou à identidade de género. Não existia pois qualquer procedimento legal que previsse a alteração legal de mudança de nome próprio e de menção ao sexo no assento de nascimento, que, como vimos, constitui uma das principais áreas de recomendação a nível europeu. Isto apesar de, como exploraremos mais detalhadamente no ponto seguinte, a nível dos serviços de saúde fosse permitido em Portugal, e estava a ser concretizado desde meados da década de 1990, o processo de “mudança de sexo” física.

Esta ausência legal mereceu mesmo uma chamada de atenção ao estado português por parte do Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa que, em Novembro de 2009, envia uma carta ao então Secretário de Estado da Justiça, José de Magalhães, no seguimento da sua visita a Lisboa, no início do mesmo mês. Nela, o Comissário sistematiza as suas principais preocupações relativamente à protecção dos direitos humanos em Portugal. A segunda categoria de pessoas desprotegidas à luz dos direitos humanos a que se refere é precisamente a das pessoas transgénero. Nessa carta, tornada pública169, o Comissário explicita as suas preocupações relativas à ausência de procedimentos uniformes e expeditos para a mudança de nome e de sexo das pessoas transgénero na certidão de nascimento e nos documentos de identificação, aproveitando para anexar o paper acima referido, que contém as recomendações e as respectivas fundamentações jurídicas.

A ausência legislativa nacional contrastava com o panorama existente num conjunto de países europeus, que começaram a legislar sobre a matéria já desde o início da década de 1970, caso da Suécia (1972), tendo seguimento na década seguinte na Alemanha (1980), Itália (1982), Holanda (1985) e Turquia (1988) e na década de 1990 na Áustria (1993). Já neste século juntaram-se a este grupo de países a Finlândia (2002), o Reino Unido (2004) e a Bélgica (2007). Ainda nesse último ano, na vizinha Espanha entraria em vigor aquela que foi considerada, a par do Gender Recognition Act 170 do Reino Unido, como a mais avançada lei no que se refere aos direitos e protecções das pessoas transexuais, a Ley de Identidad de Género (Ley 3/2007 de 15 de Março)171. Ambas admitem a alteração legal de nome e de menção ao sexo na ausência de cirurgia de reatribuição de sexo, desde que exista um reconhecimento  médico no caso de Espanha, e por aferição por um painel de peritos, no caso do Reino Unido , que confirme a transexualidade. Apesar de este último aspecto poder ser objecto de contestação172, dado que este quadro legislativo pressupõe uma medicalização, no caso espanhol, das pessoas que não se identificam com o sexo que lhes foi atribuído à nascença e, em

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Pode ser consultada na página “Comissioner for Human Rights - Letter from the Council of Europe Comissioner from Human Rights”, em http://wcd.coe.int/com.

170 Pode ser consultada em http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2004/7/contents.

171 Pode ser consultada em http://www.boe.es/aeboe/consultas/bases_datos/doc.php?id=BOE-A-2007-5585. 172

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ambos os casos, não as toma como autónomas e auto-suficientes na tomada de decisão quanto à sua identidade de género, estas leis constituíram, indubitavelmente, uma subida de patamar no reconhecimento da identidade de género dos indivíduos transexuais. A lei portuguesa, publicada em Março de 2011, seguirá o espírito legislativo destas últimas, embora mais próxima da espanhola do que da britânica.

Neste ponto daremos conta do caminho percorrido desde o completo vazio legislativo até à existência de uma lei de regulamentação de mudança legal de nome e de sexo nos documentos identificativos, que se insere no cluster das mais progressistas no contexto europeu173. Tendo esta situação só recentemente sido alterada, importa dar conta do quadro existente no momento de recolha de dados para a presente pesquisa, pois é nesse contexto que se estruturam a experiência e o discurso dos indivíduos ouvidos no âmbito deste estudo. Temos pois que revisitar um passado, aqui especialmente relevante, tendo em conta que constituía o presente na altura da auscultação dos indivíduos. No plano nacional, a existência de uma “lei de identidade de género”, ou seja, da regulamentação da possibilidade de mudança legal da menção ao sexo nos documentos de identificação, constituiu simultânea e coerentemente uma das principais necessidades das pessoas, sobretudo as transexuais, auscultadas para esta pesquisa, e uma das principais reivindicações do movimento associativo LGBT, ou especificamente T. Para além do vasto conjunto de dados oriundos das componentes qualitativas do estudo – nomeadamente as entrevistas em profundidade e as incursões etnográficas – os dados de natureza quantitativa – mais directamente legíveis – apontam igualmente nesse sentido. Questionados sobre os contextos de discriminação, aqueles que são assinalados por maior número de pessoas transexuais são precisamente os que implicam a apresentação de documentação, nomeadamente os serviços públicos, tais como conservatórias, tribunais, finanças, incluindo os estabelecimentos de saúde e as forças policiais e de segurança. Já numa questão que convidava os inquiridos a relatar os acontecimentos que “tornariam a sua vida mais fácil”, aquele que as pessoas transexuais espontaneamente referiram em maior número foi “a existência de leis de salvaguarda dos direitos das pessoas transexuais”, tendo ainda sido mencionada, mais concretamente, a possibilidade de alteração dos documentos de identificação. Todos os responsáveis do movimento associativo entrevistados manifestaram essa como uma das prioridades, existindo iniciativas concretas de apresentação de propostas por parte de alguns deles e nas marchas do orgulho LGBT essa constituiu uma das reivindicações mais presentes para a questão da identidade de género nos anos que antecederam a aprovação da lei174.

173 Fora do espaço europeu surgiu uma “nova geração” de leis de identidade de género com a aprovação, em

Abril de 2012, da lei argentina que não exige diagnóstico médico para o reconhecimento legal de género.

174 Como se pode confirmar pelo quadro que compila as reivindicações T nas marchas do orgulho LGBT, de

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Não obstante a situação de vazio legislativo, desde a primeira metade da década de 1980 que há, em Portugal, pessoas transexuais que conseguiram a alteração do sexo no assento de nascimento175, tendo assim, em termos formais, a possibilidade de “transição” jurídica precedido a de “transição”