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Capítulo IV: Resultados

Capítulo 5: Análise

5.4 Narrativa 3 – Professora Lia

A Lia é professora de Matemática efetiva na Rede Pública Estadual de São Paulo, possui licenciatura em Matemática e Mestrado em Educação para as Ciências. Tem dezessete anos de magistério e há seis anos leciona na escola em que está atualmente.

A escola em que a Prof. Lia trabalha está localizada no centro da cidade e atende alunos do 5º ao 9º ano do EF e alunos do Ensino Médio de todos os bairros. A equipe gestora da escola é formada por um Diretor efetivo; um vice- diretor, e dois Professores Coordenadores. O corpo docente é constituído por professores efetivos e por professores OFA, mas nem todos possuem sede de exercício na escola.

A Lia se apresenta como uma professora desconfiada, aparentemente descrente em relação às possibilidades das ações formativas oferecidas pela SEE/SP contribuírem para atender suas necessidades da prática. Mesmo sem muita expectativa, a Prof. Lia tem participado das orientações e dos cursos oferecidos aos professores de Matemática da Diretoria de Ensino da Região de Assis. Contudo, os motivos que tem levado essa professora a participar dos cursos oferecidos é a busca pela certificação.

Os certificados conferidos pelos cursos realizados pela SEE/SP possibilitam a aquisição de certo tipo de capital cultural institucionalizado, conforme Bourdieu (2011, p. 79), pelo fato de que estabelece a comparação entre os que possuem e os que não possuem esses certificados, garantindo àqueles que possuem “estabelecer taxas de convertibilidade entre o capital cultural e o capital econômico”, garantindo assim aumento salarial.

A formação escolar da Prof. Lia, que possibilitou a aquisição do seu capital cultural (BOURDIEU, 2011) e a construção do seu habitus (BOURDIEU, 2008), é marcada pela dualidade. Assim, ao recordar sua trajetória escolar, a profissional distingue duas formas distintas de perceber sua relação com seus professores, uma positiva e outra negativa.

Do início de sua trajetória escolar, a Prof. Lia recorda com carinho de uma professora da 4ª série, que hoje corresponde ao 5º ano do EF. A recordação que ela tem dessa professora está relacionada não à formação escolar em si, mas a um tipo de formação social e humana, voltada para solidariedade e o aprender a partilhar, “ela levava a gente pra fazer doação, de coisas que ela trazia do sítio dela, na casa das crianças”, com isso essa professora “me ensinou, que por mais que a gente não tenha condições, você tem sempre alguma coisa para dar, [...] nem que seja carregar no colo, brincar. Era o que a gente fazia com as crianças, a gente ia lá, a gente brincava com as crianças”. Desta fase, ela não apontou nenhuma experiência negativa.

Do ensino médio, a Prof. Lia recorda de forma positiva um professor que, em sua opinião, “era praticamente uma mãe para os alunos [...] ele era assim carismático, ele tava ali, tinha aquela coisa de estar sempre apoiando”, e de forma negativa ela recorda uma “professora que era o oposto, daquela que sentava na mesa e dizia abra o livro na página tal e siga o exemplo, entendeu?”

Da graduação, ela recorda “de forma positiva dos professores relacionados à área de Educação [...] porque sempre davam uma visão da Matemática como sendo uma coisa mais prática, um lado mais prático da Matemática”. Para ela os professores da área de Educação, apresentavam uma abordagem da Matemática, diferente da abordagem dada pelos professores da área restrita à Matemática, “você percebia que a abordagem deles, o tratamento com o conteúdo e a relação conteúdo aluno era diferente”.

A bagagem social e cultural incorporada pela Prof. Lia em sua trajetória formativa foi determinante para a forma como essa professora construiu sua prática, ou seja, o seu habitus.

A opção da Prof. Lia pela Matemática se deu por causa “da minha ignorância, eu sempre fui uma aluna que tirava “cezinho” em matemática, nas outras disciplinas eu conseguia B, A, eu entendia. E a matemática não ia, não tinha jeito”. Sobre essa escolha, a Prof. Lia (dez/2012) diz:

[...] eu entrei no curso de Matemática como desafio. E foi o desafio da Matemática, porque eu só percebi que eu ia ser professora, que eu estava num curso de licenciatura em Matemática, do primeiro para o segundo ano. O meu interesse era na Matemática, não era na profissão

113 de professor, entendeu? Comecei a fazer o curso pela Matemática. E depois que eu descobri que eu tava num curso de licenciatura em Matemática, que eu ia ser professora.

Neste sentido, o investimento pessoal em sua formação, em relação à apropriação de conhecimentos matemáticos, mostra que a da Prof. Lia buscou no curso superior mais do que aquisição de capital cultural institucionalizado. Mesmo não tendo muita clareza do que o curso escolhido poderia oferecer a Lia viu na graduação a possibilidade de incorporação de capital cultural (BOUDIEU, 2011). A descoberta de que estava em curso voltado para formação de professores não foi um problema para a Prof. Lia. Logo que soube que “seria professora”, a Lia começou a exercer a função. Assim, quando ainda estava no segundo ano de licenciatura, começou a trabalhar como professora em uma escola particular. “A primeira escola que eu comecei dar aula foi uma escola particular”. Já no último ano de faculdade, a Professora Lia começou a trabalhar na rede pública.

Apesar de ter descoberto qual seria sua profissão somente ao final do segundo ano da graduação, a Prof. Lia diz que “desde o princípio, eu me adaptei bem com essa questão de ser professora, sabe? Eu não tive problema com essa questão de ser professor, eu sempre me dei bem com isso”.

Apesar, ou por causa, da sua primeira experiência ter sido em uma escolar particular, a Prof. Lia conta que sua identificação é maior com a escola pública, do que com a escola particular. Para ela “na rede pública, [...] todo mundo é igual todo mundo, ninguém é herdeiro de ninguém, ninguém é mais que ninguém, entendeu? Tá todo mundo junto...”. Essa relação de identidade constitui o capital social (BOURDIEU, 2011) construído pela professora com a rede pública.

Sobre a atuação do professor de Matemática, a Lia considera que este “tem que ter muito jogo de cintura”. “Porque você tem que ter um conhecimento de várias formas de ensinar a mesma coisa”. Tendo em vista que as pessoas não são iguais e, portanto, a forma como elas aprendem também não, ela afirma que não adianta o professor “repetir a mesma coisa, porque ele não vai. Não é falar duas vezes que vai fazer você entender”. Conforme pontua Bourdieu (2011, p. 74), a incorporação de capital cultural “custa tempo e deve ser investido pessoalmente pelo investidor”.

Para a Prof. Lia, “a grande sacada aí, é você ter esse conhecimento diversificado, saber várias formas de ensinar a mesma coisa, para você poder atingir o maior número de pessoas possíveis”.

A diversidade de interesses e de conhecimento dos alunos, na opinião da Prof. Lia, é uma dificuldade atual no exercício da função, necessitando que o professor de Matemática tenha “além de todo conhecimento matemático, ainda você tem que ter essa facilidade de mexer com essa diversidade de pessoas”. Neste sentido, além de ensinar o conteúdo matemático, o professor “acaba se envolvendo com tudo que acontece ali, no contexto de escola”. Segundo a Prof. Lia:

Não é porque a gente é professor que você entra em uma sala de aula e fala somente de Matemática, surgem assuntos, eles contam histórias, a gente vê histórias acontecendo. E aí, existe essa questão de você saber o momento de parar a história de falar de Matemática, a hora de você sentar e dar ouvido pra aquilo.

Apesar das dificuldades apontadas em relação às exigências impostas atualmente ao trabalho do professor de Matemática, a Prof. Lia não acredita que as ações de formação continuada possam ajudá-la. Para ela, a formação do professor acontece na escola, “a gente tem participado de vários cursos, mas eu acho que a vivencia do professor na escola, sabe? Sempre com aqueles alunos, nenhuma capacitação vai conseguir te dar, entendeu?”. Essa concepção de formação se aproxima da concepção de situações educativas, conforme assinalado por Canário (2003).

Mesmo considerando que “o professor se capacita dentro da escola”, a Prof. Lia não se isenta de participar das ações formativas oferecidas pela SEE/SP.

No período entre 2004 e 2006, ela participou dos cursos de formação de Metodologia do Ensino do Programa Teia do SABER. A respeito de sua participação neste curso, a Prof. Lia diz ter se identificado com os professores da área de Educação Matemática, “sabe para mim é o máximo aqueles professores, eles traziam material, sabe que você não imaginava que você ia usar aquilo na Matemática, para dar exemplos para gente”. Segundo ela, “quando você descobre

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aqueles materiais e aquela coisa da Educação Matemática, você fala: Nossa que legal! a Matemática não é tão seca assim, não é o pensamento cartesiano”.

Nesse mesmo período, a Prof. Lia participou do Ensino Médio em Rede. Sobre esta ação, a professora destaca duas palavras “sequencia didática”. A esse respeito, a professora faz uma crítica ao curso uma vez que “parecia que era uma obrigação, sabe? Você fazer, você criar uma sequencia didática! Você tinha essa obrigação”. E para ela, “você criar uma sequencia didática e se apegar nisso daí, é a mesma coisa de você adotar um livro didático e ficar 50 anos trabalhando com o mesmo, entendeu? Você está engessado, você está preso naquilo”.

Mais recentemente, a Lia participou do curso Currículo e Prática Docente, realizado pela EFAP11 na modalidade à distância. Sobre esta ação, ela diz que “não foi um curso difícil de fazer, foi um curso agradável de fazer”. Este curso “foi direcionado as atividades que estão nas apostilas do Estado e eu achei legal, por que deu uma nova visão daquelas apostilas, entendeu?” Segundo ela, “a gente teve oportunidade de fazer críticas, de discutir as apostilas no curso. Então eu acho que foi válido, foi válido”.

Apesar de considerar que o curso poderia ter sido mais aprofundado, a Prof. Lia diz que “foi um apoio legal, para compreender a estrutura que a apostila tem [...]. Por que até coisas assim bobas que [...] passa despercebido e depois que você vê que é importante”.

Além dos cursos, que possibilitam a aquisição de certificados, a Prof. Lia também participa de orientações técnicas realizadas na Diretoria de Ensino. Sobre estas orientações, ela considera importantes aquelas que se relacionam ao objeto matemático e à sua didática, “tem algumas que eu acho que são legais, principalmente quando a gente trabalha com questões, assim, quando traz material, quando traz questões de matemática para a gente resolver, quando traz coisas da Matemática mesmo”. Mas tem restrições ao discurso ideológico que muitas vezes acompanham algumas dessas ações.

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Além do trabalho com diferentes abordagens para o ensino de Matemática, a Prof. Lia considera a avaliação um tema importante para ser discutido nas orientações técnicas.

Ainda que perceba “boa vontade” por parte de quem elabora os cursos de formação continuada da SEE/SP, a Prof. Lia critica a forma “massificada” com que essas ações são realizadas. Em relação a esses cursos ela considera que “é uma coisa feita em massa, é massificado, é uma coisa muito grande, sabe?”. Em sua opinião, “trabalhos pequenos, coisas menores surtem mais efeito do que esses grandes projetos”. Além disso, “eles fazem uma abordagem imensa, eu acho que coisas mais intimistas, menores, é que surtem mais efeito, não adianta massificar a cabeça das pessoas que isso não resolve nada”.

Para a Prof. Lia, a formação deve acontecer na escola, de “forma que a pessoa “que vá dar” essa orientação, essa capacitação, tenha contato também com nossos alunos, com as dificuldades dos nossos alunos, entendeu?”.

Apesar da crítica à forma como as ações formativas são realizadas, as orientações e os cursos, oportunizaram a Prof. Lia novas possibilidades de trabalhar em sala de aula, novos modos de pensar a Matemática e novas formas de se relacionar com os materiais disponibilizados pela SEE/SP. Ou seja, mesmo com as fragilidades os processos formativos se mostraram como espaço social que propiciaram a essa professora a aquisição de capital cultural incorporado, e de certa forma a construção de novos habitus.