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CAPÍTULO 4: ANÁLISE DE DADOS

4.3. Passo 3: Procedimentos e rumos diferentes

4.3.3 Geração dos avós

4.3.3.8 Narrativa de vida dos avós maternos, por fotografias

A escrita das experiências dos avós maternos, pelo procedimento fotografias, cuja conversa foi gravada em áudio, caracteriza-se pela linguagem descritiva e recuperou um conteúdo histórico da escola rural masculina que existia, no estado de São Paulo, até os anos de 1960.

O meu avô Antonio estudou nesta escola que se chamava Escola Masculina do Bairro Goio-Gutche. A escola só aceitava professor homem, por isso se chamava escola masculina, mas aceitava alunas.

Meu avô se lembra dos professores: Professor José Carlos Dias, que era da cidade de Santa Cruz do Rio Pardo; professor Maurício que tinha a família na cidade de São Paulo e do professor Sidney.

O professor José Carlos morava na própria escola. Ele almoçava na casa dos meus bisavós, Inocêncio e Maria Carlos, pagava à família uma pensão de refeição. Ele tomava banho na própria escola e lá que tinha um reservado para isso.

O segundo professor de meu avô se chamava Sidney Maria Andrade. Ele dormia na escola e pagava pensão alimentar para a outra família. A mãe do meu pai, Maria Carlos já não queria ficar recebendo outro professor, pois já estava com o professor José Carlos.

(Camila, 7ª. série)

A escrita recupera a história da Escola Masculina do Bairro Goio Gutche, que foi construída na zona rural da cidade de Quintana, no interior do estado de São Paulo. Recupera também o modo de viver dos professores que assumiram a educação dos filhos daqueles lavradores. O contexto social – escola localizada na zona rural - ajuda a compreender a presença da figura masculina (eram três professores) na sala de aula. A escrita apresenta um fato curioso, nada comum aos dias de hoje. Aqueles professores moravam na própria escola e um deles pagava pensão à família do bisavô para se alimentar.

O próximo excerto trata do funcionamento da escola.

As carteiras eram conjugadas - o banco de sentar, com as carteiras. Havia uma média de 40 alunos. Às vezes apareciam outros, mas não podia registrar o nome do aluno, mas ele ficava na escola. Quando vinha a diretora, ela sempre passava na casa de meu avô e alguém dava um jeito de avisar o professor que, rapidamente, escondia o aluno. A lei era muito severa e ninguém queria complicação no Departamento de Trabalho.

(Camila, 7ª. série) A metodologia de Pesquisa Narrativa abre um espaço para especulação, quando os dados surgem sem evidências. Assim especulo que a arquitetura do móvel escolar sugere que este modelo (o banco de sentar era ligado com a carteira) “disciplinava” os alunos a não ficarem se levantando de seus lugares, a qualquer momento. Parece-me que era necessário os alunos tomarem cuidados ao se movimentarem, evitando que as carteiras sofressem os

movimentos do banco de sentar, para não atrapalhar o aluno que manuseava os materiais escolares.

A escrita fornece elementos que permitem afirmar que a escola não era para todos. Em “Educação Brasileira 500 anos de História”, Niskier (1995, p.363) traça um panorama da década de 50: “Agora que tecnicamente todos possuem o direito de as freqüentar, ainda não existem escolas suficientes. Faltam milhares de escolas primárias (...)”. O limite estabelecido para o número de alunos era fiscalizado com rigor. Entretanto, as famílias dos alunos e os professores estabeleciam uma cumplicidade para burlar essa fiscalização, que pode ser compreendido na história dos professores. Por exemplo, o professor José Carlos era hóspede da casa dos bisavós, portanto criara vínculos com a família. Não deixa de ser um ato político, uma vez que se uniam numa forma de incluir aqueles alunos na sala de aula.

As histórias daquela escola localizada na zona rural, o envolvimento daqueles professores com as famílias e seus filhos me lembram a história da professora Madalena, personagem fictícia de Graciliano Ramos, em sua ação política com a educação das crianças da fazenda São Bernardo. Por defender uma educação de qualidade, Madalena era acusada de “comunista” por Paulo Honório, cujos interesses capitalistas não permitiam que ele concebesse a educação da forma como ela a concebia.

Nos dois próximos excertos, o assunto se refere aos objetos e móveis escolares, que fizeram parte das experiências dos avós, na década de 50 e 60.

(1) Minha avó está relembrando dos materiais daquela época. As canetas eram de tinta líquida e funcionava com uma pena que precisava molhar no vidrinho de tinta. Era chamada de caneta-tinteiro. A pena, ao ser molhada na tinta, precisava de um tempo para não escorrer e borrar o papel. Quando a tinta escorria havia um mata-borrão para “chupar” (absorver) a tinta.

(2) Nas escolas, as carteiras tinham um reservatório para colocar a tinta e apoiar os lápis e as canetas. O aluno podia escrever à caneta, somente quando estava na terceira série. Ele precisava de treino para usar a caneta à pena, pois se a ponta abrisse, a letra ficaria diferente se descuidasse um pouquinho, a tinta manchava o caderno, como já tinha acontecido com a maioria.

(Camila, 7ª. série)

Ainda, as descrições das carteiras escolares e da caneta tinteiro, por exemplo, são históricos e permitem ter uma idéia de como eram e como funcionavam aqueles mobiliários e materiais que, atualmente, são desconhecidos.

A riqueza da produção de conhecimento encontra-se, principalmente, no relato da avó, cujos objetos descritos fizeram parte de suas experiências. Cada um desses objetos representa uma experiência vivida: a caneta tinteiro, o vidro de tinta, a pena, o mata borrão. A

escrita recupera não apenas a forma desses objetos, mas também o processo de funcionamento, evidenciando, por meio da linguagem, o conhecimento da avó, nessa re(construção) por meio da narrativa. .

É interessante observar que na maioria das escolas, inclusive onde eu sou professora, os professores procuram organizar as salas com as carteiras em fileiras, como na época dos avós. Trata-se de uma estratégia para evitar conversas entre os alunos. Os mobiliários escolares transformaram-se, no tempo. Na escola onde sou professora há 19 anos as carteiras são separadas da cadeira e este modelo é destinado às classes do ensino fundamental. Há também o modelo “carteira universitária”, que tem um suporte com a função de apoio ao caderno, que se localiza na altura do braço da cadeira, ao lado direito (há também alguns com o apoio no lado esquerdo para os canhotos). Debaixo do assento, há um suporte, cuja função é guardar os restantes dos materiais escolares. Este modelo destina-se às turmas mais avançadas, no entanto os modelos não funcionam como regras. Essa “carteira universitária” foi a solução encontrada para ampliar o número de alunos por turma, desconsiderando o bem estar do estudante.

Vale lembrar que os alunos se modificaram em comportamentos e desenvolveram uma outra conduta em relação aos mobiliários escolares. Eles se sentem mais livres para movimentarem-se na sala de aula. As carteiras são arrastadas de seus lugares e é necessário, a cada final de período, uma re(organização) da sala de aula.

Ainda, em relação ao uniforme escolar, a narrativa do avô materno apresenta um dado curioso.

Nesse dia em que o fotógrafo apareceu no sítio para fotografar as famílias, a nona mandou todos vestirem suas melhores roupas. As roupas que as crianças vestiam para as fotos, muitas vezes, era o uniforme da escola.

(Camila, 7ª. série)

O enunciado retrata a época na qual a maioria das famílias não tinha uma câmera fotográfica em casa e a fotografia era uma rara oportunidade para as pessoas, principalmente para aquelas que moravam na zona rural.

Quem fazia as fotografias era o professor José Carlos, que tinha uma câmera Kodak, informou o avô materno. Curioso é o fato de a nona (a tataravó) pedir às crianças para vestirem o uniforme da escola. Especulando as hipóteses, o uniforme escolar pode ser uma indicação de que esta era a melhor roupa das crianças. Pode significar também que o uniforme escolar era uma maneira de a nona propagar, por meio deste traje, que os netos freqüentavam a escola.

A escrita ofereceu uma oportunidade para o avô relatar o trabalho da família na lavoura, em suas propriedades, no município de Quintana, nas décadas de 60 e 70.

O TRABALHO DA FAMÍLIA DE ANTONIO FURLAN

Foto 28 Foto 29 Alcides, Moacir, Antonio, José, José e Antonio Pedro e Mário - 1972 1974

Por esta fotografia dá para as pessoas conhecerem a roça da família de meu avô. Neste dia, muitos homens trabalhavam num sol forte e numa terra seca. Era a roça onde Alcides, Moacir, Antonio, José, Pedro e Mário molhavam muito suas camisas com suor.

Eles tiraram o chapéu para ser fotografados e saírem com o rosto à vista. O dia estava ensolarado porque dá para ver as sombras dos animais.

A família do meu avô Antonio sempre tirou o sustento com muito trabalho na agricultura. Eles sempre estavam dispostos a plantar e a colher.

O meu avô conta que esta fotografia marca a época do ano 1972. A família começa uma nova plantação de amendoim. Eles usaram arado, um tipo de instrumento agrícola que cavava a terra para semear os grãos.

Na fotografia, eles estão trabalhando com uma plantadeira de amendoim. Os animais eram tratados com muito carinho e costumavam ser chamado pelos nomes Tigreiro e Lambari.

Esta fotografia é de plantação de batatinhas e mostra bem como meu avô e seu irmão trabalhavam na roça da família

Essa pessoa que está carregando o regador é o meu avô. Esse regador era usado para colocar veneno na máquina da pulverização. O ano desta lavoura é de 1974. Essa outra pessoa é o tio José.

(Camila, 7ª. série) O trabalho na lavoura permeia grande parte das histórias da família. À medida que a aluna desenvolve a narrativa, ela constrói a identidade do avô como um grande lavrador de terras. A escrita tece o caráter trabalhador e empreendedor da família Furlan na agricultura do município.

O trabalho na lavoura tem uma dimensão subjetiva para o avô. Representa a identidade e a trajetória da família desde a migração dos tataravós para o Brasil, no início do século 20, os quais deram início ao árduo trabalho braçal no cultivo da terra e a continuidade pelos bisavós e avós. A narrativa caracteriza-os como “gente do campo”, pessoas de força psicológica e física, que tiraram o sustento da família com o trabalho braçal. Esse trabalho é um valor que justifica toda vida do avô.

As duas fotografias (28 e 29) escolhidas pelo avô, permitem afirmar que o avô se orgulhou em falar do trabalho da família na lavoura e procurou provar o que dizia. Primeiramente, as imagens da família arando a terra, em seguida, a transformação deste espaço pintado de verde com as cores das folhas da plantação, evidenciando que a família aprendeu a transformar a terra em campos verdes e em colheitas.

Nesse aspecto subjetivo, observa-se na narrativa que o avô se detém longamente e com muito gosto na descrição desse ofício, o qual foi reproduzido pela aluna, nesta escrita.

A outra dimensão se refere aos aspectos sociais e econômicos.

A família de meu avô Antonio conseguiu prosperar com a lavoura, naquela época. Eles conseguiram comprar um caminhão, marca Ford, ano 1962, à gasolina, com o lucro da produção. A família usava esse caminhão para transporte da colheita, fazer compras e para passeio da família. Meu avô fala com orgulho que eles compraram com a produção do sítio. [...]

Em 1976 o meu avô foi comprar sementes de batatinhas na cidade de Poços de Caldas, Minas Gerais com os senhores Arlindo e Nico Ribeiro (caminhoneiro).Eles se hospedaram em um hotel, que ficava na entrada da cidade. Eles já eram acostumados ficar neste hotel. Meu avô achou o hotel muito ruim, pois lá de fora dava para enxergar os buracos lá dentro. Então ele falou os seus companheiros que ele conhecia outro hotel no centro da cidade e eles foram se hospedar neste hotel. A dona do hotel falou para eles se acomodarem e que havia uma sala com televisão. Foi aí que meu avô viu a primeira televisão colorida. Foi assistir a um jogo de futebol e viu o campo todo verdinho.

(Camila, 7ª. série) O trabalho significou, também, a inserção do avô no sistema de relações sociais e econômicas. Os segmentos, acima, descrevem não apenas o progresso da família, mas também a representação desse trabalho no desenvolvimento agrícola do município de Quintana. A família tornou-se conhecida na região, desde as primeiras décadas com a migração dos tataravós, com os bisavós e avós que continuaram o trabalho na agricultura.

A narrativa foi tecida com a força do significado que esse trabalho representa para o avô. Falar dessas experiências que lhe foram prazerosas motivou o avô a soltar a voz. Um conjunto de fatos foi lembrado simultaneamente.

Os segmentos, abaixo, se referem às mudanças na vida do avô. Uma fase triste na vida da família.

Essas duas fotografias marcam uma mudança de vida da família Furlan. O senhor Antonio, meu avô trouxe a família para a cidade, para estudar.

A vida no sítio Santa Maria já não era a mesma.

Meu avô continuou trabalhando no sítio, mas muitas coisas foram acontecendo – prejuízos no sítio, perda de colheita. Eram em três irmãos,

compravam as coisas juntos. Depois foram se desentendendo, o irmão se separou da mulher. Não dava mais para continuar, infelizmente.

[...[

O meu avô veio morar na cidade de Quintana. Por um bom tempo ele continuou indo até o sítio para trabalhar. Ele conta que as coisas mudaram. Quando não encontrou mais jeito de continuar, parou de trabalhar no sítio com uma grande tristeza.

A minha avó Luzia gostou muito da mudança porque a vida na cidade é mais fácil. Ela se adaptou rapidamente.

(Camila, 7ª. série) Os pequenos agricultores encontraram (e ainda encontram) dificuldades para continuar investindo em plantações, motivadas pela falta de uma política agrícola. Aqueles, que tradicionalmente residiam na zona rural e se dedicavam com o seu trabalho não tiveram mais condições de permanecerem lá. A alternativa para muitos foi mudarem-se com suas famílias para a cidade e adaptarem-se a uma outra atividade. Esta é uma forma de compreender o êxodo rural, que vem acontecendo no Brasil após o surto industrial. As cidades em fase de crescimento e industrialização oferecem melhores condições de trabalho. Ou, por outro lado, as cidades exercem um fascínio no homem do campo. Elas atraem com a ilusão de melhores condições de vida.

A escrita da aluna continua a tecer a identidade do avô, narrando a insistência com o trabalho no sítio, lugar onde ele pôde prolongar por mais um tempo a existência de algo que estava prestes a acabar. Por fim, a família do avô se mudou para a cidade, abandonando o trabalho com a agricultura.

Se as recordações do trabalho na agricultura teceram a narrativa, o relato amargo desta atual realidade esgarça a narrativa, tornando a voz do avô rouca.